Roberto Romano descreve minuciosamente os processos sociais e políticos que desembocaram nos mais distintos processos de intolerância ao longo da história ocidental
Intolerância e radicalização são uma espécie de sinônimos com
etimologias distintas. Isso significa dizer que onde há uma, há outra.
Após fazer um recorrido histórico no Ocidente sobre as formas de
intolerância que desembocam nas que conhecemos, o professor e
pesquisador Roberto Romano chama atenção para a história recente do
Brasil. “Ao longo dos tempos em países escravistas como o Brasil, o
exercício de cultos com origens africanas foi criminalizado. Ainda no
século XX, no Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, polícia
sanguinária que envergonha todo ser humano, existia uma Delegacia de
Cultos para perseguir as ‘religiões primitivas’”, destaca o pensador em
entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Entretanto, Romano não reduz as experiências de intolerância somente
ao viés das religiões. “Com o fim da URSS e o triunfo do neoliberalismo
em escala planetária, tivemos no pontificado de João Paulo II a união
estratégica do mundo oficial católico com a ideologia do mercado
absoluto, assumida por Ronald Reagan, Margaret Thatcher, e outros”,
frisa. “A benção do papa a Pinochet foi o ápice de uma pouco santa
aliança entre a política Vaticana e o veto das tentativas de manter a
democracia, os direitos dos diferentes, a laicidade”, complementa.
O medo, filho dileto da intolerância, há séculos é o expediente que
torna possível uma política calcada no terror, ora dos poderes eclesiais
e monarcas, ora dos soberanos modernos, ora do sistema financeiro
mundial. Disso, decorre o papel da comunicação que transforma os
semelhantes em inimigos. “Após duas ditaduras que inocularam o medo na
população, os programas televisivos e radiofônicos exercem um mister
importante da razão de Estado: apontar o próprio povo como inimigo a ser
ferido, distraindo assim a massa dos arcana imperii que se forjam nos
palácios”, avalia Romano.
Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes Études en
Sciences Sociales - EHESS, França, e é professor de Filosofia na
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Escreveu, entre outros, os
livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo:
Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997),
Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC,
2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva,
2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Intolerância e modernidade estão diretamente relacionadas? Por quê?
Roberto Romano - Uma causa da radicalização
intolerante reside no crescimento das comunicações entre culturas
diferentes. No mundo antigo existiam duas situações sociais diversas. Em
primeiro lugar os povos com idêntica religião, formas jurídicas e
políticas. Claro, tais formas resultaram de massacre dos vencidos ou
tratados. Mas o estrangeiro não chega a ser ameaça absoluta à coesão
interna, ele é sempre “bárbaro” e inferior. A intolerância face ao outro
cimenta a unidade do povo.
A polis grega exemplifica tal atitude mental. A intolerância judaica,
na época de Cristo, define a identidade popular com hegemonia de certos
elementos sobre os demais. Daí, os debates da nascente Igreja cristã,
entre os que desejavam manter traços do judaísmo (liderados pelo
Apóstolo Pedro) e os que viam na religião nova a universalidade que
relativizaria a vida judaica, romana ou grega, com Paulo.
A segunda via foi a do controle imperial. Roma é o grande paradigma.
As tentativas imperiais gregas (sobretudo atenienses, veja-se Tucídides
na Guerra do Peloponeso) fracassaram porque os cidadãos de Atenas
quiseram impor todos os seus valores e cultura aos submetidos, além de
amealhar impostos escorchantes e indevidos. Já os romanos souberam, com
maestria, tolerar culturas e religiões as mais diversas, desde que
submetidas ao poder imperial. Os povos dominados eram tidos como
bárbaros, mas a cidadania romana estava aberta aos indivíduos
estrangeiros.
Helenismo
Com o fim do mando romano e o advento do “helenismo”, surgem
doutrinas que relativizam as culturas de cada Estado, tendo em vista a
lógica do universal. É o caso dos estoicos, com a utopia de uma
cosmópolis. Como o universo teria como base o “logos”, apenas a
irracionalidade e a loucura sustentariam as paixões ligadas ao ódio
contra os homens. Cícero e Sêneca apontam para os procedimentos
imprudentes que se ligam à irracional intolerância, a ira está entre
eles.
Idade Média
Durante a Idade Média, a respublica christiana era vista como cultura
universal (católica) com a força de integrar em si mesma as
diversidades culturais dos povos. A intolerância do corpo eclesiástico
(que inclui o mundo civil) se dirigia contra as seitas heréticas. Após a
corrosão da referida respublica christiana, em especial com Lutero, os
Estados nacionais retomam a tese e a prática da uniformização cultural
interna a cada povo. No Tratado de Westfália houve a independência de
fato diante do antigo edifício católico. Cada Estado possui o direito de
possuir uma religião, a do príncipe, e de vetar outras práticas
religiosas ou políticas contrárias ao poder estatal.
Todo esse processo ocorre numa acelerada urbanização que favorece o
crescimento dos mercados e das formas políticas burocráticas e
centralizadoras. O Estado não se prende a esta ou àquela tendência
religiosa ou cultural, mas impõe seu regime a todas e de todas recebe
resistência. O processo de secularização e luta pelo controle de corpos
e mentes, travado pelos poderes civis e religiosos, resulta das guerras
religiosas e dinásticas dos séculos XVI e XVII.
