(*) Ucho Haddad
A
morte é um ato inevitável no palco da vida. O último deles. Todos sabem
disso, mas preferimos fingir desconhecimento por causa da dor causada
pela ausência. É melhor assim, pois do contrário a vida perderia a
graça, seria tomada pela contínua preocupação com o fim.
Disse o poeta e astrólogo romano Marcus Manilius: “Começamos a morrer
no momento em que nascemos, e o fim é o desfecho do início”. Manilius
tinha razão. O fim é a cortina do prelúdio, é o fim de um começo sem
fim.
O tempo é o senhor da razão. Transmuta-se em verdade. O problema
maior é encará-la, porque por vezes ela é maior que a nossa capacidade
de suportar, de compreender, de aceitar. Algumas verdades sempre ecoarão
como mentiras dentro de cada um. Há quem garanta que o tempo cicatriza
as úlceras da alma, cura os arranhões do coração. Pode ser, mas não
tenho certeza. Creio que o tempo se incumbe de colocar pensamentos e
sentimentos complexos, dolorosos e mais doloridos, em um compartimento
equidistante da razão e da emoção. Mas é um serviço sem garantia eterna.
Em algum momento, mesmo que por curto tempo, o pensamento volta e causa
uma revolução.
Eis o que faz da imperfeição humana algo interessante e, muitas,
vezes, prazeroso. Somos feitos também de sentimentos. Algumas pessoas
entram e saem das nossas vidas como o abrir e fechar da porta de um
“saloon” de faroeste. Algumas entram porque queremos, ma saem sem que
saibamos a razão. Algumas entram e ficam, deixando lembranças,
ensinamentos, saudades. Há as que entram nas nossas vidas e as levamos
para sempre, até o outro lado da vida, para a eternidade. Se é que isso
de fato existe. O importante é que essas pessoas, as que entram e
levamos, ficam de maneira especial, em lugar especial dentro de nós.
A involução do ser humano patrocinou, com o passar do tempo, a
banalização da morte. Como nominei um dos meus tantos artigos, a morte é
um espetáculo midiático. Os comunicadores encontraram nesse mórbido
nicho uma incansável cornucópia. Afinal, o calvário alheio funciona como
o éter que anestesia a dor e os problemas daqueles que alimentam esse
tipo de negócio. E essa fórmula covarde e milagreira precisa ser vendida
aos bolhões. Um dia, esses serão o anestésico da próxima leva de
desumanos. A vida é assim, é cíclica. É com a morte que a vida aciona a
sua essência ciclotímica.
Em tempos outros, alguém inventou que a vida do ser humano tinha um
prazo máximo de validade. Cem anos. Quem fosse antes era alvo de uma
frase quase lapidar: “morreu tão cedo!”. Não se morre cedo ou tarde,
apenas morre-se. A dolorosa linha do tempo será de responsabilidade dos
que ficaram. Esses definirão se foi cedo ou tarde. Nunca é tarde, por
mais que a razão nos sussurre o oposto. Essa invenção que surgiu do nada
ganhou força e foi ficando. Tanto é assim, que quando alguém ultrapassa
a casa dos cem anos a comemoração é maior. Dependo do grau de
notabilidade do aniversariante, o centenário vira manchete, entra para o
livro dos recordes.
Não importa se a morte ocorre aos 20 ou aos 100. É morte e quem fica
sofre. O sofrimento tende a mergulhar em um processo de auto-absorção,
mas o período para que isso ocorra depende de cada um, da forma de
reagir e de enfrentar a realidade. Certas pessoas não morrem, apenas
saem de cena. Continuam no palco do nosso imaginário, nas coxias das
nossas lembranças, nos bastidores do nosso pensamento.
Contudo, há um detalhe no cenário de morte que a faz ainda mais
dolorida e difícil de administrar. A forma como ela ocorre. E é por isso
que insisto em criticar o sensacionalismo midiático que tomou conta da
tragédia ocorrida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, assim como em
outras tantas que marcaram a história.
