domingo, 20 de janeiro de 2013

Alegria é a prova dos nove

 Rubem Alves*


Digo que o corpo carrega duas caixas. Com a mão direita carrega uma caixa cheia de ferramentas, e com a mão esquerda uma caixa cheia de brinquedos..
Essa ideia simplíssima, resumo da minha filosofia de educação, me apareceu quando eu me dedicava a pensar sobre um texto de Santo Agostinho.

Pois ele, resumindo sua visão de mundo, disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas: a ordem do “uti” ( ele escrevia em Latim ) e a ordem do “frui”. “Uti” = utilidade, coisas que podem ser usadas para produzir outras, ferramentas, de martelos, que são ferramentas simples, a navios, que são ferramentas complicadas. E a ordem do “frui”, fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma.

A ordem do “uti” é o lugar do poder.Todas as ferramentas são inventados para aumentar o poder do corpo. Já a ordem do “frui”, ao contrário, é a ordem do amor – coisas que não são utilizadas, que não são ferramentas, que não servem para nada. Elas não são úteis; são inúteis. Porque não são para serem usadas mas para serem gozadas.
Aí vocês me perguntam: quem seria tolo de gastar tempo com coisas que não servem para nada, que são inúteis? Aquilo que não tem utilidade é jogado no lixo: lâmpada queimada, tubo de pasta dental vazio, caneta bic sem tinta...

Faz tempo preguei uma peça num grupo de cidadãos da terceira idade. Velhos aposentados. Inúteis. Comecei a minha fala solenemente. “Então os senhores e as senhoras finalmente chegaram à idade em que são totalmente inúteis...” Foi um pandemônio. Ficaram bravos. Me interromperam. E trataram de apresentar as provas de que ainda eram úteis. Da sua utilidade dependia o sentido de suas vidas. Minha provocação dera o resultado que eu esperava. Comecei, então, mansamente, a argumentar. “Então vocês encontram sentido para suas vidas na sua utilidade. Vocês são ferramentas. Não serão jogados no lixo. Vassouras, mesmo velhas, são úteis. Já uma música do Tom Jobim é inútil. Não há o que se fazer com ela. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que se parecem mais com as vassouras que com a música do Tom... Papel higiênico é muito útil. Não é preciso explicar.

Mas um poema da Cecília Meireles é inútil. Não é ferramenta. Não há o que fazer com ele. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que preferem a companhia do papel higiênico à companhia do poema da Cecília...” E assim fui, acrescentando exemplos. De repente os seus rostos se modificaram e compreenderam... A vida não se justifica pela utilidade. Ela se justifica pelo prazer e pela alegria – moradores da ordem da fruição. Por isso que Oswald de Andrade, no Manifesto Antropofágico, repetiu várias vezes “a alegria é a prova dos nove, a alegria é a prova dos nove...”

E foi precisamente isso que disse Santo Agostinho. As coisas da caixa de ferramentas, do poder, são meios de vida, necessários para a sobrevivência. As ferramentas não nos dão razões para viver. Elas só servem como chaves para abrir a caixa dos brinquedos.

Santo Agostinho não usou a palavra “brinquedo”. Sou eu quem a usa porque não encontro outra mais apropriada. Armar quebra-cabeças, empinar pipa, rodar pião, jogar xadrez, bilboquê, jogar sinuca, dançar, ler um conto, ver caleidoscópio: não levam a nada. Não existem para levar a coisa alguma. Quem está brincando já chegou. Comparem a intensidade das crianças ao brincar com o seu sofrimento ao fazer fichas de leitura! Afinal de contas, para que servem as fichas de leitura? São úteis? Dão prazer? Livros podem ser brinquedos?
O inglês e o alemão têm uma felicidade que não temos. Têm uma única palavra para se referir ao brinquedo e à arte. No inglês, play. No alemão, spielen. Arte e brinquedo são a mesma coisa: atividades inúteis que dão prazer e alegria. Poesia, música, pintura, escultura, dança, teatro, culinária: são todas brincadeiras que inventamos para que o corpo encontre a felicidade, ainda que em breves momentos de distração, como diria Guimarães Rosa.

Esse é o resumo da minha filosofia da educação. Resta perguntar: os saberes que se ensinam em nossas escolas são ferramentas? Tornam os alunos mais competentes para executar as tarefas práticas do cotidiano? E eles, alunos, aprendem a ver os objetos do mundo como se fossem brinquedos? Tem mais alegria? Infelizmente não há avaliações de múltipla escolha para se medir alegria...
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* Educador. Escritor.
Fonte: Correio Popular on line, 18/01/2013
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