David Coimbra*
O desespero foi o que restou para os familiares das mais de 200 vítimas do incêndio na boate Kiss
O horror, o horror. A frase que encerra um dos maiores clássicos da
literatura universal, O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, bem serve
para descrever o que ocorreu em Santa Maria a partir da noite de sábado
para domingo, e que ainda não terminou, e que, para centenas de pessoas,
não terminará jamais.
Pelo menos 230 jovens (até a noite de ontem) morreram em um incêndio
que destruiu a boate Kiss, no centro da cidade. Eram, quase todos,
estudantes de diversos cursos da Universidade Federal. Até o meio da
madrugada, estavam festejando a vida, rindo, dançando e se divertindo.
Horas depois, quando o sol se ergueu sobre a cidade, jaziam no chão do
ginásio municipal, o Farrezão, como se fossem vítimas de alguma guerra
terrível.
Quem esteve no interior desse ginásio nunca esquecerá o que viu. Não
poderá esquecer. As ruas do entorno foram bloqueadas pela polícia.
Populares silenciosos se aglomeravam atrás dos cordões de isolamento. Só
os familiares das vítimas podiam passar. Eram encaminhados para o
primeiro prédio do ginásio, sentavam-se nas arquibancadas e esperavam.
Pelo que esperavam aqueles pais e mães? Esperavam que o nome de seus
filhos fosse anunciado pelo sistema de som. Então, se erguiam trêmulos
dos bancos de pedra e eram encaminhados por funcionários para o prédio
ao lado, para proceder à identificação dos corpos.
E ali, no prédio ao lado, uma grande quadra de futebol sete, nesse
prédio habitava o pesadelo. Mais de duzentos corpos estavam deitados de
costas, lado a lado, formando corredores macabros que se estendiam de
uma ponta a outra da quadra. Caminhei por esses corredores.
Vi os rostos daqueles meninos e meninas, muitos com expressões
surpreendentemente serenas. Alguns estavam queimados e muito machucados,
alguns ainda manchados de sangue, vários deles com as faces
enegrecidas, mas quase nenhum carbonizado. Morreram de asfixia. Por
causa da fumaça, não do fogo.
Os rapazes foram colocados na primeira metade da quadra, as moças na
segunda. Todos sobre uma lona preta. As meninas foram pudicamente
cobertas até a cintura por outra lona, já que muitas vestiam minissaias.
As carteiras, documentos e celulares foram postos sobre o peito de seus
donos. Durante boa parte da manhã, esses celulares tocavam sem parar.
Os funcionários circulavam por entre os corpos e não sabiam o que fazer.
Deviam atender? Deviam falar com os pais desesperados que queriam
notícias dos filhos?
A identificação dos homens foi mais fácil, porque a maioria deles
levava documentos nos bolsos das calças. As mulheres carregavam os
documentos nas bolsas, obviamente esquecidas na confusão que se iniciou
às 2h30min. Um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se
apresentava no palco situado no fundo da boate, acendeu um sinalizador
para incrementar o show. Uma faísca do sinalizador saltou para o teto de
isopor e espuma, que, de imediato, pegou fogo.
As pessoas começaram a correr para a saída, mas foram barradas pelos
seguranças, que acharam que se tratava de uma briga. Outros confundiram a
porta do banheiro com a de uma saída de emergência e correram para lá.
Foi a pior das decisões.
Desesperadas, as pessoas tentavam sair pelas basculantes e acabaram
se pisoteando umas às outras. Quando os bombeiros chegaram ao banheiro,
encontraram os corpos empilhados.
É a maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. Nunca, no
Estado, houve um cenário como o do ginásio municipal de Santa Maria, com
mais de 200 corpos dos filhos desse chão rojados sobre uma lona vulgar,
deitados de olhos fechados, os membros já tomados pelo rigor da morte,
alguns com os braços estendidos como se pedissem socorro, alguns com as
mãos em garra, tantos outros parecendo calmos, como se dormissem. Muitas
meninas lindas, muitos meninos de tênis e camiseta, todos tão jovens,
tão jovens, tão jovens. O horror, o horror.
-----------
* Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 28/01/2013
Foto:
Félix Zucco / Agencia RBS
Nenhum comentário:
Postar um comentário