Nossa vida cotidiana tornou-se quase inteiramente regida por
princípios utilitários, pragmáticos, instrumentais, lamenta o poeta e
filósofo carioca Antonio Cicero, de 67 anos. "Sempre foi assim, porém
hoje as novas tecnologias eletrônicas potencializaram essa subordinação
da vida ao princípio do desempenho." Ele reconhece que elas mudaram a
vida de todos nós, que houve um avanço e uma transformação. Mas isso
será apenas bom? "Ao invés de economizarem nosso tempo, as novas
tecnologias o consomem." A tecnologia do século XXI devora o tempo.
Devora o próprio século XXI. Resta-nos pouco tempo para meditar e
contemplar. Para viver.
Para escapar dessa armadilha, Cicero - que no dia 11 se inscreveu
para concorrer à vaga deixada pelo poeta Ledo Ivo na Academia Brasileira
de Letras - se impõe certas regras pessoais, que segue com abnegação.
Só consulta seus e-mails duas vezes por dia. Acessa a internet, na maior
parte das vezes, apenas para fazer pesquisas, usando-a, assim, como uma
antiga enciclopédia. Mantém um blog, chamado Acontecimentos (antoniocicero.blogspot.com.br),
mas só o alimenta, com textos seus ou alheios, a cada dois dias. Também
não participa das redes sociais, como o Facebook e o Twitter. Mesmo o
celular, só o utiliza no caso de emergências, embora nele carregue
também alguns dicionários e outros textos, de que eventualmente se vale.
"Para mim, é imprescindível ter tempo", diz.
No mundo instrumentalizado e pragmático em que vivemos, ele admite,
"é grande o pessimismo com que muitos consideram as artes tradicionais
e, em particular, a poesia". Nosso mundo é veloz, obcecado por índices e
resultados, quer as coisas sempre "para ontem". Tem como ideal,
portanto, devorar o tempo, não usufruí-lo. "As artes tradicionais têm
perdido sentido na medida em que deixaram de corresponder à exaltação
contemporânea da atividade veloz, multifuncional, polivalente." Ninguém
pode ler poesia, Cicero lembra, como quem lê um e-mail ou uma bula. A
poesia não se lê apressadamente, mas, ao contrário, exige lentidão e
entrega, paciência e concentração, devaneio e tempo. A poesia exige de
seu leitor uma entrega absoluta. "Para ler poesia, o leitor deve
entregar-se incondicionalmente, por um tempo determinado, aos caprichos
semânticos, sintáticos, sonoros do poema." Mais uma vez: a leitura da
poesia exige tempo. Dizendo de outra forma: a matéria da poesia é o
próprio tempo.
O mais grave: essa entrega incondicional não oferece ao leitor
garantia alguma de que ele terá, ao fim da leitura, um resultado
palpável. A verdade é que não o terá. Em consequência, lembra Cicero,
para a maioria das pessoas a poesia guarda um aspecto anacrônico.
Extemporâneo, intempestivo, inoportuno. A poesia parece estar "fora do
tempo" quando, ao contrário, ela é, por excelência, o lugar do tempo.
Avisa Cicero, desde logo, que não partilha desse pessimismo em relação à
poesia e às artes. "Ao contrário, penso que, ao abrir para o leitor uma
dimensão do ser oposta à utilitária, pragmática, instrumental, uma
dimensão do tempo que não é regida pelo princípio do desempenho, a
literatura lhe oferece a possibilidade de um enorme enriquecimento
vital." A poesia é um sopro que nos desperta. Mas é também uma brisa
lenta e sutil, que exige paciência e serenidade. Quem chega a ela,
porém, se vitaliza.
