segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Os sentimentos perdidos

 José Castello*
 Amar É Crime
Fascinada pelas ondas e modismos do mercado internacional, a nova literatura brasileira tem, apesar disso, algumas vigorosas exceções. Uma das mais interessantes é Marcelino Freire, de quem leio agora “Amar é crime” (Record), uma coletânea de contos. O livro, na verdade, é uma segunda edição — ampliada — do que foi lançado originalmente, em 2011, pela pequena editora Edith, de São Paulo.
Marcelino não escreve para ser agradável ao leitor. Podemos pensar, ao contrário, que faz uma “literatura desagradável” — muito parecida com o “teatro desagradável” que Nelson Rodrigues dizia praticar. Sua escrita — veloz, bruta, sem desvios — nos empurra para o chão. Ao fim da leitura, estamos um pouco parecidos com Mariângela, a gorda que pesava 240 quilos, personagem do conto homônimo, que um dia “atola” em uma calçada da cidade. A realidade pesa — é preciso ser valente e suportar esse peso. Às vezes, ela nos massacra — é necessário inventar, então, maneiras de resistir.

Para Mariângela, tudo começa com um desmaio em plena rua — e quantas vezes somos atingidos por uma espécie indefinida de desfalecimento, que nos tira de nós mesmos, e nos prostra. Para quem ligar? Acham em sua bolsa o nome de Júnior, um rapaz magrinho, seu grande amor. Não o encontram. “Como ela havia conseguido se socar aqui? Ou teria sido o buraco do chão que se socou nela?” A dúvida está instalada: somos nós que esbofeteamos a realidade (com nossa indiferença, nossa estupidez, nossos receios), ou é ela, a realidade, que, volta e meia, nos engole?

Chegam os bombeiros, a televisão, um helicóptero. Tentam, inutilmente, telefonar para sua mãe, mas Mariângela confessa que a matou. “Prendeu a mãe contra a parede. Como quem come. Com vingança. Com ódio”. Em dias como os nossos, quando o ódio se dissemina pelas ruas, é útil espelhar-se em Mariângela, a mulher que atolou em sua própria bestialidade. No fim, só a fantasia a salva. Vê o guindaste chegar. “Trazendo as asas. As asas, sim”. Erguida de si mesmo, arrancada de seu próprio ódio, ela pode enfim voar. “Voar, voar, voar”.

A literatura de Marcelino desafia a brutalidade do real. Só há uma saída: a ela contrapor a estratégia do sonho. É do sonho, também — ainda que muitas vezes na forma de pesadelo — que a literatura se faz. Uma forte discussão a respeito desse elo aparece em outro conto, “União civil” — provavelmente o mais belo da coletânea. Chegando a São João del Rei para uma palestra, um escritor cruza, por acaso, com um casal gay que empurra um carrinho de bebê. A cena real o conecta com seu passado. Também na infância o escritor desejou um casamento com um colega da mesma idade. Da mesma forma, quis ter um filho.

Durante a palestra literária, o escritor fala da cena que viu. Fala, também, da imagem antiga para a qual ela o remeteu. “Essa imagem me pertence faz tempo. Escrever é organizar os sentimentos perdidos”. Em um intervalo do evento, ainda curioso, ele retorna para a mesma praça onde encontrou o casal. A essa altura, já está escrevendo mentalmente um conto. Sim: um conto não é o resultado de fórmulas, de adestramento. De uma escrita aplicada e de resultados. Um conto (uma ficção) é uma escavação interior. Uma imagem repentina — arbitrária — remete o escritor para os destroços de sua memória. Através da imagem presente, ele retoma contato com a memória que se perdeu.

“Segui confabulando. Rabiscando possibilidades, falas, personagens. Misturando realidade e ficção. Loucura e literatura. Memória e invenção. Meu Deus!” Onde não se espera, abre-se um vão — um buraco na calçada? — através do qual a literatura se ergue. Importante não permitir que o momento escape. Importante agarrá-lo — ou ele se perderá de novo no abismo do esquecimento. “Um conto não nasce na hora em que a gente escreve, na hora em que a gente está escrevendo. Não nasce quando a gente acaba o conto, põe ponto final. A impressão que eu tenho é que um conto nasce em algum ponto da vida da gente. Ele fica lá, congelado, esperando que algo o acorde”. A escrita é esse despertar. A escrita não passa da transcrição de uma imagem perdida. Como os médiuns que, em suas mesas espíritas, reproduzem as palavras ditadas desde o além.

Mas cuidado: um conto não é o que você sonha, não é o que você busca. É como ocorre em “Após a morte”, outro dos relatos de Marcelino. Quatro horas depois de perder a mulher, Graça, um homem, Francisco, procura um centro espírito na esperança de fazer contato com a morta. O médium se esforça: nada ouve. Parece muito cedo para qualquer comunicado. Francisco, porém, não aceita o silêncio: “Ela sempre disse que chegando lá ia me mandar uma linha”. Uma linha, uma só linha — meia dúzia de palavras, isso bastaria. Mas nada.

Enfim, depois de muito lutar contra as forças sobrenaturais, o médium recebe um sinal. Uma palavra que, enfim, contenha toda aquela aflição. “É ela, Graça”, Francisco diz. Mas a voz que vem é a voz de um homem. O médium pede seu nome. “Raimundo”, ele responde. Não vou explicar quem é Raimundo: não quero roubar do leitor o prazer da descoberta. Uma coisa, porém, basta: a voz (a palavra) de Raimundo surge no lugar errado. Aparece onde não deveria estar. Parece haver uma troca, um engano. É nesse mesmo desalinhamento que a literatura se produz. Onde devia estar uma palavra, encontramos outra. Não é fácil, mas é fascinante.

Na verdade — e o leitor que for até o fim da leitura entenderá isso — Raimundo já estava ali o tempo todo. Ele equivale àquele sentimento esquecido, mas sempre presente, que nos faz escrever. A vida é brutal — Marcelino nos diz. É preciso ter força, ou não vivemos. Não: não se trata de acreditar no milagre salvador, na repentina erupção do novo. Nada disso. Viver (escrever) é suportar aquilo que sempre esteve diante de nós. Fazer disso que sempre esteve ali — por mais brutal e desconfortável que seja — o sentido de uma existência. Não se trata de colocar outra coisa no lugar. Trata-se de transformar aquilo que é naquilo que deve ser. Talvez uma ideia se esconda, no fim, atrás de tudo. A da tolerância.
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*  José Castello é escritor e jornalista. Autor, entre outros, de “Ribamar”, Jabuti de “romance do ano” em 2011, “Vinicius: o poeta da paixão” (Jabuti de “ensaio do ano” em 1995) e “A literatura na poltrona. É Mestre em Comunicação pela UFRJ
Fonte: Jornal O globo online, acesso 17/08/2015
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