Carlos Heitor Cony*
Um amigo que muito preza V. Sa., que vela por
sua reputação, não podendo calar sua voz nesse momento em que a desonra
se abate sobre seu lar, vem, por meio desta, chamar a atenção de V. Sa.
para determinados fatos que não podem permanecer na ignorância do
principal interessado. É dever de um amigo consciencioso e fiel (que não
assina a presente a fim de que sua ação fique oculta e sem
glorificação) avisá-lo do que se passa.
Trata-se do procedimento abominável de sua mulher. Como seu amigo, eu
devia considerá-la como as grandes matronas da história e da lenda, como
a casta Suzana, como a mulher de Ulisses, como a mulher forte das
Escrituras.
Tal consideração só redobra a responsabilidade desse aviso leal. Pois
sua complacência tem-lhe fechado os olhos sobre fatos que todos
comentam. Sua mulher vai, dia sim, dia não, a misterioso dentista que
nunca termina o tratamento. E, além do dentista, há outros compromissos
sempre nos mesmos horários e no mesmo local: a cidade -nome vago que
denomina pecado e traição.
Tais circunstâncias têm passado despercebidas aos benevolentes olhos de
V. Sa., mas os olhos da turba não são benevolentes, justificando o que
se rosna com frequência acerca de seu lar. Chegam a insinuar que a
abastança de que goza V. Sa., em vez do seu modesto emprego municipal,
provém da bolsa de sua mulher, sempre provida -pasme!- por um dentista
certamente imaginário!
Acreditamos que este aviso bastará, despertando sua complacência um
tanto exagerada. Não queremos nem devemos adiantar nomes, locais,
horários e datas. Mas, se a tanto formos obrigados pela obstinação de
uma Bovary desgarrada no Catumbi, voltaremos ao assunto, pois a honra de
V. Sa. estará sempre sob a fiel e zelosa proteção de "um amigo
desinteressado".
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* Escritor. Jornalista. Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 27/01/2013
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