Conquistas
Simultaneamente ao fortalecimento do poder estatal às expensas das
igrejas (católica e reformadas) vieram as conquistas coloniais na
África, Américas, Ásia. Ao ampliar em escala planetária a matriz grega e
romana do etnocentrismo, que dividia o mundo entre “homens” e
“bárbaros”, Espanha, Portugal, França, Inglaterra retomaram de forma
inédita a Cruzada cristã, a busca de poder e lucro fácil tendo como
preço vários genocídios. O europeu cristão invadiu e massacrou milhões
na América: a população indígena no futuro território dos EUA ia de 8 a
12 milhões de indivíduos. No final do século XIX eles eram 400 mil, na
melhor hipótese. A matança destruiu cerca de 95% das vidas não cristãs.
As técnicas de genocídio foram muitas, diretas na eliminação física, ou
indiretas na destruição da caça, a deportação, redução do espaço
disponível aos índios, justaposição de tribos diferentes num mesmo
território, o que provocou fome e lutas entre elas. Alexis Tocqueville
testemunhou tal processo de eliminação do outro pelos cristãos, o que
matizou seu juízo sobre a democracia americana.
Massacre na América do Sul
Na América central e do Sul o massacre foi idêntico, ou pior. Apesar
de missionários como Las Casas e da ação jesuítica na defesa dos
índios, portugueses e espanhóis destruíram culturas inteiras,
escravizaram pessoas e impuseram suas crenças religiosas, políticas,
militares. A intolerante violência não foi monopólio dos católicos. Os
protestantes, em territórios americanos do Sul, viam nos índios e em
suas práticas, em especial as religiosas, perigosa presença demoníaca.
Cruzadas contemporâneas
Potências coloniais europeias, a França e a Inglaterra, sobretudo,
mas também a Bélgica, sugaram o sangue humano, as riquezas e corroeram
as culturas africanas, do Médio e do Extremo Oriente. A virulência
colonial que ditava medidas como a inglesa na China (“Proibida a entrada
de cães e chineses”), na Índia e na Palestina foi retomada pelos
norte-americanos no caso do Irã, em plena Guerra Fria. Nos arredores das
cidades iranianas, onde eram jogados os trabalhadores da indústria
petrolífera, a miséria grassava. Os bairros “brancos e cristãos” eram
proibidos aos nativos. No Irã os EUA deram o primeiro dos golpes de
Estado que depois aplicaram no mundo inteiro, com parceria de ditadores
sanguinários. A leitura de livros recentes, escritos por
norte-americanos e europeus, mostra o quanto os EUA sucederam a
geopolítica genocida dos antigos colonizadores.
A cruzada norte-americana que visa impor seu estilo de vida e cultura
aos povos do mundo traz como fruto o ressentimento e o ódio à violência
usada pela CIA, mariners e fantoches políticos proclamados
“presidentes” dos submetidos. Mesmo funcionários graduados da CIA
perceberam a extensão da intolerância imperial norte-americana e de seus
aliados europeus.
Pavor intolerante
Mas o pavor intolerante não se detém aí. Milhões de africanos foram
trazidos para o continente americano (do Norte ao Sul) para serem
forçados ao trabalho escravo tendo em vista o lucro dos brancos
cristãos. Nenhum respeito existiu diante das religiões, dos corpos e
almas dos submetidos pela força bruta ou astúcia. Ao longo dos tempos em
países escravistas como o Brasil, o exercício de cultos com origens
africanas foi criminalizado. Ainda no século XX no Departamento de Ordem
Política e Social - DOPS, polícia sanguinária que envergonha todo ser
humano, existia uma Delegacia de Cultos para perseguir as “religiões
primitivas”.
Voltemos à aurora da modernidade. Nela ocorre a tentativa de
homogeneização forçada, pelos Estados dominantes, das culturas e
inclusive das línguas, com a resistência dos segmentos particulares às
exigências do poder político colonizador. Na Europa, cidades que
prosperaram desde o século XVI mostram a vitória do Estado sobre as
Igrejas (católica e reformadas) e a insubordinação destas últimas diante
do mando centralizado nas Cortes. Sem o domínio pleno da ordem
política, as várias tendências religiosas e culturais do ambiente urbano
levantam o desejo de uniformidade, umas contra as outras. E temos a
leva de sedições e lutas que terminam no espetáculo terrível da Noite de
São Bartolomeu. ,
Mútua intolerância
A paz imposta pelo Estado não resolve o clima de intolerância gerado
pelas estruturas eclesiais, umas contra as outras. A massa urbana é
instrumento de ódios e vinganças, com preconceitos de todos os tipos. O
ruído, o rumor, os boatos comuns em outros ângulos da vida citadina são
potenciados pela indignação diante da justiça e da polícia dos reis. Sem
poder assassinar seus inimigos protestantes ou católicos, a massa
dirigida por demagogos de ambos os lados assumem rumores e acusações
mútuas, a partir das mais leves desconfianças. O caso Calas no século
XVIII exemplifica esta intolerância urbana mesmo e sobretudo contra o
controle do Estado absolutista. Calas era protestante e tinha um filho
que gostava de música e ia às igrejas católicas para ouvir boas
composições. Na hora da janta o filho desaparece. Ele é encontrado
morto. De imediato correm os rumores de que o pai o matou porque… ele
estaria se convertendo ao catolicismo. O boato corre pela França,
sobretudo Paris. Do rumor ao processo, deste à execução tremenda, foi um
passo. Ou seja, suspeitar que um protestante tivesse receio da
conversão filial, à injustiça de um processo enviesado, tudo entra na
lógica da mútua intolerância que reina no Estado e na sociedade
moderna.
