Inês Gil*
O cinema sempre teve uma relação particular com o
sagrado por ser uma arte que parte da imagem do real para o
desconstruir e que ao recria-lo com a sua própria ordem lhe dá um novo
sentido. Enquanto sistema simbólico desenvolvido à volta da criação do
mundo e da existência do homem o cinema representa uma excelente via de
reflexão existencial e metafísica sobre o mistério da espessura da realidade.
A filmologia analisou o problema da origem a partir da
perspetiva da sala de cinema como fantasma uterino, como lugar
iniciático que leva o espetador a um estado de regressão. Hoje, com as
novas formas de percepção a partir do ecrã de televisão e do computador,
essa possibilidade de retorno à origem desaparece, pelo menos é
reduzida. Assim, a abordagem deste texto parte da forma como o cinema,
enquanto objeto fílmico, representa o sagrado a partir da sua imagem do
corpo} considerando que a origem do sagrado se situa no real.
A representação do corpo evoluiu ao longo da história
do cinema. O plano, nos primeiros filmes da história do cinema, tinha
um enquadramento geral e fixo e por isso era chamado "plano-quadro"
porque a câmara estava na plateia. As personagens atuavam como se
estivessem num palco de teatro, gesticulando de forma exagerada, para
que o espetador percebesse claramente qual era o sentimento ou a emoção
expressos. Os rostos não se viam porque o enquadramento afastado dos
corpos não permitia a percepção das suas expressões. Para mudar de ação,
mudava-se o cenário, mas guardava-se o mesmo enquadramento. Quando D.
W. Griffith aproximou a câmara dos corpos, cortou-o aos pedaços (escala
de planos) mas o cinema ganhou uma nova linguagem fílmica e o ator
encontrou uma nova forma de expressão. Já não precisava da pantomima
para ser visto. Pelo contrário, com o grande plano, a expressão tinha
que ser contida para não cair na caricatura.
Infelizmente, a imagem do corpo tornou-se rapidamente artificial e contribuiu para a criação de um star system que
se servia do poder fotogénico da câmara para criar personagens
idealizadas. Por outro lado, ao longo da sua história o cinema mostrou
que teve sempre a preocupação de se renovar} encontrando novas formas
estéticas e narrativas. Por exemplo, a força expressiva do grande plano
permitiu-lhe desenvolver uma natureza sagrada, e revelar-se uma "arte
espiritual" como o definiu Henri Agel em 1952.
Hoje, o cineasta francês Bruno Dumont fala de "místíca
do cinema", que pode ser entendida como interrogação perante o mistério
da existência humana e as suas contradições. Nesse caso, a câmara
afasta-se dos corpos para os investir da atmosfera do espaço em que se
encontram.
Rever o conceito de "sagrado"
Definir o conceito de sagrado revela-se
particularmente importante porque vários cineastas contemporâneos ao
afirmarem-se ateus, não deixam de procurar exprimir o sagrado ou a
espiritualidade na sua obra.
O que é o sagrado hoje? Definir o sagrado
contemporâneo não é tarefa fácil, depois de uma secularização cada vez
mais óbvia das sociedades. No entanto, o sagrado continua a ser
procurado e expresso, em particular pela arte. E se o sagrado está a
transformar-se, libertando-se da iconografia tradicional religiosa, ele
está presente de forma implícita, em particular no realismo. A forma
como alguns cineastas tratam a imagem do corpo permite ao espetador
fazer a experiência direta do sagrado; é aliás um espaço de
manifestação contemporânea do sagrado.
Pode-se continuar a entender o sagrado como força
transcendente? Será que hoje a experiência fílmica do sagrado pode ser
feita sem a presença explícita do religioso, levando à criação de uma
nova estética do corpo cinematográfico? Marie.José Mondzain define o
sagrado como uma energia:
«É uma energia e nada mais, mas uma energia específica
porque paradoxal: é uma potência sísmica, um estrondo da natureza que
pode ser destruidor como construtor. ( ... ) É a manifestação de
intensidades contraditórias no coração do mundo, enquanto este mundo é
primeiro uma experiência do real antes de ser a representação regulada
de uma realidade simbolizável» (traduzido pela autora deste texto),
Marie-José Mondzain, "De la sacralité d'une oeuvre profane. Quelques
remarques sur les films de Tarkovski", Croyances et sacré au cinema, Paris, Charles Corlet, 2010, pp. 157-158.
