Há um anacronismo inevitável nas leituras correntes dos
evangelhos, como se eles tivessem sido escritos para durarem vinte
séculos ou mais até aos crentes de hoje.
1. Quem tenha alguma cultura histórica,
perceberá facilmente que há um anacronismo inevitável nas leituras
correntes dos evangelhos, como se eles tivessem sido escritos para
durarem vinte séculos ou mais até aos crentes de hoje: a sua
característica mais óbvia reside na consideração de que a Bíblia é um
livro religioso. O historiador alemão judeu Folker Siegert (in P.
Geoltrain, Aux origines du christianisme) disse lapidarmente que
“o judaísmo do primeiro século não é uma religião, é um povo”. O que
significa que nele religião e política são indissociáveis, o que inclui
também Jesus, como aliás atesta o processo que o condenou.
Religião e cosmopolítica
2.
Todas as sociedades não industriais, em que colheitas e rebanhos são a
fonte principal da riqueza, estão dependentes das respectivas fecundidades que
os humanos não controlam, são segredo dos deuses. A abertura em algumas
grandes cidades de uma cultura escrita cosmopolita fez surgir escolas espirituais
que criticam a religião, Buda, Confúcio, Zaratustra, e no helenismo
escolas filosóficas e de cultos de divindades orientais, escolas essas
ditas ‘heresias’ (em grego, ‘escolha’), termo que significa o gesto
moderno por excelência, o da critica da tradição, em que se escolhe o
que se quer reter.
3. A especificidade da Bíblia hebraica, livro
político-religioso, foi segundo o Deuteronómio (~640 a.C.) a proposta
com Moisés duma aliança em que a bênção, fecundidade e paz,
seria dada se as casas israelitas e os reis observassem uma ética de
justiça social: “que não haja pobre no meio de ti” (15,4). Segundo os
Profetas, foi por não terem sido fiéis que essa aliança falhou e foram
derrotados, primeiro pelos Assírios (séc VIII) e depois por Babilónia
(início séc VI). Os livros da Lei escritos em seguida reformularam a
aliança, agora sob a égide de Abraão, como uma promessa incondicional,
mas depois de 2 séculos pacíficos como vassalos do Irão, as vitórias de
Alexandre e em -63 de Pompeu vieram pôr em questão essa promessa:
ocupação estrangeira violenta sem nenhum vislumbre de saída política,
isto é, guerreira, que tornasse viável a promessa. Esta situação está na
origem de dois séculos e meio de literatura apocalíptica que (com
influência do iraniano Zaratustra, a quem se deve o motivo de Juízo
final e da ressurreição dos mortos), apostou como única possibilidade na
intervenção escatológica vitoriosa dum Messias que vencesse enfim os
Romanos. Entre as várias tendências inconformistas, desde os Essénios
marginais do Mar Morto às tentativas de rebelião armada dos Zelotes,
vencidos no ano +70 por Tito, situam-se João Baptista, Jesus e Paulo,
crendo que o Reino de Deus, o Juízo Final, se faria em breve, durante a
vida da respectiva geração (Marcos 1,15 e 9,1, 1ª Tessalonicenses
4,15-17 e 1ª Coríntios 15,51-53). O evangelho de Marcos foi escrito na
sequência do fim de Jerusalém (e da literatura apocalíptica) e
interpreta a derrocada do Templo como sinal do retorno iminente do
Messias ressuscitado: “compreende, leitor!”, adverte em 13, 14. Mateus
ainda subscreve esta expectativa que, Lucas, da geração seguinte, tem
que desfazer, adiando a escatologia.
4. Sempre muito
resumidamente, a consequência deste desfecho foi que as comunidades
cristãs deixaram rapidamente de ter membros vindos do judaísmo e
seguiram o caminho aberto por Paulo, tornando-se gregas e romanas.
Orígenes de Alexandria instituiu o discurso teológico que acolherá os
grandes dogmas dos séculos IV e V e perdurará até ao século XX, teologia
que de si mesma se diz dogmática, enquanto que o legado judaico ficou
confinado à liturgia. Ou seja, o cristianismo, fenómeno de cidades (o
‘pagão’ era o camponês fixado à terra pela ‘pax’ romana), foi
durante dois a três séculos uma ‘heresia’ cosmopolita entre as outras
(Actos dos Apóstolos 24,5; o termo veio a tornar-se pejorativo na 2ª
metade do sec. II), perseguida por várias vezes, até receber o
beneplácito de Constantino e dos seus sucessores: a ecclesia espiritual
tornar-se-á religião do império e sobreviverá à implosão ocidental
deste, voltando a haver pelos séculos seguintes religião e política
indissociáveis, como é regra das sociedades agrícolas e testemunham os
conflitos constantes entre reis e bispos, papas e imperadores. Mas
também confirma este deslocamento para o religioso ancestral holístico
(que o cosmopolitismo questionara) o facto de, desde os monges do
deserto egípcio e de S. Bento, se gerarem incessantemente grupos
espirituais, franciscanos, dominicanos e por aí fora, com reclamações de
reforma eclesiástica, as quais explodiram no séc. XVI com a Reforma
espiritual protestante em ruptura com Roma, mantendo, é certo, uma parte
da estrutura religiosa, donde a multiplicação de confissões e de
revivalismos espirituais. E foi o cosmopolitismo que, desde a impressão
dos livros até à industrialização moderna, levou à separação das Igrejas
e dos Estados seculares, mormente nos países católicos, onde a
resistência clerical foi maior, aonde os cristãos rurais ocupam o lugar
dos antigos ‘pagãos’. Com essa excepção inacreditável do dólar ter
inscrito “em Deus confiamos”.