A rapidez na comunicação, em vez de diminuir a intolerância, a
potenciou. Além dos rumores, os libelos, os panfletos, os jornais
passaram a trazer ódio às formas diferentes de agir e de pensar. As
Luzes, aparentemente opostas aos sectarismos, buscam a perspectiva
cosmopolita antiga, sem sucesso. Desde as campanhas dos iluministas os
meios de comunicação de massa têm sido orientados para se tornarem
porta-vozes de Estados laicos. De um lado os Philosophes pregam, na
trilha estoica e depois de John Locke, a tolerância. Mas à socapa
disseminam ódios contra as religiões e seus seguidores. Nas entrelinhas
da Encyclopédie diderotiana é possível ler o que se escrevia e
publicava, de modo anônimo, ao grande público. Muitas teses virulentas,
como o Tratado dos Três Impostores (Moisés, Jesus, Maomé) encontram suas
fontes nas dobras dos verbetes editados por Diderot. ,
Revolução Francesa
Na Revolução Francesa os líderes fizeram propaganda da laicidade para
ganhar a opinião pública e supostamente impedir lutas sectárias.
Católicos e protestantes tinham duas tarefas: salvar a República e a
própria alma. Mas, para os descristianizadores, Salus populi significava
destruir a religião. Para eles, só o ateu seria patriota. Os demais?
Supersticiosos inimigos do povo. Resultado desastroso porque banidos os
crentes "a Revolução congelou" (Saint-Just). O radicalismo intolerante
foi corrigido pelo culto do Ser Supremo, no fim da República. Ainda em
1793 a Convenção coíbe o fanatismo dos ateus que destruía os vínculos
políticos.
Ao comentar o decreto contra as procissões (1792) o jornal Père
Duchesne ataca os crentes como cafards (baratas) e foutus cagots (gente
sem valor), bougres de bêtes e outros mimos. Qualquer denúncia de
jornalistas, no periódico, conduz à guilhotina. Os convencionais, apesar
de tudo, exigem deter os sacrilégios "em nome da paz civil". Eles
reiteram que "não se manda nas consciências". No decreto de 21/02/1795,
"nenhum signo particular a um culto pode ser posto em lugar público
(...) mas quem usar da violência contra um culto qualquer, ou ultrajar
os seus objetos, será punido segundo a lei de 1791 sobre a polícia
correcional". O texto prova que o elo entre descristianizadores e
racionalidade é falso. O fanatismo da razão gera a propaganda do Terror.
Assassinar suspeitos? Um baile ao som alegre do saíra. A intolerância
moderna é partilhada, portanto, por religiosos e ateus. Muitos frutos
venenosos saíram desta sementeira política e teológica dos séculos
XVIII, XIX, XX. O culto ao Estado tem nexos com a intolerância
revolucionária. A manada humana tangida no século XX pelos regimes
totalitários tem como inimigo o campo religioso, em todas as suas
formas. No caso do fascismo e do hitlerismo, logo se tornou patente para
as igrejas (as que ainda mantiveram sua autonomia e não se reduziram a
meros departamentos do poder policial) que a sua intolerância diante da
transcendência era visceral. Na União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas - URSS e seus países submetidos o ateísmo, se tornou, de modo
perfeitamente intolerante, instituição oficial. Erra muito quem
identifica “intolerância” na vida moderna apenas ao campo religioso. A
semente do ódio germina em setores que existiam antes da secularização
laica e depois dela.
Brasil
E no Brasil? Aqui, na primeira linha, as formações religiosas que
hoje buscam se apropriar do maior número possível das mídias, ampliam em
escala inimaginável a sua própria Propaganda fidei, em forma de
intolerantes batalhas contra os “inimigos”. A Igreja Católica seguiu,
até o meio do século XX, uma linha defensiva (A Cruzada da Boa Imprensa)
com o controle de rádios, jornais, televisões. Mas ainda no século XIX e
inícios do século XX, ela contava com um número muitas vezes maior de
fiéis do que todas as denominações protestantes reunidas. Sua posição
defensiva (de Cristandade) era uma estratégia que compensava carências
missionárias de conquista, em alianças com os Estados. Ainda nos inícios
do século XX, muitos católicos pensavam como o Padre Soares d’Azevedo: a
catolicidade seria a fonte lídima da nação brasileira, sendo os
protestantes destruidores da unidade nacional e, mesmo, agentes do
imperialismo norte-americano. Aliás, o padre voltou suas baterias para
todos os campos, laicos e religiosos, opostos ao nacionalismo católico.
Assim, em 1922, ele enunciava: “Pestosos? Para a ilha Grande.