Há mortes que são aguardadas, o que não as tornam menos duras e
difíceis para os que ficam. Mas a cicatrização da dor é mais célere,
talvez menos vagarosa. Há mortes inesperadas, que ocorrem do nada e sem
explicação. Como alguém que dorme e não acorda. Quem fica “só” precisa
encarar a morte como uma realidade inevitável e administrar a dor que
ela provoca.
A morte que ocorre no vácuo de uma tragédia é diferente. Traz na
receita da dor um ingrediente a mais, teimoso, disposto a ficar
incomodando durante muito tempo, talvez durante a vida toda, até chegar a
nossa vez. Qual é esse ingrediente? Imaginar como tudo aconteceu. É o
movimento natural do pensamento de quem perdeu uma pessoa querida.
Quem está noticiando o fato quer saber do ineditismo, da
exclusividade, do furo de reportagem, dos índices de audiência, o quanto
o sensacionalismo renderá em termos financeiros. Não se pensa em
momento algum na dor de quem fica. Na dor que fica. Para ser mais claro,
cito como exemplo a reportagem feita dentro da boate que foi consumida
pelo fogo em Santa Maria e tirou a vida de 231 pessoas, na maioria
jovens.
O que essas imagens sórdidas, exibidas como troféu, podem acrescentar
em termos jornalísticos na história de um veículo de comunicação, no
currículo de um jornalista ou repórter? Nada, absolutamente nada. O que
podem as imagens subtrair daqueles que perderam seus familiares na
tragédia? Muito! Elas tiram o sono, o sossego da alma, o pouco que
restou da alegria de viver, a dignidade daqueles que ficaram. Dos que
esperaram um retorno que não aconteceu.
Situação idêntica ocorreu nos acidentes da Gol, da TAM e da Air
France. Para que serviram as imagens feitas na selva brasileira, no
aeroporto da capital paulista, nas águas do Atlântico? Serviram para
deixar dentro de cada um que perdeu alguém querido um oceano de dúvidas,
um matagal de conjecturas, que jamais terão um pouso seguro no rasar da
mente.
Por certo alguém me acusará de falso pudor, mas hei de não me
incomodar com ataques. Entre as tantas críticas que recebi de desafetos
profissionais, saqueadores da honra alheia, a de não ter diploma
universitário, e por isso não poder exercer o jornalismo, foi uma das
mais banais. Questionados, alguns detratores responderam que só o banco
da faculdade é capaz de ensinar como atuar e se comportar como um
profissional da notícia. Que dentro do canudo que se recebe no final do
curso vem, além do diploma, importantes lições de ética. Mentira! As
reportagens que foram levadas ao ar a partir de Santa Maria provaram o
contrário. As imagens macabras não deixaram dúvidas sobre isso.
Ética não se aprende sentado no banco da escola. Conquista-se no
berço, no ventre materno, vem no DNA, desenvolve-se no seio familiar.
Bom senso não se compra no armazém da esquina mais próxima. Coerência
não está disponível nas prateleiras dos supermercados com uma infinidade
de sabores e cores. A diferença está entre transformar-se em jornalista
e nascer jornalista. Pode parecer pouco, mas não é. Quem nasce
jornalista traz o ofício incrustado na alma. Quem transforma-se em
jornalista escora a profissão no sindicato pelego da categoria, que dá
ao incauto e soberbo um número rebuscado, como se fosse mais uma vítima
do holocausto da imprensa.
Entre ofício e profissão há uma monumental distância. Jornalismo é
meu ofício. E eu nasci jornalista. É por isso que respeito a dor alheia e
me recuso a embarcar no sensacionalismo barato e chicaneiro, que serve
apenas e tão somente para entupir os cofres dos veículos de comunicação e
saquear a dignidade de quem sofre. Por sorte Deus me presenteou com a
capacidade de escrever e me livrou da obrigação de gastar o suado
dinheiro para desaprender o que um saudoso e humilde engraxate me
ensinou.
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* Escritor. Jornalista.
Fonte: http://ucho.info/despudorada-e-gananciosa-como-mulher-de-lupanar-parte-da-imprensa-consegue-turbinar-a-dor-provocada-pela-morte
UCHO é de homens como voce que tenho orgulho do Brasil
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