Sei por experiência própria como a condição económica, o
presentismo e a rigidez laboral condicionam a vida de quem tem filhos.
Mas a grande condicionante na hora de ter filhos chama-se complicadismo.
É um dos meu terrores: discutir políticas de natalidade. Mal ouço a
expressão, sempre dita com um ar solene, por pivots e políticos, é como
se estivesse diante mim o Obélix a perguntar ao Astérix qual era o
papel das abelhas e das cegonhas no aparecimento dos bebés.
As políticas de natalidade são as novas cegonhas: oficialmente trazem
os bebés. Mas tal como jamais se viu um bebé no bico de uma cegonha (e a
minha geração bem que se esforçou por tal avistamento!), está por
encontrar o primeiro bebé nascido graças àquilo a que pomposamente se
chama políticas de natalidade. Ou então, se alguns bebés nasceram graças
a essas políticas, nomeadamente aquelas que passam por mais abonos e
subsídios, cabe perguntar que mal fizeram essas crianças e os demais
cidadãos para terem de conviver com pessoas que têm filhos se lhes
pagarem para tal.
Claro que há circunstâncias que ajudam quem tem filhos, como as
licenças e os horários flexíveis, mas infelizmente entre nós desapareceu
mais rapidamente o papel selado que a rigidez dos horários de trabalho!
Fundamental seria também acabarmos com a maldita cultura do presentismo
que leva umas almas sem mulher, homem, gato, cão, periquito ou livro
que lhes apeteça rever em casa, a reproduzir na hora de sair do trabalho
o síndroma “eu não hei-de ser o primeiro a parar” dos congressos
estalinistas: ali ninguém parava de bater palmas, aqui ninguém se
levanta para sair e empatam, empatam, tentando desse modo provar que
trabalham muito.
A única forma socialmente aceitável de quebrar o presentismo é
anunciar que se tem o gato ou o cão doentes. Ou a precisar de passear.
Aí todos se mostram solidários. Já se for por causa de um filho é sempre
um escolho, uma questão a ter em conta na hora de atribuir àquela
pessoa um cargo de responsabilidade. Afinal não foi ela irresponsável
q.b. para ter avançado para tal encargo apesar de todos os avisos sobre o
entrave para a carreira que os filhos representam?
(Se discutir as políticas de natalidade faz parte dos meus
terrores o termo carreira aplicado à profissão é um dos meus ódios de
estimação. O que é uma carreira? Percebo a carreira dos eléctricos, das
camionetas e dos autocarros. Mas o que será a carreira do condutor
desses transportes? E de ser caixa de supermercado? Ou jornalista? O que
será essa coisa chamada carreira em nome da qual é suposto que se
abdique de tudo? Regra geral, chamamos carreira a empregos pagos
assim-assim, desempenhados por pessoas mais ou menos irrelevantes que se
acreditam insubstituíveis. O resto são trabalhos, empregos ou cargos,
transitórios como tudo na vida, e para cujo desempenho ter
responsabilidades familiares, seja de filhos ou outras, é um valor
acrescentado de realidade.)
Mas voltemos às neocegonhas, ou seja, às políticas de natalidade. Sei
por experiência própria como as circunstâncias económicas, o
presentismo e a rigidez laboral condicionam a vida de quem tem filhos.
Sobretudo de quem não se ficou pelo casalinho e teve de ouvir os sábios
“Já pensaste?!…” Mas a grande condicionante deste século XXI na hora de
ter filhos chama-se complicadismo, conceito que traduzido de forma
simples quer dizer que a maternidade deixou de ser algo natural na vida
dos jovens adultos para se tornar na mais temerosa das tarefas a que
alguém pode meter ombros.
Face ao espalhafato criado em torno da maternidade e da paternidade o
que me admira não é que as pessoas tenham menos filhos. O que não
entendo mesmo é como ainda existe gente com coragem para meter ombros a
tal empreendimento.
Ter um filho tornou-se uma tarefa imensa. Um saber-ciência algures
entre a exactidão das matemáticas e a imprevisibilidade do mundo do
oculto em que cada sinal de febre, birra, más notas ou grama a mais é um
sinal inequívoco do falhanço dos pais em geral e das mães em
particular. Tudo o que as crianças fazem e não fazem, tudo o que não
lhes aconteceu e devia ter acontecido (ou vice-versa) é visto, analisado
e ponderado como o resultado daquilo que os pais disseram, deram e
fizeram. A gravidez tem de ser perfeita, o parto um momento sublime, a
amamentação um equivalente da demanda do Santo Graal que nunca se sabe
como deve terminar, a introdução dos alimentos uma viagem ao mundo dos
produtos sem isto e sem aquilo. Caso isto não se cumpra no seu todo ou
em parte lá vêm a perturbação, a disfunção e outras coisas tenebrosas já
conhecidas e por conhecer.
Angustia-me pensar o que vai ser destes pobres pais e dos seus filhos
no dia em que estes últimos tenham finalmente de sair da escola A onde
as crianças só comem legumes biológicos; ou da escola B onde aprendem
por um método natural (nas outras, as não naturais enfiam-lhes um
capacete e ligam-lhes eléctrodos à cabeça!) e do sítio C onde como
actividade extra-curricular se ensina filosofia a crianças que ainda não
têm a dentição de leite completa.
Esta ditadura da infância perfeita é das coisas mais assustadoras que
me foi dado ver e tudo indica que veio para ficar tanto mais que
proliferam os filhos únicos. (E só Deus sabe os trabalhos e complicações
que uma mulher em dedicação exclusiva a um ser humano é capaz de
inventar!) Para cúmulo os nados e criados nesse espaço-tempo da infância
perfeita tendem não só a manter-se como eternas crianças – já viram
aqueles matulões compêlos a despontar nas pernas e umas mães ansiosas a
puxarem-lhe a mala de rodinhas? – como a acreditar com convicção que
todos os outros devem condicionar as suas vidas e atitudes para que eles
não se traumatizem.
No Observador até vinha esta semana uma lista daquilo que os pais não
devem fazer para não envergonhar os filhos. Supõe uma pessoa que seriam
referidos actos como roubar, burlar ou não cuidar da família. Nada
disso. No limite creio que até matar não constrangeria muito os
inquiridos desde que os progenitores não disparassem sobre leões. (Já
agora, o leão Cecil era lindíssimo e não percebo o prazer de disparar
sobre leões. Mas ao contrário dos habitantes humanos do Zimbabwe, o leão
Cecil teve comparativamente uma vida longa que, acrescente-se, na
Natureza terminaria de uma forma não menos cruel.)
Mas voltemos aos pais que envergonham os filhos. Entre outras coisas
devem os pais evitar dançar na presença dos filhos ou simplesmente
cantar na cozinha. É que face a esses comportamentos os filhos que claro
cantam e dançam o que lhes apetece e quando lhes apetece, ficam
envergonhados. E logo traumatizados, e logo com problemas afetivos. Só
não percebi se os pais podem ousar essas manifestações longe do olhar
dos filhos ou se mesmo assim estes ficam consternados porque outros os
podem avistar em tais atitudes.
Enfim, tal como no pretérito tempo em que as cegonhas traziam os
bebés, um bocadinho de realidade faz muita falta. E já agora uma boa
dose de bom senso ajudaria à demografia muito mais que as políticas
ditas de natalidade.
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Texto por Helena Matos
Fonte: Site português: http://observador.pt/opiniao/a-ditadura-da-infancia-mais-que-perfeita/02/08/2015
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