Anarquistas? Expulsão sumária do território nacional (…) mesmo assim a
gripe e o tifo, etc. aqui entraram. Mesmo assim explodiram bombas de
dinamite em numerosas cidades (…) Fizeram-se paredes e greves (…)
Vencerá a peste? Triunfará a anarquia? Não é provável. Contra a primeira
dispõe o governo de soros excelentes. Para a segunda, de uma atilada
polícia de repressão. Afinal, fala o instinto de defesa. O sulfato de
quinino tem em apertos desses honra de marechal” (Brado de Alarme). Além
dos “pestosos”, denunciava o sacerdote, existiam as seitas protestantes
de origem norte-americana e, portanto, imperialistas. As iniciativas
defensivas dos católicos se voltaram para garantir o já ganho com as
Cruzadas Eucarísticas, a Liga Eleitoral, a censura, o apoio aos governos
autoritários.
Concílio Vaticano II
O Concílio Vaticano II, com o ecumenismo, atenuou as batalhas entre
confissões religiosas. Mas ele coexistiu com instantes agudos da Guerra
Fria quando as ideologias socialistas e capitalistas, que serviam à
razão de Estado, espalharam ódios no planeta, chegando à beira de
catástrofe nuclear. O maniqueísmo da propaganda usada pela “civilização
cristã e ocidental” e pelo mundo socialista espalhou ditaduras
intolerantes nas Américas e Ásia. O outro só poderia ser, como inimigo,
aniquilado. No Brasil, a Marcha da Família com Deus pela liberdade
afirmou a divisão do mundo em dois polos, o comunista a ser derrotado a
qualquer custo, mesmo que sob ditadura e destruição dos direitos
humanos, e o cristão. Na cópia do macartismo, tivemos o brado de
“Brasil, ame-o ou deixe-o”. Seria impossível às diferenças o convívio no
mesmo espaço, agora dominado pela Doutrina da Segurança Nacional.
Com o fim da URSS e o triunfo do neoliberalismo em escala planetária,
doutrina aplicada quase sempre manu militari e muita propaganda,
tivemos no pontificado de João Paulo II a união estratégica do mundo
oficial católico com a ideologia do mercado absoluto, assumida por
Ronald Reagan, Margaret Thatcher, e outros. A benção do papa a
Pinochet foi o ápice de uma pouco santa aliança entre a política
Vaticana e o veto das tentativas de manter a democracia, os direitos dos
diferentes, a laicidade.
Censura nos Seminários
A censura nos seminários, intervenções em dioceses importantes como a
de São Paulo, a perseguição aos teólogos e filósofos ligados à Teologia
da Libertação, tudo confluiu para afastar a prática católica dos mais
fracos, o que aumentou o poder de elites inescrupulosas que jogavam no
mercado de ações o destino de povos inteiros. Foi a era dos yuppies, que
levou à catástrofe financeira e política de 2008.
Pontificado de João Paulo II
O pontificado de João Paulo II freou tais reformas, em prol de um
modelo de cristandade rígido e não afeito ao diálogo interno ou externo à
catolicidade. No mesmo passo as igrejas reformadas, perseguidas antes
do século XIX, também perdem fiéis para os movimentos fundamentalistas e
carismáticos que, auxiliados por técnicas eficazes de propaganda e
organização empresarial, acolheram os que não encontravam mais lugar no
mundo oficial católico ou protestante. A Igreja, até o século XX, via,
nos demais, cristãos hereges a serem combatidos por todos os meios,
imprensa, cinema, política, polícia. Ela usou seus veículos de
comunicação como instrumento de caça aos diferentes. Uma leitura da
Revista Eclesiástica Brasileira - REB, dos periódicos editados pela
Vozes de Petrópolis, pode mostrar o quanto a belicosidade católica era
exercida contra as formas cristãs ou não cristãs. Os fundamentalistas
protestantes não se incomodam em usar todo tipo de ataque, mesmo os mais
baixos, contra os católicos a partir dos anos 80 do século XX. Os mais
ardilosos dentre eles, como os donos da Igreja Universal do Reino de
Deus, estabeleceram uma estratégia inédita de tomada do poder, visando
nova teocracia moderna baseada na mídia e no voto.
Teologia política contrarrevolucionária
Pelo visto, o plano de poder proposto por Edir Macedo funciona. A
massa de deputados conservadores eleitos para o legislativo federal, sua
hostilização das diferenças e propostas contrárias aos direitos
humanos, tudo leva a crer numa importante guinada do Estado brasileiro
para a teologia política aos moldes contrarrevolucionários. Se Joseph de
Maistre e outros do século XIX foram ultracatólicos, agora a defesa da
intolerância oficial, no Parlamento, vem de outras fontes, sobretudo as
devedoras do neoliberalismo econômico, cujo padroeiro é Friedrich
Hayek. Os parlamentares fundamentalistas convivem muito bem com
bancadas (lobbies) da indústria armamentista e proprietários de
“universidades” privadas. Não por acaso, na prática teológico-política
encenada, a conquista de redes televisivas, radiofônicas, etc. se dirige
contra as minorias e os diferentes. Linchamentos já ocorrem, à espera
dos Autos da Fé teocráticos na abolida Praça dos Três Poderes
brasiliense, num futuro próximo.
