Luiz Felipe Pondé*
Somos uma cultura de frouxos viciados em conforto, que se lambem o tempo todo
Em 500 anos, não seremos lembrados como a geração do iPad, porque ele
será mais parecido com a idade da pedra do que com o que existirá em
termos de tecnologia.
Seremos lembrados como a era da vulnerabilidade e do sentimentalismo
barato. Somos uma cultura de frouxos viciados em conforto, que se lambem
o tempo todo e culpam os outros por tudo.
Proponho a leitura de dois livros que ainda não têm tradução para o
português (até onde sei), infelizmente. O primeiro, já antigo, de 2004,
do sociólogo inglês Frank Furedi, "Therapy Culture: Cultivating
Vulnerability in an Uncertain Age" (cultura da terapia: cultivando a
vulnerabilidade numa era incerta), ed. Routledge, London.
O segundo, de 2011, do psiquiatra inglês (já falei dele nesta coluna e
vou repetir mil vezes até alguma editora se tocar e publicá-lo no
Brasil) Theodore Dalrymple, "Spoilt Rotten: The Toxic Cult of
Sentimentality" (podre de mimado: o culto tóxico do sentimentalismo), da
Gibson Square, London.
Furedi é um egresso da formação frankfurtiana, portanto, de esquerda,
mas com forte influência do trabalho do historiador americano
Christopher Lasch, um dos desbravadores da categoria de narcisismo como
matriz da alma contemporânea.
Dalrymple, psiquiatra de cadeias e hospitais dos pobres ingleses, que
atuou anos na África, identificado com o pensamento conservador
anglo-saxão, explode muitas das soluções da psicologia social
foucaultiana a partir de sua experiência clínica: as pessoas não são
vítimas de sistema nenhum, e o serviço público, quando institucionaliza
esta crença idiota no "sistema", faz das pessoas retardados morais.
Já é hora de ultrapassarmos a barreira da ignorância alimentada pela
esquerda brasileira, que gosta de identificar o pensamento conservador
anglo-saxão com fascismos racistas, religiosos e sexistas. Pura má-fé
deles. Estão morrendo de medo de quem não tem mais medo deles. Risadas?
A marca do pensamento conservador anglo-saxão é seu empirismo cético
contrário às especulações que marcam a crítica social francesa e alemã
do século 20. Como diz a historiadora conservadora americana Gertrude
Himmelfarb, "a realidade não parece encorajar especulações".
Esquerda e direita podem, sim, dialogar quando não está em questão
"propor" mundos ideais, mas sim identificar nossas misérias
contemporâneas.
Mas o que vem a ser a cultura da terapia e seu culto da vulnerabilidade
(Furedi)? Trata-se da contaminação da cultura pela ideia de que todos
temos problemas e devemos confessá-los publicamente, e, por isso mesmo,
somos vítimas eternas.
Ninguém é, de fato, responsável pelos males que faz, mas sim vítima de
"problemas psicológicos ou sociais". Vejamos dois exemplos dados por
Furedi em seu livro.
O primeiro se dá no Reino Unido. Empregado negro acusa patrão de
racismo. Abre um processo. Apesar de outros empregados afirmarem nunca
terem visto atitudes racistas no patrão, ele é condenado sob a alegação
de que, se o empregado negro se sentiu constrangido, é o bastante,
porque somos racistas inconscientemente, porque o "inconsciente é
ideológico", como numa espécie de doença psicossocial. Hilário, não?
O segundo caso se dá nos EUA. Um bebê é encontrado morto na casa dos
pais pela avó materna. A mãe, que estava num bar bebendo com o pai da
criança no momento, quando julgada, argumenta que não tinha sido criada
pela mãe com o afeto correto, por isso não tinha aprendido a ser mãe.
Ridículo?
E o que vem a ser o culto do sentimentalismo barato (Dalrymple)? Entre vários sintomas, um dos mais fortes se sente na educação.
Toda criança é linda, boa e pode amar seus colegas. Hoje em dia, todo
mundo tem problema. Um dia, será proibido reprovar um aluno sob pena de
que você está sendo insensível para com seus limites psicológicos ou
sociais.
Outro sintoma é a obrigação das pessoas mostrarem que "care" (se
importam) com alguma coisa. Se você colocar a foto de uma criança
africana pobre no "Face", você come (quase) todo mundo.
Chore por um panda e defenda o aborto de crianças. Você será top na balada.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Folha on line, 14/01/2013
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