Pode-se acrescentar que o sagrado é uma "energia do
real" constituído por uma série de pequenas forças que despertam o
respeito, a distância, a admiração, a aversão, o medo e muito mais.
O grande plano e a origem do sagrado fílmico
Por exemplo, em A Paixão de Joana d'Arc de
Carl Dreyer já não é o tema religioso que toca o espetador mas a
expressão transcendente que se manifesta em todos os grandes planos do
filme. Da força do Mal à fragilidade da inocência, nada escapa ao olhar
háptico da câmara. O sofrimento de Joana d' Arc parece projetar-se
para além da superfície do ecrã. O grande plano funciona como uma
revelação da alma e como imagem do desejo. Joana d'Arc procura
a voz divina e a Inquisição quer condená-la à morte, por heresia, ou
simplesmente pela necessidade de sacrificar uma vítima para reencontrar
um território pacífico (interior e exterior). O grande plano é o plano
da presença e do contato direto com o espetador. Carl Dreyer criou uma
imagem da natureza humana, no seu extremo sofrimento ou no seu gozo
sádico, retirando o artifício estético para reforçar o realismo das
emoções.
A Paixão de Joana d'Arc, Carl Dreyer (1928)
A história de Joana d'Arc acaba por ser a revelação do
sagrado, através da procura do divino. O grande plano representa o
ponto de vista da jovem mártir de duas formas: Joana d'Arc transcende a
realidade porque tem uma experiência mística com Deus, mas
simultaneamente é particularmente sensível à presença do mal, porque
está inocente. Os grandes planos acentuam a força ameaçadora dos seus
acusadores e através da passagem de um rosto a um outro, o cineasta
questiona a condição humana: o "rosto" do sofrimento entra em conflito
com o "rosto" do mal que existe no ser humano. Se o grande plano dá
origem à experiência do Sagrado, é porque apresenta uma imagem do
invisível e revela uma realidade que transcende o espetador. O
enquadramento frontal e aproximado como um ícone transfigura as
personagens, cuja luz interior se encontra projetada à superfície do seu
corpo.
Em A Paixão de Joana d'Arc, a origem do
sagrado está na procura de Deus, mas é sobretudo a partir dos afetos e
das emoções expressos pelo grande plano que o espetador faz a
experiência do sagrado.
A ausência de Deus como origem do sagrado
Ao contrário de A Paixão de Joana d'Arc que
utiliza a forma estética, o neorrealismo italiano procura revelar a
complexidade da experiência humana através da "imagem-fato", que André
Bazin definiu como uma imagem sem pretensão semântica à priori, porque o
espetador encontraria o seu significado quando fizesse a sua
associação com outra imagem-fato.
Alemanha, Ano Zero, Roberto Rossellini (1948)
Para Bazin, o neorrealismo baseia-se na fenomenologia
estética. Não existe uma relação de causalidade entre as imagens na
narrativa do cinema neorrealista: tal como no mundo, as imagens não têm
uma ordem predeterminada. Numa realidade regida pelo aleatório, o homem
deve ir à procura da ordem para dar sentido à sua vida. No seu ensaio
sobre espiritualidade e media,Ron Austin lembra que no cinema
neorrealista, o caráter das personagens não é psicológico, mas é
fundado a partir da sua expressão e dos seus gestos, e por isso reforça
a "intuição de ser". Gilles Deleuze atribui-lhe uma temporalidade
específica: a imagem-tempo remete para um cinema onde o tempo é
privilegiado à ação e as suas personagens existem, simplesmente. Os
corpos desligam-se cada vez mais da ação e estão apresentados na sua
condição presente.
Roberto Rossellini, em Alemanha Ano Zero procura
exprimir o Sagrado através de um encontro entre a realidade exterior e
o espaço interior (mental e emocional) do ser humano. Pode-se falar em
"realismo fenomenológico" porque é um realismo que quer exprimir a
totalidade do ser através do mundo das aparências. Por exemplo,
Rossellini utiliza planos afastados para permitir uma interpretação da
ação cinematográfica, não impondo a sua visão do mundo, porque mostrar o
sofrimento, a tragédia} pode transformar um olhar observador num
prazer voyeur, e acabar por cair num "fato-espetáculo". Em Alemanha Ano Zeroexiste
uma "suspensão metafísíca", que nasce da relação que existe entre as
personagens e o mundo visível: quando o pequeno Edmund atravessa as
ruínas da cidade destruída antes do seu suicídio, existe uma decalagem entre a consciência e a paisagem que não se fundem mas entram em ressonância, uma com outra.