Assim é Antonio Cicero em pleno terceiro milênio: um homem que,
justamente porque tem como matéria o tempo, está, de certo modo, fora do
tempo ou, pelo menos, contra o momentâneo. Sim: é preciso aqui
distinguir tempo e instante. O tempo é um fio, o instante é um corte. O
tempo é uma longa estrada, o instante um semáforo que nos leva a parar
para, logo depois, partir em disparada. Precisamos reaprender a
respirar. Tudo isso vem... com o tempo! O pai de Cicero tinha uma grande
biblioteca. Desde adolescente, ele pôde ler muito. Os portugueses, os
russos, os franceses, os ingleses, os alemães, os italianos. Admite:
"Hoje leio muito pouca ficção". Hoje lê, sobretudo, poesia e ensaio.
Poesia e filosofia. "Acho que é uma questão de administração do tempo.
Escrever sobre filosofia exige de mim um bom tempo de leitura, estudo e
reflexão." Outra vez, e mais uma vez, o tempo, que deve ser curtido,
alongado, prorrogado - isso em um século regido pelo culto ao
instantâneo e ao "tempo real", que nada mais é que uma lasca do tempo,
uma sucessão louca de fatias muito finas. E nos entulhamos dessas fatias
finas e avulsas e ao fim (do tempo) estamos intoxicados, sem poder
dizer o que engolimos. Não é assim nosso século?
Cicero lê também, é claro, muita poesia. E é a leitura da poesia,
como em um círculo mágico, que o leva a escrever poesia. Que o empurra
de volta a ela. Em seu livro mais recente, "Porventura" (Record), no
poema "Auden e Yeats", como se estivesse dialogando com o poeta irlandês
William B. Yeats (1865-1939), ele escreve: "possa a leitura da tua/
poesia, pura Musa,/ inspirar a minha arte". Outra vez a respiração. Mais
uma vez o tempo, com seu ritmo mais natural, o inspirar e expirar. "A
grande poesia, como a de Yeats, funciona para mim como uma Musa, que me
impele a escrever." Logo: a poesia não é soprada desde fora, pelas
filhas de Zeus, deusas distantes da Grécia antiga. É na própria poesia
que a Musa habita. A poesia é a Musa da poesia, nos leva Cicero a
pensar.
No mundo atual, lamenta Cicero,
"é grande o
pessimismo com que muitos consideram as artes tradicionais e, em
particular, a poesia"
Entre todos os poetas, ele diz ainda, aquele com quem continua mais a
aprender é Horácio (65 a.C.-8 a.C.), o poeta e filósofo da Roma antiga.
"Cada vez que releio um de seus poemas, maravilho-me como se estivesse
lendo pela primeira vez." Surpreende-se, sobretudo, com o modo como, nos
poemas de Horácio, cada palavra modifica e é modificada pelas demais.
Como se o poema estivesse vivo. (E não está?) Com seu olhar exigente,
Antonio Cicero - embora leia os poetas brasileiros contemporâneos -
acredita que a melhor poesia brasileira foi produzida no século XX.
"Sobretudo a partir do modernismo." Pensa em Bandeira, Drummond, Cabral,
Murilo Mendes, Cecília Meireles, poetas que constituem uma base muito
forte para a poesia contemporânea. "E penso que há poetas contemporâneos
que fazem jus a essa tradição." Discreto, prefere não citar nomes.
Quanto a si mesmo, porém, não consegue se situar "em nenhum cenário
literário". E, na verdade, nem faz questão disso. "Parece-me que, para
fazê-lo, seria preciso tentar ver-se como que pelos olhos dos outros, e
desconfio que quem consegue fazer tal coisa diminui a própria
espontaneidade e potência". Um poeta deve contar apenas com o próprio
olhar, ainda que esse olhar, a rigor, seja o da cegueira.
