domingo, 13 de janeiro de 2013

Prosopagnosia

Martha Medeiros*
 
Eu estava na fila do cinema, e ela dois passos à frente. Ela virava para trás, me olhava, e logo virava para frente de novo. Até que numa dessas viradas ela disse oi. Eu retribui: Oi. Ela: É isso aí, tu não me conhece, mas eu te conheço: tem que cumprimentar.

Eu sei, amiga.

Leitores me cumprimentam sem que eu os conheça, e tudo certo, já que há uma foto minha ao lado da coluna do jornal. Só vira um problema quando eu realmente conheço a pessoa que me cumprimenta, já conversei com ela em algum momento da vida, e não faço ideia de quem seja. Escrevi certa vez sobre isso: se a pessoa é a recepcionista da minha médica, e sempre a vejo de coque e de uniforme branco, ao passar por mim de vestido floreado e cabeleira solta no shopping, não vou reconhecê-la. Se o sujeito com quem cruzo na academia, sempre de calção e camiseta, entrar no restaurante de camisa polo e um blusão amarrado em torno do pescoço, não vou reconhecê-lo. Se o porteiro do meu prédio for filmado na arquibancada de um estádio vestindo a camiseta do seu time e segurando um cartaz dizendo “Olha eu aqui, Galvão”, periga o Galvão saber quem é: eu, não. Tenho uma incapacidade crônica de identificar pessoas fora do habitat em que costumo encontrá-las.

Sempre me justifiquei dizendo “Sou péssima fisionomista”, que é um chavão, mas não é mentira, e que, aliado aos meus três graus de astigmatismo, me garantia o perdão de algumas boas almas. Até que outro dia entrei numa loja de conveniências, um cara abriu os braços ao me ver e disse numa alegria comovente: “Marthinha!”. Achei meio íntimo para um leitor. Sorri amarelo e dei um “oi” igual ao que ofereci à moça da fila do cinema. Ele insistiu: “Martha, sou eu!”. Socorro, eu quem? Então ele disse seu nome. Pasme: era um ex-namorado!! A meu favor, deponho que foi um namorado da época da faculdade (não me obrigue a fazer as contas), mas, ora, ainda que tenha sido no tempo das cavernas, conviveu comigo. Ao menos o seu olhar deveria ser o mesmo. Me senti um inseto.

Pois bem, depois de anos soterrada em culpa, descubro que a medicina está do meu lado. Acabo de saber que “sou péssima fisionomista” possui nome científico: prosopagnosia. Uma doença que debilita a área do cérebro que distingue traços e expressões faciais. Estou lendo o excelente Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera, cujo personagem vive o mesmo desconforto. Alguns médicos dizem que há apenas 100 casos diagnosticados no mundo – provavelmente eu e outros 99 acusados injustamente de ter o nariz em pé. Mas há quem diga também que o problema é mais comum do que se pensa e que atinge uma a cada 50 pessoas, ou seja, é praticamente uma epidemia.

Comum ou incomum, me concedam o benefício da dúvida: talvez eu seja uma pobre vítima da prosopagnosia e por isso não saio por aí dando dois beijinhos e perguntando pela família de quem, a priori, nunca vi antes. Se não for prosopagnosia, acredite: é astigmatismo evoluindo para uma catarata, somada a uma palermice que me dificulta distinguir semblantes. Nariz em pé, juro que não é.
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* Escritora. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 13/01/2013

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