Redes “Sociais”
Os instrumentos recentes de “comunicação”, como as supostas redes
sociais, potencializam e radicalizam as correntes de ódio plantadas
desde o século XVI, a era do Renascimento e da primeira razão de Estado.
Note-se que em todos os prismas, religiosos e ideológicos, a
intolerância domina e se fortalece nas chamadas redes sociais. Os
fundamentalistas cristãos, muçulmanos, protestantes, ateus, agem como as
hordas descritas por Elias Canetti, sempre em massa. Com sua ação, os
indivíduos são devorados e suas crenças, vilipendiadas. Mas é prudente
lembrar que de “sociais” aquelas redes têm pouco. Elas, na verdade,
servem às práticas políticas de países hegemônicos, pouco se tem
estudado sobre os elos entre empresas como o Google e as que mantêm
serviços como o Facebook, com os poderes políticos imperiais. Tais redes
espalham a divisão entre as camadas populares, servem a elites
econômicas e políticas. Afastadas do poder, as massas podem usar a
violência sem peias, distribuir a morte espiritual e mesmo física dos
“inimigos”. A razão de Estado efetiva, hoje, é a do mercado, em especial
o financeiro. O resto — religião, cultura, política — é cosmético para
fantasiar o mundo desencantado das Bolsas e Agências de Risco.
Intolerância maior é difícil.
IHU On-Line - Como podemos compreender que avançamos tanto em
termos tecnológicos, e continuemos periclitantes no campo da ética e
sigamos reproduzindo comportamentos bárbaros nas relações sociais?
Roberto Romano - Retomo uma tese de Gabriel Naudé,
autor estratégico da razão de Estado, que recorda doutrinas antigas
sobre o elo entre técnicas, ciências e moral. Nas Considerações
políticas sobre os golpes de Estado (1640) ele adianta que “os hábitos
do intelecto são distintos dos vividos pela vontade. Os primeiros
pertencem às ciências e sempre são louváveis; os segundos ligam-se às
ações morais, que podem ser boas ou más”. E arremata: “é lei comum que
todas as coisas instituídas para um fim bom, com frequência são
abusadas: a natureza não produz venenos para matar os homens, se ela
fizesse tal coisa destruiria a si mesma; a nossa malícia gera tal uso”. A
nossa malícia… Mais tarde Kant define a vontade como base de um juízo e
uma prática boa ou má. As duas têm como fundamento a razão. O Bem Comum
é racional, assim como atos malignos. A consciência ajuda a distinguir
um campo do outro.
É possível usar de modo errado um dom (natural ou divino) cuja função
é respeitar os valores éticos. Aquele dom leva o ente racional a se
colocar um passo adiante das feras. Se, por exemplo, Mengele moveu seu
intelecto e vontade para destruir os fracos, é ainda mais vital empregar
a consciência para impedir que os técnicos, cientistas e governantes
dela façam um instrumento de pavor, contra os oposicionistas. O termo
para nomear a consciência na língua grega é “syneidesis”. A palavra, no
Testamento Novo, aparece trinta vezes. Jesus prefere a forma judaica,
“coração”, fonte de remorso e luz, de onde saem pensamentos pervertidos,
assassinatos, roubos, falsos testemunhos, difamações (Mateus, XV, 10,
17-20). E aqui podemos unir o problema das técnicas genocidas e a
questão da tolerância.
Mesmo que o cristão, diz Paulo, tenha certeza de seguir normas
justas, ele não tem o direito de usar contra os infiéis a força física
ou constrangimento moral. Todos têm o direito de pensar de acordo com a
consciência. Bem mais tarde o oscilante Rousseau, que foi reformado e
católico, exclama: “Consciência! Consciência! Instinto divino, imortal
et celeste voz; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas
inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, tu realizas a
excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações”. (Emílio).
Autoengano
A consciência pode ser usada como instrumento de engano e autoengano,
pode ser pervertida. Franz Stangl, nazista igual a Mengele, ficou
famoso ao proclamar: “Minha consciência é clara. Eu apenas cumpri o meu
dever”. Mesma desculpa de Carl Schmitt em Nuremberg: Hitler era
governante legalmente estabelecido… Tais perversões da consciência a
fazem rígida como o granito.
La Boétie, contrário às guerras religiosas, afirma que “Nada é mais
justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem
religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo
e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa
indiscreta”. La Boétie não condena a consciência: percebe o seu perigo
quando enjaulada em crenças rígidas.
Ética
A ética sem consciência é reunião de costumes não raro injustos e
preconceituosos. Os que pesquisam a ciência e a técnica podem viver
segundo éticas supostamente alheias à consciência moral. Os resultados
de sua ação trazem desastres como a bomba de Hiroshima e os experimentos
médicos com radiação nuclear. Em data recente os EUA pediram desculpas
oficiais à Guatemala pelas experiências realizadas em prostitutas e
doentes mentais naquele país por volta de 1940. Tais agressões aos
corpos alheios, cometidas pelos aventais brancos, foram efetuadas sem
consentimento e consciência das vítimas. Não olvidemos o quanto os
nazistas médicos (a expressão deveria ser um oximoro e não é) usaram
doentes, judeus e outras presas para efetivar seus alvos “científicos”. A
eugenia foi gerada nos campi norte-americanos, sendo exportada para a
Europa e Alemanha totalitária. É impossível negar as informações
trazidas por Edwin Black, no seu tremendo livro A guerra contra os
fracos. A Eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça
superior (São Paulo, A Girafa Ed., 2003).