Cristianismo e política
5.
Delineado o quadro histórico, resta a questão inteira: como se
relacionam os evangelhos, na sua radicalidade espiritual escatológica,
com a política do mundo de hoje, com as suas questões ecológicas e
sociais lancinantes? Do religioso para o espiritual, o enigma da fecundidade
(duma planta muitas sementes, dum casal muitas ninhadas) desloca-se dos
campos e dos rebanhos para os comportamentos humanos, cujo excesso tem o
nome de generosidade: amar o próximo é a coisa mais difícil do
mundo, como todos temos experiência. Em que é que a política, a
organização da sociedade, se opõe à generosidade, quando em termos de
riqueza, a fecundidade foi substituída pela produtividade? Em todas as
suas estruturas que consolidam um poder, substantivo de uso corrente, este tende a impedir o que os seus subordinados podem, como verbo. O motivo evangélico do serviço extremamente
radical — “vocês sabem que os que são vistos como chefes das nações
mandam nelas como senhores e que os grandes fazem sentir o seu poder
sobre elas; não deve ser assim entre vocês: pelo contrário, quem quiser
tornar-se grande entre vocês, far-se-á o vosso servo e quem quiser ser o
primeiro entre vocês, far-se-á o escravo de todos” (Marcos 10,42-44) — pode ser lido como fomento das possibilidades dos que estão sujeitos aos poderes, ajudá-los a libertarem-se para o que possam fazer e ser. Como por exemplo deve ser o lema de toda a educação, de todo o ensino.
6.
Há três dicotomias políticas nos evangelhos que podem ser
esclarecedoras: “não podeis servir Deus e o Dinheiro” (Mateus 6,24),
“dai o que é de César a César e o que é de Deus a Deus” (Marcos 12,17),
“[Deus] não é um Deus de mortos, mas de vivos; todos com efeito vivem
por ele” (Lucas 20,38). O dinheiro, César e o Deus dos mortos (da
religião enquanto poder, de que o suporte é o Templo, adversário
simbólico de Jesus) são três feitiços do poder substantivo que impede que se possa viver
fecundamente. É o cerne da atitude espiritual, renunciar aos feitiços,
mas também é a de todos os grandes apaixonados por causas de vida,
artistas ou pensadores, gente entregue à generosidade social, aqueles
cujas biografias lemos por vezes maravilhados, que nos mostram como vale
a pena viver. Fecundidade fora do ‘poder’: ‘sem posses’ mas ‘podendo’
além do que podiam. É isso uma ética radical.
7. É o dito referido
ao imposto a César que pede um esclarecimento, os outros dois podem ser
deixados à imaginação do leitor. Esta oposição é uma espécie de emblema
da leitura anacrónica, que lê uma repartição das actividades, ao poder
do Estado o que lhe compete, ao mundo eclesiástico a sacristia e o seu
rebanho de pastores, um pacto entre dois ‘poderes’ substantivos (em que
um deles está a perder terreno há mais de um século, o outro também
aliás, nos últimos 30 anos de supremacia financeira do grande capital,
como temos sentido). Mas uma leitura atenta do episódio que culminou
nessa frase mostra o anacronismo que seria deixar-se todo o domínio de
César ao seu arbítrio. Trata-se de uma armadilha: “é ou não lícito pagar
o imposto a César?” Se Jesus disser que não, será denunciado à
autoridade romana ocupante, a quem esse imposto se destina; se disser
que sim, será abandonado pela multidão anti-ocupação romana que o
aclamou à entrada em Jerusalém e à expulsão dos vendilhões do Templo,
deixará de ser perigoso. Se a resposta de Jesus fosse a que hoje corre
(e que ajuda ao ajuste dos poderes, não é daí que vêm os problemas entre
nós, essa lição de separação dos domínios até seria útil a muçulmanos e
israelitas), ele teria caído na armadilha e sido renegado pela
multidão, o que obviamente não sucedeu: a resposta não foi a dum
‘colaborador’ com o ocupante. A astúcia de Jesus foi pedir a moeda e
pegar pela imagem de César nela: a Lei bíblica proíbe as imagens de
humanos, aquela imagem é pois ilícita, estrangeira, mandá-la para César
equivale a expulsar a moeda do país, o que por um lado convém à multidão
que o aclama e por outro não dá pretexto a acusação aos Romanos. “E
eles ficaram espantados” com a resposta, concluem os três evangelhos. Em
vez de submissão ao poder de César, é a libertação dos feitiços do
poder — do dinheiro e das burocracias (clerical ou outra, engravatada, mediática) — que permite ‘viver’ fecundamente, apaixonadamente.
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FilósofoFonte: http://www.publico.pt 12/08/2015
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