domingo, 20 de janeiro de 2013

Oração encomendada

Pier Paolo Pasolini* 
I

Deus, e agora?
A quem deitarei as sementes por cima do meu ombro esquerdo?
Será que posso desmembrar um morto
E enterrar os pedaços nos campos?
Será que em sonhos os mortos me aparecem
como máscaras ou ratos?
E depois, talvez eu tenha medo de que o Sol,
mais cedo ou mais tarde,
deixe de nascer, ou de que a erva deixe de crescer?
Vivo nesta contínua inquietação?
O ano é um tempo determinado,
Com princípio e fim,
E portanto com morte e ressurreição?
Terá a semente importância na minha vida?
Pensarei que a orgia no túmulo se segue à colheita?
Quanto à Lua, considero-a solidária com a serpente?
Estarei enganado, Deus,
Ou o tempo reabre-se
E já não tem a forma de um ovo?
Estarei enganado ou é o tempo dos ceifeiros que volta
(tão cheios de bondade)
E todo um sistema de religiões se desmorona?
Estarei enganado, ou deverei pensar
Que se fecha o parêntesis milenário
E que o problema dos camponeses
Apenas diz respeito aos ministros dos negócios estrangeiros?
E portanto que tu, o filho, já não és uma vítima
ungida de manteiga derretida
Enquanto a tua mãe já não é a que sobe ou se eleva
Pelos degraus da grande escadaria?
Não será a separação que começa entre mim e a terra?
As nossas mortes, ou melhor, as nossas letargias
Não deixaram de ser comuns?
Esta... história... exterior que começa a extinguir-se
Não será em breve completamente estranha,
Para quem não ler obras sobre a era camponesa
E portanto sobre certos pormenores desprezíveis da
história palestina?
Não serei o último a cumprir os rituais desta história
(resumidos em sintomas que só têm significado para os que
compreendem)?
E tu, não serás hoje o que eu não sei nem sinto?
Isto é, mais no futuro do que no passado?
E eu rezo-te? E encomendo estas orações?
Ah! antepassados ceifeiros que não sabíeis lançar a semente,
Nem sentíeis a obrigação de conservar a vida
Dos que para comer (ter a vida) abatíeis,
Sereis novamente atuais? Os meus próprios contemporâneos?
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 * Trad.: Isabel de St. Aubyn, in Pier Paolo Pasolini, As Últimas Palavras de um Ímpio, Distri Editora, 1985
Fonte:  http://www.snpcultura.org/20/01/2013
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