Roberto Damatta*
Ser humano é não poder saber. Quem nasce onça
sabe que morre onça. Quem nasce homem
sabe que morre onça. Quem nasce homem
não sabe como morre.
Francis Duval
Houve um tempo em que eu convidava pessoas para palestrar nas
instituições em que trabalhava e eventualmente dirigia. Fiz muitas vezes
o papel de anfitrião no Museu Nacional e quando ensinei nos Estados
Unidos.
A distância imposta pela língua inglesa e por uma audiência pontual e
com um comportamento exemplar sempre causava nervosismo nos
apresentadores latino-americanos, os quais, como norma, iam perdendo o
inglês irreprochável usado no início da conferência e, na medida em que a
palestra se desenrolava, acabavam falando com um pitoresco sotaque
espanhol ou luso-brasileiro.
Observei isso muitas vezes e eu mesmo sofri dessa agonia quando tive
como ouvintes antropólogos famosos, que eu estudava até as pestanas
queimarem e admirava extremamente. Tais disposições psicocoloniais
promoviam um nervosismo geral, que se manifestava na pronúncia, no
esquecimento das palavras a serem usadas em inglês (ou francês) e, em
alguns casos, em acessos de uma indesejável tremura nas mãos, a ponto de
impedir a leitura da conferência ou, como se diz metonicamente em
inglês, do "paper".
Lembro-me de um caso exemplar. Um dos meus convidados brasileiros
para proferir uma aula em Notre Dame tremia tanto que desistiu da
leitura, abandonou as notas e passou a falar de improviso, gaguejando
assustadoramente. Mas a despeito dessas agruras, as ideias que
apresentou sobre o tema A Impossibilidade Cultural do Conceito de
Cultura - tão a gosto da antropologia social, essa disciplina que adora
messianismos e carisma -, na palestra despertou uma apaixonada discussão
abafada tarde da noite, num bar.
Ali, num ambiente mais relaxado, ele me perguntou se tudo havia
corrido bem. Disse-lhe que sim, que o encontro havia sido um sucesso,
exceto pelo tremor de suas mãos. "Tremor? Que tremor?", reagiu meu
colega em voz alta, visivelmente irritado. "Não houve tremor nenhum!",
exclamou, encerrando o assunto e pegando com mão firme um pesado caneco
de cerveja.
Assustou-me a inconsciência. Esse não saber periférico (senão não
teria havido reação) que faz parte de todos os seres vivos, atacando
sobremaneira os humanos. Essas vítimas perenes do fazer sem querer ou,
melhor ainda, do fazer e não poder saber. Passei pela mesma coisa
inúmeras vezes e talvez os homens conheçam mais claramente o vexame de
ter um pedaço do corpo fora de controle do que as mulheres, mas o fato é
que há coisas que não sabemos.
Ou que não podemos saber. A vida está em outro lugar tanto quanto o
tremor do meu colega. Se soubesse como seria minha vida quando tinha 20 e
poucos anos não teria vivido, diz-me um velho companheiro das
trincheiras magras. Viver é muito perigoso, afirmava Guimarães Rosa. É a
inocência do não saber que permite viver a vida, digo eu.
A negação faz parte da vida humana. Um leão não dorme se pressente
uma ameaça, mas um homem dorme feliz mesmo sabendo que cada noite bem
dormida o aproxima da morte. A consciência foca em alguma coisa com
intensidade e, com a mesma força, reduz tudo o mais a um resíduo a ser
esquecido. O foco tem como contrapartida a alienação. Ademais, a vida
contém a ignorância que vira destino ou carma justamente porque ela tem
um fim. O mundo continua, mas eu sei que vou partir. Quando os sinais se
invertem surge um sonho de onipotência próximo da loucura dos crentes.
A consciência do início e do fim atrapalha, mas sem ela não teríamos a
obrigação de inventar biografias e de não poder ver certas coisas. O
final fabrica a origem.
Num país moderno, as estatísticas surgem como tremores não
convidados. O governo diz uma coisa, mas os números, que são prova do
nosso mais concreto inconsciente comunitário, revelam uma outra. Os
acusados proclamam suas inocências. Ninguém, nem mesmo aqueles com um
faro mais possante do que o de um perdigueiro, sem o qual não se chega
às altas esferas do poder, diz que sabia. Mas quando a promotoria reúne
os fatos e constrói a narrativa acusatória, temos um manual de crimes.
Surgem então o "pibinho" de dona Dilma, a gerentona; o mensalão da
casta petista; e o caso de Rosemary Noronha. Em cada um desses
episódios, algo de fora despe algo de dentro. Há um hiato desagradável
e, nos casos em pauta, surpreendente, a se julgar pelo quadro de valores
de um partido que ia mudar o Brasil e liquidar a corrupção.
Na democracia, a imprensa faz esse papel. Como os tremores e as meias
furadas, ela coloca em foco aquilo que os projetos de poder e o
populismo seboso escondem. O "fato" é a pista. É o objeto fora do lugar
que leva ao criminoso, porque o bandido tomou todas as precauções, mas
mesmo nas consciências mais abrangentes sempre falta algo. O criminoso
usa luvas, mas não olha onde pisa. O conferencista controlava tudo,
menos as mãos que tremiam orgulhosamente como uma bandeira nacional
acariciada pelo vento.
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* Antropólogo. Escritor.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,16/01/2013
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