É a aparente ausência de Deus na narrativa que reforça
a presença invisível da transcendência. A atmosfera que se exprime da
relação entre o corpo jovem e as ruínas urbanas cria uma "aura" na
imagem. Esta atmosfera é composta por forças opostas: o sagrado da vida
confronta-se com a violência da realidade. Em Alemanha Ano Zero,as
atitudes das personagens são muitas vezes ambíguas porque são atitudes
existenciais que não são predeterminadas. Quando Edmund dá o veneno a
beber ao seu pai, ele acredita realmente que está a libertá-lo; é para o
bem do seu pai. Rossellini procura o sagrado no mistério da
existência, sem tentar explicar o porquê do absurdo e da desordem do
mundo. É na graça que ele o encontra, porque é ela que constrói a
liberdade do ser humano. Para o cineasta, a integridade é o que torna a
alma mais forte, e é mais potente do que qualquer arma. O
sagrado é a possibilidade que o homem tem de lutar contra o Mal e de
sentir a força da vida, mesmo nos momentos mais dolorosos.
Pier Paolo Pasolini: o profano como origem do sagrado
Na obra de Pasolini o sagrado ocupa um lugar
particular: para ele, o princípio imanente do sagrado encontra-se no
interior do real, isto é, o espetador deve descobrir o sagrado numa
dimensão mais profunda da realidade, porque a sua natureza não é
sensível.
O Evangelho Segundo Mateus, Pier Paolo Pasolini (1964)
A origem do sagrado está no homem e a melhor forma de o
captar é mostrar o corpo do homem tal como é na vida. A câmara pode
revelar a natureza sagrada do mundo a partir da imagem dos rostos e das
suas expressões, afastando-se das formas plásticas convencionais.
Quando, na cena da Adoração dos Magos em O Evangelho Segundo Mateus, Pasolini reenquadra em zoom o
rosto de um jovem em vez de mostrar a oferta que esse tinha para o
menino Jesus, ele manifesta o sagrado (que existe na humanidade)
através da imagem de humildade e de inocência num rosto. É também uma
forma de se afastar de um materialismo alienante que induz um falso
encontro com o sagrado. O marxismo de Pasolini está patente na opção de
filmar nos bairros pobres para voltar a uma origem, não conspurcada
pelo capitalismo.
A partir da técnica cinematográfica procura exprimir
sinais reveladores do sagrado no mundo, como a presença de Jesus Cristo
e a sua mensagem aos homens. Pasolini quebra com a estética clássica
de representação do sagrado (como a que Dreyer utilizou em A Paixão de Joana d'Arc) para
criar tensões e conflitos formais. É nessas rupturas que se exprime o
sagrado como a suspensão temporal de um olhar silencioso: por exemplo,
quando João Batista reconhece Jesus na cena do batismo, existe como uma
ruptura no tempo e no espaço: o momento torna-se atemporal, porque
transcende o real e o silêncio dos olhares manifesta a realidade e o
sagrado do encontro.
Pasolini recusa o enquadramento tradicional do ícone
que pode levar à idolatria: Jesus nunca é divinizado, mas apresentado
como um homem simples que procura compreender o mundo para o tornar
mais próximo do sagrado. Os movimentos óticos da câmara são violentos e
criam uma sensação de instabilidade no espetador. O filme abandonou a
invisibilidade da montagem em raccord, deixando a técnica
sensível. Pasolini apela a uma participação ativa da parte do espetador
para que ele seja sensível à manifestação do sagrado presente no
filme.
No cinema a questão do sagrado está mais próximo do
humano do que do estereótipo do divino, para encontrar um lugar
original onde o transcendente e o imanente coexistam, por exemplo no
tempo. Vimos que o movimento neorrealista foi o primeiro a privilegiar a
relação que o mundo tem com o tempo, que por sua vez investe a sua
passagem no corpo das personagens. Com ou sem Deus, o homem atravessa a
vida e as suas dificuldades} sendo o seu corpo a prova da sua presença
no mundo real. O movimento do tempo leva-o por um caminho desconhecido
que o obrigará a decidir se quer lutar com ou para a vida.