Em 1940, médicos que deveriam cuidar dos seres humanos os destruíram.
“Usarei meu poder para socorro do adoecido, segundo o melhor da minha
habilidade e juízo; evitarei, com ele, ferir ou enganar todo e qualquer
homem”, diz o juramento de Hipócrates. Médicos infectaram de propósito,
com gonorreia e sífilis, 1.500 pessoas na Guatemala. “Estamos
escandalizadas por saber que essa pesquisa ocorreu sob o disfarce de
ação de saúde pública”, disseram as secretárias de Estado dos EUA,
Hillary Clinton, e da Saúde, Kathleen Sebelius. “Sentimos muito e
pedimos desculpas a todos os infectados na pesquisa”. Barack Obama
pediu perdão ao presidente da Guatemala, Álvaro Colom. “Regulamentos
sobre pesquisas médicas em humanos nos EUA hoje proíbem esse tipo de
violação terrível”, disseram Hillary e Sebelius. Elas afirmaram que será
feita uma investigação sobre o caso, especialistas internacionais farão
um relatório sobre padrões éticos nas pesquisas médicas.
Pesquisas em humanos
Na mesma época, pouco mais tarde, no próprio território
norte-americano, “pesquisas” eram feitas em humanos por médicos com
olhar frio. No caderno de horrores intitulado Risco Indevido, um
especialista em bioética, respeitado nos EUA por organismos do governo e
da sociedade, inclui mesmo oftalmologistas encarregados de verificar o
que ocorreria com os olhos de soldados expostos à radiação atômica. Tais
fatos se passaram de 1950 em diante. Moreno recompõe, rumo ao pior, os
círculos dantescos do Inferno. Notemos que os crimes indicados têm
denominador comum: falta de alma dos pesquisadores e segredo. No ano de
1940 a Guatemala era dilacerada por ditadura militar, substituída (1944)
pelo regime liberal derrubado em 1954 com impulso da CIA. As proezas
médicas americanas existiram porque liberdades foram negadas aos
guatemaltecos.
Atentados
Os EUA possui em sua face mundial atentados graves aos direitos
humanos e à ordem democrática. Seu apoio aos regimes que infestaram a
América do Sul na Guerra Fria é justificado pela razão estatal, mas
aquela razão é loucura e paranoia. Todos esses dados fazem pensar na
diferença entre a teoria e a prática. Cientistas altamente capazes do
ponto de vista teórico podem ser animalescos no âmbito prático. Se eles
estão unidos a tiranos, como nos regimes totalitários ou ditatoriais,
mesmo que impostos pela “maior democracia do mundo”, hecatombes
ocorrem.
IHU On-Line - Como é possível o exercício da política num tempo marcado pela violência?
Roberto Romano - Digamos, o exercício da política
nos limites do Bem Comum, porque a política tirânica é violência pura.
Recordemos o que diz Platão na República sobre o tirano que, para
exercer seu mando, realiza uma purga às avessas do corpo político. Ele
discrimina os bons cidadãos, os expulsa ou mata, mas escolhe os péssimos
para auxiliares do governo. Se pensarmos na razão de Estado, não existe
política totalmente conforme ao Bem Comum, democrática e pacífica. Esta
é uma das causas pelas quais Santo Agostinho compara os poderes
políticos aos piratas e ladrões. Remota itaque iustitia quid sunt regna
nisi magna latrocinia? quia et latrocinia quid sunt nisi parua regna?
(Sem a justiça… os reinos não seriam apenas grandes quadrilhas de
bandidos? E uma quadrilha de bandidos não é só um pequeno reino?)
(Cidade de Deus, IV, IV). Remota iustitia: o assunto inteiro da
República platônica trata da justiça.
Mas Sócrates compara a Justiça a uma caça que deve ser perseguida.
Ela sempre pode escapar pelas nossas pernas. Nosso tempo, o humano,
desde que vivemos no planeta Terra, é de violência. Um apoio para a
meditação encontra-se no terrível filme de Stanley Kubrick, 2001, uma
Odisseia no Espaço. Para entender o conceito de homem fera hobbesiano,
as cenas iniciais da película são eloquentes. Não existe poder humano
sem violência. A tarefa democrática é atenuar ao máximo o uso da força
contra os mais fracos. E, não raro, a tarefa é inglória. Um dirigente da
Anistia Internacional certa feita me confidenciou: “professor, os
defensores dos direitos humanos têm a quase certeza de enxugar gelo com
toalhas quentes”.
IHU On-Line - A partir desse paradoxo, como analisa o cenário
político brasileiro, sobretudo no que diz respeito à última eleição
presidencial e aos protestos ocorridos este ano?
