José Castello*
Fascinada pelas ondas e modismos do mercado internacional, a nova
literatura brasileira tem, apesar disso, algumas vigorosas exceções. Uma
das mais interessantes é Marcelino Freire, de quem leio agora “Amar é
crime” (Record), uma coletânea de contos. O livro, na verdade, é uma
segunda edição — ampliada — do que foi lançado originalmente, em 2011,
pela pequena editora Edith, de São Paulo.
Marcelino não escreve para ser agradável ao leitor. Podemos pensar,
ao contrário, que faz uma “literatura desagradável” — muito parecida com
o “teatro desagradável” que Nelson Rodrigues dizia praticar. Sua
escrita — veloz, bruta, sem desvios — nos empurra para o chão. Ao fim da
leitura, estamos um pouco parecidos com Mariângela, a gorda que pesava
240 quilos, personagem do conto homônimo, que um dia “atola” em uma
calçada da cidade. A realidade pesa — é preciso ser valente e suportar
esse peso. Às vezes, ela nos massacra — é necessário inventar, então,
maneiras de resistir.
Para Mariângela, tudo começa com um desmaio em plena rua — e quantas
vezes somos atingidos por uma espécie indefinida de desfalecimento, que
nos tira de nós mesmos, e nos prostra. Para quem ligar? Acham em sua
bolsa o nome de Júnior, um rapaz magrinho, seu grande amor. Não o
encontram. “Como ela havia conseguido se socar aqui? Ou teria sido o
buraco do chão que se socou nela?” A dúvida está instalada: somos nós
que esbofeteamos a realidade (com nossa indiferença, nossa estupidez,
nossos receios), ou é ela, a realidade, que, volta e meia, nos engole?
Chegam os bombeiros, a televisão, um helicóptero. Tentam,
inutilmente, telefonar para sua mãe, mas Mariângela confessa que a
matou. “Prendeu a mãe contra a parede. Como quem come. Com vingança. Com
ódio”. Em dias como os nossos, quando o ódio se dissemina pelas ruas, é
útil espelhar-se em Mariângela, a mulher que atolou em sua própria
bestialidade. No fim, só a fantasia a salva. Vê o guindaste chegar.
“Trazendo as asas. As asas, sim”. Erguida de si mesmo, arrancada de seu
próprio ódio, ela pode enfim voar. “Voar, voar, voar”.
A literatura de Marcelino desafia a brutalidade do real. Só há uma
saída: a ela contrapor a estratégia do sonho. É do sonho, também — ainda
que muitas vezes na forma de pesadelo — que a literatura se faz. Uma
forte discussão a respeito desse elo aparece em outro conto, “União
civil” — provavelmente o mais belo da coletânea. Chegando a São João del
Rei para uma palestra, um escritor cruza, por acaso, com um casal gay
que empurra um carrinho de bebê. A cena real o conecta com seu passado.
Também na infância o escritor desejou um casamento com um colega da
mesma idade. Da mesma forma, quis ter um filho.
Durante a palestra literária, o escritor fala da cena que viu. Fala,
também, da imagem antiga para a qual ela o remeteu. “Essa imagem me
pertence faz tempo. Escrever é organizar os sentimentos perdidos”. Em um
intervalo do evento, ainda curioso, ele retorna para a mesma praça onde
encontrou o casal. A essa altura, já está escrevendo mentalmente um
conto. Sim: um conto não é o resultado de fórmulas, de adestramento. De
uma escrita aplicada e de resultados. Um conto (uma ficção) é uma
escavação interior. Uma imagem repentina — arbitrária — remete o
escritor para os destroços de sua memória. Através da imagem presente,
ele retoma contato com a memória que se perdeu.
“Segui confabulando. Rabiscando possibilidades, falas, personagens.
Misturando realidade e ficção. Loucura e literatura. Memória e invenção.
Meu Deus!” Onde não se espera, abre-se um vão — um buraco na calçada? —
através do qual a literatura se ergue. Importante não permitir que o
momento escape. Importante agarrá-lo — ou ele se perderá de novo no
abismo do esquecimento. “Um conto não nasce na hora em que a gente
escreve, na hora em que a gente está escrevendo. Não nasce quando a
gente acaba o conto, põe ponto final. A impressão que eu tenho é que um
conto nasce em algum ponto da vida da gente. Ele fica lá, congelado,
esperando que algo o acorde”. A escrita é esse despertar. A escrita não
passa da transcrição de uma imagem perdida. Como os médiuns que, em suas
mesas espíritas, reproduzem as palavras ditadas desde o além.
Mas cuidado: um conto não é o que você sonha, não é o que você busca.
É como ocorre em “Após a morte”, outro dos relatos de Marcelino. Quatro
horas depois de perder a mulher, Graça, um homem, Francisco, procura um
centro espírito na esperança de fazer contato com a morta. O médium se
esforça: nada ouve. Parece muito cedo para qualquer comunicado.
Francisco, porém, não aceita o silêncio: “Ela sempre disse que chegando
lá ia me mandar uma linha”. Uma linha, uma só linha — meia dúzia de
palavras, isso bastaria. Mas nada.
Enfim, depois de muito lutar contra as forças sobrenaturais, o médium
recebe um sinal. Uma palavra que, enfim, contenha toda aquela aflição.
“É ela, Graça”, Francisco diz. Mas a voz que vem é a voz de um homem. O
médium pede seu nome. “Raimundo”, ele responde. Não vou explicar quem é
Raimundo: não quero roubar do leitor o prazer da descoberta. Uma coisa,
porém, basta: a voz (a palavra) de Raimundo surge no lugar errado.
Aparece onde não deveria estar. Parece haver uma troca, um engano. É
nesse mesmo desalinhamento que a literatura se produz. Onde devia estar
uma palavra, encontramos outra. Não é fácil, mas é fascinante.
Na verdade — e o leitor que for até o fim da leitura entenderá isso —
Raimundo já estava ali o tempo todo. Ele equivale àquele sentimento
esquecido, mas sempre presente, que nos faz escrever. A vida é brutal —
Marcelino nos diz. É preciso ter força, ou não vivemos. Não: não se
trata de acreditar no milagre salvador, na repentina erupção do novo.
Nada disso. Viver (escrever) é suportar aquilo que sempre esteve diante
de nós. Fazer disso que sempre esteve ali — por mais brutal e
desconfortável que seja — o sentido de uma existência. Não se trata de
colocar outra coisa no lugar. Trata-se de transformar aquilo que é
naquilo que deve ser. Talvez uma ideia se esconda, no fim, atrás de
tudo. A da tolerância.
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* José Castello é escritor e jornalista. Autor, entre outros, de “Ribamar”,
Jabuti de “romance do ano” em 2011, “Vinicius: o poeta da paixão”
(Jabuti de “ensaio do ano” em 1995) e “A literatura na poltrona. É
Mestre em Comunicação pela UFRJ
Fonte: Jornal O globo online, acesso 17/08/2015
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