Mino Carta*
Atenção! Embora pareça, esta cena não é dos dias de hoje
Não quero que os ricos chorem, dizia o líder do PSD sueco, Olof
Palme, quero é que os pobres riam. Palme, social-democrata autêntico,
foi primeiro-ministro e crente denodado da igualdade social. Sublinho
autêntico para que não seja confundido com nossos social-democratas de
fancaria.
Palme, assassinado por um demente, é um herói de outro tempo, quando a
religião do deus mercado ainda não vingara, dois impérios dividiam a
terra e as esquerdas da Europa Ocidental contribuíam de forma
determinante para o progresso dos seus povos. Não existiam oligarquias
financeiras para mandar mais que os governos nacionais e anátemas eram
lançados contra o chamado “capitalismo selvagem”.
É do conhecimento até do mundo mineral que a crise
dos dias de hoje foi deflagrada pela aplicação dos mandamentos
neoliberais, que ela não poupa o Brasil e que os remédios aviados até
agora pelos governos do ex-Primeiro Mundo mostram-se incapazes de
combater a origem do mal. Quando não cuidam, abertamente, de proteger
quem provocou o desastre, e mesmo de fortalecer-lhe o poder.
Vivemos o tempo dos super-ricos e dos superpobres. A diferença entre
uns e outros tornou-se voragem infinda, abismo sem fundo. O Brasil
também conta com seus super-ricos, arrolados nas listas anualmente
propostas ao espanto global. Esta privilegiadíssima tigrada dispõe de
fortunas calculáveis em bilhões e não é fácil entender como se deu esta
frenética, desenfreada multiplicação de dinheiro, enquanto bilhões de
seres humanos morrem de fome.
Sem pretender parafrasear Olof Palme, eu diria que os super-ricos me
incomodam muito menos do que os aspirantes a super-ricos. Medram no
Brasil, em diversos patamares da escada social, burgueses e burguesotes
de diversos calibres. Classes A e B1, digamos, sem excluir de pronto os
anseios recônditos de inúmeros remediados. Pergunto: que ricões, ricos,
riquinhos e sonhadores de riqueza são estes?
Algo é certo: não se trata dos burgueses que fizeram a Revolução
Industrial e a Revolução Francesa. Do meu modesto ponto de vista, anoto
que classe média tem um significado no Brasil e outro em diversos cantos
do globo. Claro, existem parâmetros econômicos para medições precisas,
embora pareça dilatada demais a separação entre limites mínimo e máximo
fixados no Brasil para figurar na categoria.
Coube à burguesia acabar com as monarquias por direito divino e selar
de certa forma, e de vez, o fim da antiguidade medieval. A classe média
europeia é uma larga maioria que incorporou e alargou os horizontes
burgueses, em termos de cultura no sentido mais amplo. Nada disso se
aplica ao Brasil, onde a casa-grande e a senzala, ou se quiserem, os
sobrados e os mocambos, continuam de pé, ao sabor de uma aparente
contemporaneidade que não lhes abranda os efeitos.
A ostentação do luxo é típica de uma herança
resistente na ausência de saber e verdadeiro refinamento, dramaticamente
compensados por atitudes toscas e mesmo vulgares. Há exceções, mas não
passam disto. Não é por acaso que o Brasil conta com um exército de mais
de 7 milhões de empregados domésticos. Recorde mundial estabelecido
quando há décadas este gênero de serviçal é cada vez mais raro nos
países democraticamente evoluídos. E nem se fale de manobristas,
passeadores de cachorros, babás. E assim por diante.
E que dizer da segurança privada, dos soturnos senhores de terno
escuro e gravata, escalados para a proteção de patrões em trajes esporte
fino, eventualmente de bermudas? Há, mundo afora, senhores graúdos que
não dispensam guarda-costas, capangas, jagunços. Não é simples
distinguir, porém, quem manda de quem obedece, e este não se perfila à
porta de prédios e mansões, de lojas de comércio retumbante ou de
restaurantes hoje habilitados a figurar entre os mais caros do planeta.
Sim, o país do futuro é estranhamente obsoleto e continua a pagar caro por três séculos e meio de escravidão.
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* Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas
Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas
Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S.
Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-heranca-da-casa-grande/
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