Peter Carey de regresso num romance sobre a Austrália, a esquerda e o poder totémico da tecnologia.
Amnésia, o mais recente romance de Peter Carey — o
australiano-americano excêntrico que vive há mais de 20 anos em
Manhattan e já ganhou dois prémios Booker —, começa com um episódio
espectacular que ficaria bem na abertura de um blockbuster: corre
o ano de 2010 e, na Austrália, um vírus informático ataca os sistemas
de controlo das complexas aberturas de várias prisões.
Uma
vez que todo o aparato tecnológico é, maioritariamente, oriundo dos
Estados Unidos, o verme infecta igualmente milhares de instalações
prisionais americanas. O ataque é reivindicado por Angel, suspeitando-se
que por trás desse nome esteja Gaby ou Gabrielle Baillieux,
imediatamente apontada como inimiga pública número um e perseguida como
terrorista a abater.
Quem
nos descreve o acontecimento é Felix Moore, um jornalista a braços com a
justiça, eternamente enredado em litígios, mistérios e conspirações.
Abandonado pela mulher, envelhecido e amargo, acossado por credores,
escreve guiões e romances satíricos e acompanha a adaptação para o
cinema do seu romance Barbie and the Deadheads,
mantendo a postura desafiadora de “socialista e paladino da verdade”.
Moore, um narrador falível e errático, como a maior parte das
personagens criadas por Carey, é abordado por um seu admirador, o
milionário Woody Townes, que lhe oferece uma compensação choruda em
troca da escrita de uma biografia da esquiva Gaby. O propósito da
empreitada é a de criar uma imagem simpática da hacker
prodigiosa, evitando, dessa forma, a sua extradição para os EUA e o
posterior julgamento. Felix é obrigado a ceder às imposições excêntricas
daquele que é, também, o amigo perverso da mãe de Gaby, a bela,
decadente e neurótica actriz Celine Baillieux, que tudo faz para reaver a
filha.
A trama
desenvolve-se a vários níveis que abrangem um espaço temporal alargado e
a exposição da vida de várias pessoas ligadas entre si por
cumplicidades e misteriosos afectos. Felix Moore, que acompanhou, ao
longo da sua carreira, a história política do país, vê em Gaby um
símbolo da própria Austrália, um cruzamento de acontecimentos que recuam
até à Segunda Guerra Mundial (a avó de Gaby foi violada por um soldado
americano) e, mais tarde, ao “golpe de Estado” de 1975, quando o
governador não-eleito John Kerr, representante de Sua Majestade, a
Rainha Isabel II, demitiu o primeiro-ministro do Partido Trabalhista
Gough Whitman, substituindo-o pelo líder da oposição conservadora. Este
episódio é um entre muitos que Moore deseja resgatar dessa “amnésia”
instalada, isto enquanto tem de lidar com o presente e com a sua recente
e espinhosa tarefa que, espera ele, o voltará a colocar no centro do
universo da informação jornalística. Munido de antiquadas cassetes,
gravador de fita e uma velhíssima máquina de escrever, é desterrado para
um lugar remoto — qual Robinson Crusoé — para compor a obra
encomendada.
O contraste
entre Gaby — e o seu companheiro vampírico-gótico Frederic — e Felix não
pode ser mais gritante. Gaby é uma verdadeira heroína: astuta,
independente, obcecada, fisicamente estranha e desprovida de referências
que não sejam as que o mundo nocturno, fechado e alienado da tecnologia
lhe proporciona. Quanto a Felix Moore, um desastrado permanentemente em
risco, manipulado por forças que não controla, vai-se transformando num
instrumento dos interesses daqueles que o atiraram para esta louca
aventura, da qual ele pretende extrair a confirmação da sua crença de
que a CIA interferiu e continua a interferir nos assuntos da Austrália. É
impossível não ver Felix como um sósia do próprio Peter Carey: um
escritor que cresceu num bairro da classe operária em Bacchus Marsh, que
usa uma velha Olivetti, que frequentou, nos anos 1960, a pouco
imponente Monash University num subúrbio nada atraente de Melbourne, e
que ficou preso na selva em condições deploráveis, um episódio do tempo
que passou numa comunidade hippie.
Aliás, e apesar de Moore ser uma espécie de caricatura, Peter Carey
retrata de forma pouco lisonjeira, mas com uma melancolia mitigada pela
ironia, a sua própria geração, ao descrever a juventude de Celine, a do
marido, o deputado trabalhista Sandro, e a do próprio Felix e a sua
dedicação à luta por ideais entretanto desfeitos. Todos eles, e cada um à
sua maneira, são o reflexo tristonho e falhado de um tempo
revolucionário, derrotado pelo conformismo que o autor, Peter Carey, não
está na disposição de amenizar ou enaltecer. Escrever, para ele, é uma
forma de trazer para a luz os factos incómodos, tratando-os com a
brutalidade e a mordacidade que merecem.
E enquanto a maior parte dos críticos vê em Amnésia
uma referência directa ao caso Edward Snowden, (o analista de sistemas
da CIA que tornou públicos programas dos serviços secretos), na
realidade Carey utiliza algo vagamente semelhante como detonador da
trama que engloba a História, a paisagem, a política australiana, os
seus recônditos mais sombrios e as suas personagens mais complexas, bem
como uma reflexão sobre como a tecnologia, cada vez mais sofisticada,
alterou todos os paradigmas. O poder totémico de certos objectos faz de
resto parte do imaginário do autor — a igreja de vitrais em Óscar e Lucinda, ou o brinquedo mecânico em Química das Lágrimas — e é aqui preenchido pelos computadores, pelos modems, pelos drones, pelos trolls, todo um arsenal que serve espécie de “realismo mágico” muito particular em toda a sua obra (em Amnésia, Gaby e Frederic vivem no universo paralelo dos jogos de vídeo e de mundos fantásticos, sempre no limiar da delinquência).
A
linguagem, por vezes caótica e intensamente poética, rica em
coloquialismos, arcaísmos, regionalismos, figuras de estilo e outras
ferramentas linguísticas que tornam a sua tradução para português
extremamente difícil, é utilizada com a mesma força, seja para conduzir o
leitor pela paisagem urbana de becos estreitos, terrenos baldios e
vivendas decrépitas, seja para o fazer penetrar no isolamento febril da
selva inóspita. Resta lembrar que Amnésia
é um romance “político” que coloca em contraste uma esquerda antiquada,
nostálgica e debilitada — representada por Moore, Celine e Sandro — e
uma anarquia contemporânea, violenta, pura e dura — Frederic e Gaby —,
com uma tremenda capacidade destruidora na ponta dos dedos e armas tão
eficazes como um telemóvel ou um computador.
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REPORTAGEM POR
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