Aurélien Liarte mostra que, hoje, a remanescência do
sagrado está mais ligado ao espaço imaginário do corpo do que ao corpo
propriamente dito. Roger Bastide fala de "sagrado selvagem", sem
estrutura simbólica na sua metamorfose contemporânea . O sagrado esta
hoje confuso e ainda não encontrou o seu território. É um "sagrado
híbrido" que está "em trânsito", à procura de um reconhecimento para
ser legítimo. No entanto} cada vez mais} o sagrado tende para o domínio
do sensível ".
Julia Kristeva interroga se o sagrado poderá ter uma
temporalidade determinada: «O sagrado, passagem fora do tempo. está
provado de começo e de fim. Quando começa o momento sagrado? Não se sabe
bem» (traduzido pela autora deste texto. Julia Kristeva, Catherine
Clément, Le féminin et le sacré, Paris, Tock, 2007, p. 252).O
sagrado está sempre ligado à temporalidade, de uma forma finita ou
infinita. A sua representação cinematográfica através da imagem dos
corpos na obra de John Cassavetes, e em particular em Faces,marca uma nova reflexão sobre a relação do ser humano com a sua condição existencial.
O corpo que resiste
Se Pasolini se serviu do "profano fílmico" para introduzir uma nova forma de exprimir o sagrado em O Evangelho Segundo Mateus,
quatro anos mais tarde, em 1968} John Cassavetes propõe uma
cinematografia dos corpos para revelar uma consciencialização do mundo
através da expressão de emoções "puras", isto é, tornar visível os
movimentos internos do homem. No capítulo "Cinema, corpo e cérebro,
pensamento" do Imagem-Tempo,Gilles Deleuze diz:
Faces, John Cassavetes (1968)
«É a grandeza da obra de Cassavetes ter alterado a
história, a intriga ou a acção, mas mesmo o espaço, para atingir as
atitudes como as categorias que põem o tempo no corpo, assim como o
pensamento na vida. Quando Cassavetes diz que as personagens não têm de
vir da história ou da intriga, mas a história ser segregada pelas
personagens, ele resume a exigência de um cinema dos corpos: a
personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais, e o que tem
que sair é o gestus, isto é, um "espectáculo", uma teatralização ou
uma dramatização que vale para qualquer intriga. Faces
constrói-se nas atitudes do corpo apresentadas como rostos indo até à
careta, exprimindo a expectativa, o cansaço, a vertigem, a depressão».
Em Faces,a utilização do grande plano permite
novamente a expressão do invisível, do espiritual imanente ao homem,
mas a câmara autonomizou-se em relação ao grande plano de Dreyer: já não
serve para enquadrar o objeto, mas parece estar à procura dele (do
rosto) na densidade do real. É na interioridade dos rostos que se
encontra o sagrado, na sua busca de sentido no espaço cinematográfico
da vida; a câmara tenta acompanhar os seus movimentos imprevisíveis,
chamando por uma resposta no incomensurável caos das relações humanas.
Em Faces,o movimento contínuo dos corpos perante uma câmara
invasiva e instável provoca uma relação de imersão entre o espetador e a
imagem. Os corpos parecem resistir à câmara, e ela está à procura
deles; essas forças contrárias (entre a ótica e o real) criam um
desfasamento, uma dessincronização entre a imagem e o seu assunto, que
reforça a experiência do sagrado através da expressão emocional das
personagens.
Os jogos de luz permitem aos rostos encontrarem a sua
verdadeira interioridade: ao atravessarem o claro-escuro no
enquadramento, eles desvendam a essência paradoxal da existência
humana, revelando inveja, desejo, ou um vazio existencial
incontornável. O sagrado está presente no silêncio da imagem que mostra
uma resistência dos corpos ao encontrar um mundo que não entende nem
controla, prontos para se entregarem à vida mas retidos pela
complexidade das forças emocionais da natureza humana. É nos rostos que
resistem ao espaço da câmara que se encontra a origem da revelação do
Sagrado, despojado de sentido religioso mas profundamente humanista.
Filmar a origem
O grande plano pode também ser utilizado para criar
uma sensação de "estranheza inquietante", para chegar ao sagrado, no
meio da transgressão, a partir do olhar proibido (o sagrado induz
também a questão do interdito).
