José Castelo*
A estepe é uma região plana e árida, que se aproxima
do deserto. É uma das paisagens mais marcantes do sul da Rússia.
Inspirou grandes narrativas, entre elas A estepe/ História de uma
viagem, de Anton Tchékhov, que agora nos chega pela Penguin Companhia,
em tradução do escritor Rubens Figueiredo. Primeiro relato mais longo de
Tchékhov, A estepe é uma novela que _ como as experiências extremas _,
ao mesmo tempo incomoda e assombra. Conta a história do menino
Iegóruchka, de 9 anos, sobrinho do comerciante Kusmitchóv que, a pedido
da mãe, o leva do interior profundo da Rússia até uma cidade maior em
que possa estudar. Em sua travessia da estepe, tio e sobrinho são
acompanhados pelo padre Khristofor _ que também abandonou a batina para
se tornar negociante _ e pelo jovem cocheiro Deniska.
As palavras costumam nos fugir quando estamos diante dos grandes
livros. É o que ocorre com A estepe, uma narrativa que supera, em muito,
tudo o que se possa dizer sobre ela. “O menino, sem entender para onde e
por que viajava, estava sentado na boleia da charrete ao lado de
Deniska, segurando no cotovelo do cocheiro para não cair e sacudindo
como uma chaleira no fogão aceso”. As imagens são fortes e luminosas _
Tchékhov escreve como um pintor clarividente. Assim, ele nos arranca de
nosso mundo vulgar, lançando-nos com força para fora de nós mesmos.
É uma triste experiência para Iegóruchka. “Ele se sentia extremamente
infeliz e tinha vontade de chorar”. Exímio paisagista, Tchékhov tem o
dom de transformar sentimentos em imagens, de forma que nunca mais
consigamos deles nos esquecer. “Diante dos olhos dos viajantes, se
alastrava a planície vasta, infinita, cortada por uma cadeia de colinas.
(...) Essas colunas se fundiam numa ondulação que se estendia à
direita, da estrada até o horizonte, e desaparecia na vastidão lilás”.
Uma das características mais fortes da estepe é a ausência de limites.
Você não sabe onde as coisas começam e onde elas terminam. Tudo se
dissolve num grande clarão, que hipnotiza os viajantes. Na alma de um
menino, essa sensação se alarga.
A estepe se define, sobretudo, por dois elementos: a repetição e o
tédio. Há, porém, uma beleza dolorosa nessa paisagem vazia _ aspecto que
não escapou a Tchékhov, ao contrário, do qual ele arrancou a força de
sua narrativa. Consegue extrair, do nada, um retrato resplandecente do
mundo e das pessoas. “Sem nada para fazer, Iegóruchka pegou um grilo no
capim e, dentro do punho fechado. Ergueu-o até a orelha e por muito
tempo ficou ouvindo como ele tocava seu violino”. Na vastidão da estepe,
as pequenas coisas se agigantam. Parece haver também mais espaço para a
fantasia _ característica, aliás, das viagens que Tchekhov tanto
apreciava.
A repetição inverte o sentido da realidade, desmascarando sua suposta
simplicidade. “Um minuto depois a charrete seguiu pela estrada. Como se
ela andasse para trás e não para a frente, os viajantes contemplavam as
mesmas cenas que tinham visto antes do meio-dia”. Mas a repetição
também abre espaço para o sonho. “Em meio aos chiados monótonos,
perturbando o ar imóvel, irrompe cada vez mais freqüente o mesmo “ah!
ah!” de espanto e se ouve o grito de um pássaro que não dorme ou
delira”. O assombro procede da ausência. É ela, ausência, que promove e
assina a imaginação.
Mas quem é o homem que está por trás de A estepe? O que sente o
sujeito que traça imagens tão inesquecíveis? Anton Tchékhov não
acreditava muito em seu trabalho. Escreveu seu relato nos dois primeiros
meses de 1888, quando tinha 28 anos. Lembra-nos Rubens Figueiredo em
seu prefácio que, embora já fosse um médico formado, sobrevivia, àquela
época, com as ficções que vendia a publicações de pouco prestígio. É
rigoroso, às vezes impiedoso, consigo mesmo. Em pleno processo de
escrita, escreve ao amigo Grigoróvitch: “Se minha novelinha fizer os
meus colegas lembrarem a estepe, que esqueceram, se ao menos um dos
motivos por mim esboçados, de modo superficial e seco, der a qualquer
poetazinho ocasião de meditar, eu já serei grato por isso”.
Tchekhov teria sempre uma postura muito crítica em relação a própria
ficção. No mesmo mês de janeiro, escreve a Jákov Polónski: “Minha
novelazinha não me satisfaz. Parece-me atravancada, enfadonha e por
demais especializada”. Sabe Tchékhov que, mesmo estando a literatura
atada à realidade, ao escritor não basta ver. Em carta ao editor
Suvórin, dois anos depois, reflete: “Eu vi tudo; portanto a questão não o
que eu vi, mas como vi”. Escritor ligado a seu povo e à gente comum,
em outra carta a Suvórin ele afirma: “É mais fácil escrever a respeito
de Sócrates, que de uma fidalga ou de uma cozinheira”. Diante da
simplicidade, o “como” se agiganta.
Também em relação a si mesmo Tchekhov é impiedoso: “Sou medroso e
cismado; tenho medo de me apressar e, geralmente, tenho medo de ser
publicado”, diz em carta a Alersei Plechtchéiev, de abri de 1888 _
quando já tinha colocado o ponto final em sua novela. Quase 130 anos
depois, suas reflexões – que leio em Sem trama e sem final, seleção de
pensamentos do escritor organizada por Piero Brunello (Martins Fontes,
tradução de Homero Freitas de Andrade) _ ainda soam surpreendentes e,
mesmo, incoerentes.
Na verdade, elas vêm confirmar que a grandeza do escritor se mede não
só por suas certezas, mas sobretudo por suas dúvidas. Também os
escritores atravessam uma vasta estepe _ um campo deserto e vazio _, no
qual perseguem as palavras. Escrever é um processo árduo, que exige idas
e vindas. Que exige coragem para duvidar de si mesmo. Com muita ênfase,
Tchékhov criticou os jovens escritores de seu tempo, em quem via altas
doses de “farisaísmo, estupidez e arbitrariedade”. A hipocrisia, como se
sabe, é irmã da arrogância. Elementos venenosos que, em vez fazer um
escritor avançar, o atolam em seus próprios defeitos.
Mais sábio agira como Tchékhov que, escrevendo sobre A estepe, não
teve medo de dizer: “Minha novela nem parece uma novela, parece uma
enciclopédia da estepe”. Só porque foi duro consigo mesmo e
intransigente em relação às próprias dúvidas, Tchékhov escreveu um
grande livro.
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* José Castello é escritor e jornalista. Autor, entre outros, de “Ribamar”, Jabuti de “romance do ano” em 2011, “Vinicius: o poeta da paixão” (Jabuti de “ensaio do ano” em 1995) e “A literatura na poltrona. É Mestre em Comunicação pela UFRJ
(Texto publicado no suplemento “Prosa” do O GLOBO em 01/08/15)* José Castello é escritor e jornalista. Autor, entre outros, de “Ribamar”, Jabuti de “romance do ano” em 2011, “Vinicius: o poeta da paixão” (Jabuti de “ensaio do ano” em 1995) e “A literatura na poltrona. É Mestre em Comunicação pela UFRJ
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