Cicero está cercado de livros. Lista que considera "nada original":
Shakespeare, Hölderlin, Leopardi, Baudelaire, Rilke, Brecht, Yeats,
Pessoa, Bandeira, Drummond e tantos outros. "Com eles aprendi que um
poema é um objeto de palavras que merece existir por si." Adverte,
porém, que essa afirmação não significa uma adesão ao formalismo. "Não é
apenas a forma das palavras que interessa num poema, mas tudo aquilo de
que ele é composto, inclusive os significados que ele suportar." Apesar
dessa ressalva, insiste: um poema merece existir por si. "Sua
apreciação mobiliza e confunde, isto é, atualiza, num jogo singular, as
nossas mais diversas faculdades." Não apenas o intelecto, mas a
imaginação, a razão, a sensibilidade, a sensualidade, a emoção - pensa
Cicero - são afetadas pela leitura de um poema. O leitor se agita por
inteiro. O poema (uma faca de palavras) o atravessa. A leitura do poema o
interroga e transforma.
Ainda na adolescência, recorda-se, descobriu o conselho do russo
Vladimir Maiakóvski (1893-1930), considerado o maior poeta do futurismo,
que recomendava aos jovens poetas carregarem sempre um caderninho de
notas e uma caneta. Até recentemente, cumpriu-o à risca. Depois
descobriu que podia usar o telefone celular não tanto como telefone, mas
como bloco de notas. "Eu o uso mais para isso, e como dicionário, do
que como telefone".
Também abandonou o papel: hoje escreve já as primeiras versões de
seus poemas no computador. Contudo, a sombra do papel permanece
inalterável: não consegue ler bem um poema e corrigi-lo, se o conserva
na tela do computador. Precisa imprimi-lo: só consegue mexer nele quando
o deixa de volta deitado no papel. Depois, retorna ao computador, mais
uma vez ao papel, outra ao computador etc., até o dia em que, por fim,
dá o poema por terminado. É um processo longo e lento, em que, pouco a
pouco, muitas palavras são abandonadas e muitas outras incorporadas, uma
longa gestação que exige persistência e paciência. De fato, nos mostra
Cicero, não existe poeta impaciente. Pelo menos, não para ele.
A poesia lhe surge de repente e em qualquer lugar. Pode surgir quando
já está deitado, quase dormindo ou quase acordando, e nesses casos
precisa se levantar correndo e anotá-la ou ela se perderá. "Caso não o
faça, ela será, em 99% dos casos, esquecida. As palavras são, como dizia
Homero, aladas, e voam para longe." Nada disso, contudo, o afeta ou
cansa. A poesia (mesmo o mais árduo dos poemas) sempre deu a Cicero
grande prazer e alegria. Entende assim: "A escrita é uma forma de
enfrentar e superar a dor ou o sofrimento". Nesse caso, enfim, a poesia
tem, sim, uma utilidade. Um uso íntimo, pessoal, secreto - que relação
alguma estabelece com as vantagens de mercado ou com os objetivos da
produção. Cada poema a seu tempo. Cada poeta com seu tempo. Matéria da
poesia, o tempo é uma experiência singular e particular. Tempo de cada
um, sempre assim.
Cicero prepara, no momento, uma coletânea de ensaios. Ao mesmo tempo,
planeja escrever um livro sobre o niilismo. "Tento mostrar que a
filosofia radicalmente ambiciosa, que é aquela em que a razão busca a
verdade absoluta e universal, inevitavelmente conduz ao niilismo" (do
latim "nihil", isto é, nada). Hoje, apesar de seu apego à poesia, são,
sobretudo, as preocupações filosóficas que o movem. Embora considere
poesia e filosofia "atividades opostas", apega-se às duas. Enquanto a
filosofia depende de uma argumentação que a sustente, a poesia basta a
si mesma. São duas paixões antagônicas que, no entanto, ele não consegue
separar.
A preocupação central de Cicero, nos dois casos, é sempre com a
passagem do tempo. Depois dos 60 anos de idade, começou a se preocupar
cada vez mais - como é natural - com a idade, a velhice e a morte. O
tempo, mais uma vez, está no coração do poeta. Em seu último livro,
"Porventura", ele aparece no centro de poemas como "Balanço", "Palavras
Aladas", "Meio Fio" e "Presente". Matéria da poesia, o tempo é também,
no caso de Cicero, seu objeto. O tempo que, em seu caso, quase chega a
ser um sinônimo de poesia.
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