L'humanité, Bruno Dumont (1999)
Encontra-se uma forma de deslocação do sagrado no
cinema de Bruno Dumont, que procura «um sagrado humanista, uma vida
espiritual, uma transcendência, sem Deus e sem Igreja».Sendo ateu, ele
afirma que Deus só lhe interessa na sua forma poética. No entanto o
cineasta menciona o desejo e a necessidade de recuperar noções como a
graça, a santidade e sobretudo a "metafísica da mística" e daí se falar
de antropologia profana e teológica na sua obra.
Em L'Humanité, Bruno Dumont utiliza os corpos
da suas personagens para exprimir o invisível (a origem) através da
representação do mistério da humanidade, confrontada com o mal e o seu
desejo de o transcender. Faraó, o protagonista, figura crística de
amor, inocência e compaixão, depara-se com um corpo feminino abandonado
no campo. Dumont inspirou-se da instalação Étant donnés de
Marcel Duchamp, para tornar o olhar escópico do espetador numa
experiência real. Mais à frente, é a partir da referência clara e
assumida da "Origem do Mundo" de Gustave Courbet, que Dumont propõe uma
definição icónica do sagrado na sua transgressão (não se deve mostrar o
que é privado e profundamente íntimo) e profanação (o grande plano
invade e exibe a intimidade visualmente proibida tornando-a obscena).
No princípio do filme, após a sua horrível descoberta,
Faraó caí na terra húmida de um campo gradado e Dumont faz um grande
plano do seu rosto com os olhos abertos e fixos como se estivesse
morto. Essa imagem representa a sua incapacidade de lidar com uma
situação que o transcende (o horrível crime de uma menina) e o desejo de
retorno à origem-mãe, a terra. Numa leitura bíblica podia-se
acrescentar que é o desejo do retorno ao paraíso, antes da queda da
humanidade e da sua exposição ao mal. Houve-se o mundo através do vento
e do canto dos pássaros.
Bruno Dumont mostra ainda vários planos de pormenor do
corpo das várias personagens para as transfigurar (a imagem crua das
dobras sujas e suadas do pescoço obeso do comissário é particularmente
expressiva na sua banalidade). O plano de pormenor isola um fragmento
do objeto da sua totalidade e do seu contexto; o resultado é a imagem
puramente ótica de um detalhe (não é visível ao olho nu} a sua
proximidade levando a uma inevitável percepção desfocada) que encontra
uma nova configuração. O fragmento corporal transfigura-se e, ao
separar-se do resto} desperta uma sensação de profundo desconforto no
espetador, que através do seu olhar é obrigado a profanar o sagrado.
Bruno Dumont mostra que o sagrado encontra-se na origem
do ser humano e se manifesta quando a experiência de existir se torna
mais densa. O cineasta procura o sagrado no homem, e para o exprimir
serve-se do real para incluir o fictício, ou a experiência do
transcendente. É na tensão que existe entre eles que se manifesta o
sagrado. Será por exemplo a dissonância entre o som da natureza e o
rosto sobrenatural de Faraó enfiado na terra; ou é o alongamento do
tempo que as personagens levam a reagir que cria um "desajuste"
estético na imagem.
Se o cinema sempre se interessou em representar o
sagrado, é na sua forma menos ilustrativa que melhor o conseguiu, sendo
a experiência do sagrado uma experiência "superior" à realidade ou que
procura ultrapassar a experiência do dia-a-dia. No entanto é a partir
da realidade que o sagrado se encontra e o cinema com os seus meios
formais, vai questionar o mundo e a condição humana. O sagrado
exprime-se através do encontro entre várias forças que criam uma tensão
visual ou sonora, positiva ou negativa, espacial ou temporal.
A originalidade do cinema é de poder exprimir o
sagrado a partir da imagem do real e do mundo interior do homem,
utilizando o grande plano, o movimento da câmara ou outros meios
técnicos que conseguem tornar visível o invisível, para o tornar
imediato e presente na experiência do espetador.
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
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* Professora na licenciatura em Cinema da Universidade Lusófona, Lisboa, Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
In Didaskalia, 1/2012
* Professora na licenciatura em Cinema da Universidade Lusófona, Lisboa, Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
In Didaskalia, 1/2012
Fonte:http://www.snpcultura.org/o_corpo_a_origem_e_o_sagrado_no_cinema_introducao.html 28.01.13
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