Frei Betto*
Com frequência se lamenta
de condições que, tendo em vista a realidade, deveria
ser consideradas
privilégio (Unsplash/ Ethan Sykes)
Extraia do teu lamento forças para mudar o
que consideras injusto
Por que lamentas estar isolado dentro de casa? Já pensaste
naqueles que nem casa têm e são obrigados a conviver com o risco
iminente da infecção? Ou será que o teu coração é um cômodo entupido de
ego, sem lugar para mais ninguém?
Por que lamentas se, agora,
vives em uma prisão de luxo, com liberdade para estabelecer teus
horários e escolher a comida que te agrada? Pensa naqueles que
enfrentam longas filas para receber uma quentinha da caridade alheia.
Por
que lamentas ao se ver obrigado a cancelar a festa de aniversário ou
casamento, e arcar com o prejuízo que não será ressarcido? O que
preferirias, a festa com o coronavírus invisível circulando entre teus
convidados ou preservar a tua e outras vidas para festas vindouras?
Por
que lamentas não poder, agora, fazer a viagem sonhada e programada, e
se ver forçado a ficar recolhido em teu espaço doméstico? Ou seria
melhor uma passagem sem volta para a morte?
Por que lamentas não
poder sair à rua, encontrar amigos e voltar a tua rotina de trabalho e
lazer? Ainda podes conversar por telefone, talvez trabalhar desde casa e
improvisar teus métodos de ginástica.
Por que lamentas ser idoso e
figurar entre os mais vulneráveis? Alguma vez te passou pela cabeça que
o melhor da velhice é não haver morrido jovem? Já que chegastes a esta
idade, cuida de preservar a tua vida por mais alguns anos e, quem sabe,
décadas.
Por que lamentas ser obrigado a fechar teu comércio, teu
escritório, ameaçado de ter tua renda reduzida? Já imaginastes se não
fossem tomadas medidas restritivas e a pandemia se multiplicasse a ponto
de atingir a ti e a teus entes queridos?
Por que lamentas o que
te soa como perda ou privação? Nunca pensastes nas pessoas em situação
de guerra, nos refugiados, nos que não têm acesso a nenhum sistema de
saúde? Não contabilizes as tuas perdas, contabiliza os teus ganhos, como
estar vivo, gozar de boa saúde e desfrutar do convívio com tua família.
Por
que lamentas não suportar a solidão que te obriga a um encontro mais
íntimo contigo mesmo? Não é hora de dar um balanço na própria vida,
reavaliar os valores abraçados e reconsiderar convicções arraigadas? Não
é este o momento de reinventar-te?
Não lamentes! Tens um teto, o
alimento garantido e boa saúde. És um privilegiado. Lamenta, sim, por
aqueles que nada disso possuem. Não por escolha, e sim por serem vítimas
de um sistema econômico seletivo e excludente, no qual os interesses do
capital privado pairam acima dos direitos coletivos.
Não te
afogues em teu lamento. Extraia dele forças para mudar o que consideras
injusto. E cuida-te! Não te julgues imortal. O teu e o meu dia
chegarão. Mas não apressemos os desígnios de Deus. Na vida nada tem
maior valor do que a própria vida.
Guarda teu pessimismo para dias
melhores. E repete a “Prece” de Fernando Pessoa: “Senhor, protege-me e
ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.”
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* Religioso dominicano. Escritor.
Fonte: https://domtotal.com/artigo/8736/2020/04/por-que-lamentas/
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