Roberto Romano - O Brasil é o país da
contrarrevolução, para cá trazida nos navios portugueses que fugiam do
imperador francês. Aqui foi construído um Estado oposto às conquistas
democráticas modernas da revolução inglesa do século XVII, que trouxe
para a política e o direito público a exigência da accountability e da
liberdade de expressão, e das revoluções ocorridas no século XVIII, a
norte-americana e a francesa. Aqui imperam os privilégios dos operadores
do Estado contra o cidadão comum. Como não existe de fato
responsabilidade dos que operam o Estado, a população é intimidada pela
polícia, pelo Fisco, pelas autoridades tirânicas. Duas ditaduras
sangrentas ensinaram a obediência servil aos povos brasileiros, de Norte
a Sul. Quando os abusos dos poderosos atingem um clímax, as massas se
manifestam, mas logo retorna o costume dos privilégios, dos favores
entre compadres do poder. E as massas refluem para suas casas. As
últimas eleições definiram a vitória do marketing político, com sua
mensagem de medo acionada pelos propagandistas eleitorais. Perto dos
marqueteiros, os sofistas invectivados por Platão residem em santuários.
O povo continua tangido por novelas, futebol e demagogia que o distraem
do mundo.
IHU On-Line - Como podemos compreender o ódio de classe
voltado no Brasil aos mais pobres e às medidas tomadas para minimizar
sua condição de vida?
Roberto Romano - Após quinhentos anos de
“cristianismo” que escravizou e massacrou indígenas e negros, a ética
social brasileira está pavimentada pelo medo das rebeliões dos fracos.
Como toda sociedade contrarrevolucionária, o Brasil reserva lugares
hierarquizados de privilégios: os mais copiosos para os operadores do
Estado, os donos da economia, os funcionários administrativos e a
polícia. Na base, o povo sem privilégios e direitos garantidos. Certa
feita, para contestar juristas que ironizavam o nosso povo, dizendo ser
ele composto por leigos, escrevi o artigo “Nós, os leigos”. A
universidade forma especialistas em tudo, menos na ética e na moral que
respeitam o povo que arca com o Estado, paga impostos escorchantes e
pouco recebe em troca. É de tal estilo a divisão da sociedade entre
“leigos” e “competentes”.
IHU On-Line - Como analisa as manifestações de intolerância
em nosso país (inclusive os linchamentos) em relação às mulheres, aos
povos originários, aos afrodescendentes e aos homossexuais? Qual é a
racionalidade que move os ódios contra essas pessoas?
Roberto Romano - Um país contrarrevolucionário que
ignora os direitos do homem e da cidadania, que não pratica a
responsabilidade dos governantes, que reconhece privilégios como
legítimos, nada garante aos mais fracos como as mulheres, os
afrodescendentes, os homossexuais. Além de um escrito incluído em meu
livro Lux in Tenebris (“A mulher e a desrazão ocidental”), tratei o tema
em aula do Curso de Capacitação em Direitos Humanos e Diversidade
Sexual para Gestores Públicos do estado de São Paulo: “Homossexualidade,
metafísica e morte. A honra masculina e o direito de matar”.
IHU On-Line - Para Spinoza o medo e a esperança são as armas
mais eficazes para lidar com a população. Em que sentido o medo
insuflado pela mídia cooptada alimenta a intolerância?
Roberto Romano - Vejamos o que diz um técnico
fascista do direito, Carl Schmitt: "Nenhum Estado liberal deixa de
reivindicar em seu proveito a censura intensiva e o controle sobre
filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado deixa a um adversário
os novos meios de dominação das massas e formação da opinião pública". O
Estado, diz ainda Schmitt, deve controlar os meios de comunicação: “Os
novos meios técnicos pertencem exclusivamente ao Estado e servem para
aumentar sua potência”. O ente estatal "não deixa surgir em seu interior
forças inimigas. Ele não permite que elas disponham de técnicas para
sapar sua potência com slogans como "Estado de direito", "liberalismo"
ou um outro nome" (Schmitt em 1932, cf. O. Beaud: Os Últimos Dias de
Weimar). O fascismo da mídia “policial” que incita linchamentos tem a
plena autorização do Estado e dos governos, sob a capa da “liberdade de
imprensa”. Após duas ditaduras que inocularam o medo na população, os
programas televisivos e radiofônicos exercem um mister importante da
razão de Estado: apontar o próprio povo como inimigo a ser ferido,
distraindo assim a massa dos arcana imperii que se forjam nos palácios.
Em vez de se levantar contra os poderosos do Estado, a população aponta
os dedos assassinos para si mesma. Tal é o auto-suicídio induzido pela
mídia policialesca.
IHU On-Line - Em que aspectos o entrecruzamento de diferentes
crises é um dos esteios da situação de intolerância que experimentamos
em termos civilizacionais?
Roberto Romano - A inflação é uma fértil sementeira
de fascismo. O desemprego, a escassez de alimentos, a exclusão da vida
pública, tudo converge para a insatisfação popular que se torna
receptiva a todas as demagogias, políticas e religiosas. Note-se que, no
mesmo passo em que igrejas cujos proprietários prometem milagres,
sobretudo no campo do emprego e do progresso financeiro, elas pregam
abertamente a intolerância às demais crenças. No fundo é a mesma lógica
do esmigalhamento da concorrência por todos os meios, sobretudo os
ilícitos. Do ódio “religioso” ao rancor de classe e político, um passo
apenas precisa ser dado. A nova forma “conservadora” que toma conta da
política brasileira anuncia muitas dores, o que só não é percebido pelos
que não estudam a massas urbanas e modernas. Pregar a extinção de
outras crenças e culturas é uma regressão cultural que equivale ao feito
pelo nazismo e pelo estalinismo no século XX. ■
Reportagem Por: Márcia Junges e Ricardo Machado
Fonte: IHU online, acesso 17/08/2015
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Pesquisa do Blog.
