sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Suicídio e colapso do humano


Em meu entender, a famosa e repetida afirmação de Albert Camus — a de o “suicídio ser o único problema sério da filosofia” — já perdeu a validade. Vivesse hoje, Camus talvez concluísse que “viver é o único problema sério da filosofia”, pois já entramos na era do pós-humano. Como, pois, ser verdadeiramente humano nessa pós-humanidade? Talvez, tenha sido essa a desolação de Walmor, humano com alma de artista que viu desaparecer a alma do mundo.

Estranhamente, pois, recebi a notícia do suicídio do notável ator com naturalidade, como algo corriqueiro, inevitável. E vejam que, sempre, tive paixão pela vida. Muitas vezes, disse e escrevi que fizera um acordo com Deus para eu morrer com 127 anos. Seria a idade em que eu veria a minha palmeira indiana florir e, depois, fenecer. Agora, no entanto, quero desfazer o acordo. Seria tempo demais e o cansaço e o enjoo me alcançaram, forçando-me a recusar esse desenfreado carrossel de futilidades e banalidades.

Pois começo — como muitos — a perder o interesse pelas coisas, agoniando-me com o colapso do ser e das sociedades humanas. Cadê o verdadeiro mundo? — estou, sempre, perguntando-me. Para, por fim, admitir que somente é possível continuar vivendo se se criar um mundo pequenino, pessoal, com pessoas que se ama e com quem se tem afinidades, numa nova versão de cavernas e catacumbas.

Entendi a opção extrema de Walmor. Ele já criara a sua caverna, já se recolhera, exilando-se ao final. Viveu da arte e pela arte. E, aos poucos, o belo foi desaparecendo, o palco ficou menor, a plateia esvaziou-se e o intérprete da vida ficou sem ter o que e para quem representar. É a solidão do exilado da própria vida, vendo a indústria cultural transformar em mero e vulgar espetáculo o que fora sagrado. A arte é sagrada. E o palco foi, desde o princípio, o seu altar. Walmor ficou sem plateia, sem interlocutor. Para quem iria, ele, interpretar Shakespeare, Beckett, Brecht?
Certamente, para apenas alguns gatos pingados se, ao mesmo tempo, houvesse um show com Michel Teló.
Muito longe estou de aplaudir ou estimular o suicídio. Mas aprendi a compreendê-lo a partir da agonia e do colapso do ser humano. Ninguém é humano apenas por ter nascido, mas o será como resultado de uma construção. Se mal construído, o primata pode virar monstro, bicho. Se bem modelado, torneado, educado, com consciência moral reta — eis que surge o humano.

O ser humano é massa bruta pronta para ser amoldada. Há alguns anos, revelou-se, por exemplo, porque os mercenários do Nepal eram os mais eficientes, capazes e cruéis. Trata-se de um aprendizado, de uma construção. Eles aprendiam, primeiro, a matar formigas, baratas. Depois, ratos, gatos e cães. Em seguida, porcos, vacas, veados, bois. E, finalmente, a consciência estava consolidada com a naturalidade do assassínio. Era o passo final para matar homens. Sem qualquer senso de culpa.

A vida é um dom, um bem sagrado. Acredito nisso. Mas de que vale ela, se for profanada, espezinhada, mediocrizada, reduzida a um estado de servidão? Quando a dignidade de viver se perde, nada sobra. E permitimos o desencadeamento desse processo destrutivo. De sujeito, passamos a objeto. Apenas isso. E, por fim, aceitamos o colapso do humano, a agonia do humanismo. Como um humano poderá viver na pós-humanidade?

Pela óptica simplesmente religiosa, o suicídio é condenado e condenável. O destino do homem, para escritores religiosos, está vinculado à vontade divina, que impôs uma lei natural. Para, quase todos eles, é uma covardia diante das vicissitudes da vida. No entanto, o filósofo Fichte — cuja obra apenas foi celebrada postumamente — via-o como um ato de coragem. E refletia: “Se confrontado com o homem virtuoso, o suicida é um covarde. Mas, se confrontado com o miserável — que se submete à desonra e à escravidão para prolongar por alguns anos o sentimento mesquinho de existir — é um herói.” O nosso é um tempo de miseráveis morais.

Walmor, em meu entender, não mais suportou submeter-se à desonra e à escravidão desse universo mercantilista, recusando-se a estar vivo apenas na mediocridade. Aliás, segundo Cícero, “o sábio precisa saber que, às vezes, tem o dever de sair da vida mesmo sendo feliz; e o tolo tem de continuar vivendo, mesmo sendo infeliz.”
Com o colapso do humano, quem — com sensibilidade — aceita ser pós-humano?
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* Colunista do Correio Popular
Fonte:  http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/01/24
Imagem da Internet

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