Nós, os leigos
Roberto Romano
"Leigos em Direito (...) têm a tendência de falar sobre ele com uma desenvoltura que não teriam se se tratasse de medicina ou de antropologia. Por isso, além de "julgar" os casos de acordo com o "clamor público" -que é o mesmo que leva a linchamentos-, ainda "julgam o julgador", esquecendo que, no Estado de Direito, paga-se um preço pela garantia de todos e de cada um, de tal forma que só após a conclusão de um processo regular é que se pode obter uma certeza jurídica." (Américo Lacombe, Celso Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Folha, 10/8)
Prezados juristas , porque fomos invocados no artigo de vossas senhorias, pedimos vênia para nos apresentar. Nós, os leigos, temos uma história muito antiga. Na Grécia, éramos conhecidos como "laós", em oposição aos nossos chefes. É verdade que também fomos identificados por um nome de maior prestígio, "demos". As funções arriscadas da cidade eram nossas, especialmente a de lutar com nossas armas, prestando a chamada liturgia em prol dos concidadãos. Não temos muita idéia (nos apontam como ignaros) das causas que nos transformaram de povo em plebe. Primeiro nos alcunharam como "os muitos", opostos aos "melhores". Em Roma, disseram que éramos o "improbante populo", ou a "imperita plebs". Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença.
Veio a Igreja Católica e passamos a constituir um tipo de gente menor, sem qualificações plenas para viver, por nossos próprios méritos, na terra. Recebemos todos o epíteto de "laicus", em oposição, como no Egito dos faraós, aos sacerdotes. Justiniano consagrou esse insulto singular no seu código. Dionísio Areopagita imaginou o universo como imensa hierarquia, dos arcanjos aos padres. Fomos relegados à base da escada celeste. Leigo era sinônimo de pura tolice. Certo dia, um poeta e crítico dos padres, Dante Alighieri, começou, com outros escritores, a louvar uma política não-sacralizada. O poder, dizia ele, deve ser secular. Sacerdotes e teólogos o perseguiram por meios interpostos.
A partir dessa época, as coisas pioraram para os donos do saber e do poder sacerdotal. Lutero incomodou muito aqueles senhores dizendo que nós, os leigos, éramos sacerdotes! Ainda ouvimos as frases do antigo monge: "Über das sind wir Priester". Deus nos acuda: a patuléia elevada ao estado sacerdotal! O reformador se referia, às vezes, à nossa pessoa como "o senhor todo mundo", com desprezo. Mas, a partir daí, homens de cabeça quente começaram a escrever (e nas doutrinas do direito!) que somos a fonte da soberania. E que, numa República, constituímos a vida. Tais homens não possuíam nem um átimo sequer do grande saber jurídico brasileiro do século 20, seu nome era modesto, como certo Althusius.
Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença |
No século 18, uma revolução foi feita
para apagar os resquícios do mando clerical sobre a política. Nas mudanças trazidas por ela, o princípio de igualdade e
de nossa soberania foi definido e proclamado. O nome de Rousseau surgiu
em todas as bocas. Com ele, a condenação de todas as corporações que pudessem usurpar as prerrogativas nossas, os
soberanos. Não mais cabia a distinção
clerical entre "leigos" e "sapientes". Mas
os contra-revolucionários do Termidor
disseram que o povo nada sabia dos assuntos de Estado. Um deles, D'Anglas,
retomou a idéia de que homens sem
propriedades, de coisas ou de saberes,
seriam nocivos à vida pública. E vieram
os engenheiros positivistas da sociedade, os novos advogados. O romantismo
conservador viu em nós "eternas crianças", como o poeta Novalis, grande entusiasta da ressacralização política.
Assistimos, os leigos, às lutas ao redor
da boa definição republicana. De um
canto, alguns nos jogam fora do Estado
e de sua gerência, pois confiam apenas
nas elites, treinadas em economia, leis,
direito. De outro, existem os sonhadores, ou tolos, que asseguram ser a
democracia o império dos leigos, um ideal sublime. Temos aliados na
imprensa, entre promotores e procuradores públicos
(afinal, público também se liga a povo...). Mas eles sempre recebem
insultos
dos sacerdotes jurídicos e econômicos,
quando não dos eclesiásticos, para que
deixem a mania de tudo pesquisar segundo os nossos interesses. Com isso,
seguimos ignorando o nosso papel no
mundo. A nossa única certeza é não
mais confiar nas falas sagradas e "infalíveis" dos que fizeram esta
monstruosidade que aí está, e que eles chamam
"democracia" ou "Estado de Direito",
expulsando o juízo do povo. Por falta de
nossa confiança, tornou-se ingovernável a República. Mas essa é uma
outra
lenda, da qual falaremos um dia. Por enquanto fica o nosso testemunho do
mais profundo respeito pelas vossas figuras jurídicas, apesar da
arrogante
amostra de sacralidade corporativa, evidenciada no vosso último artigo
coletivo.
Roberto Romano, 54, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Fonte: Folha online de 21/08/2000
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