segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A dúvida de Tchékhov

José Castelo*

  

A estepe é uma região plana e árida, que se aproxima do deserto. É uma das paisagens mais marcantes do sul da Rússia. Inspirou grandes narrativas, entre elas A estepe/ História de uma viagem, de Anton Tchékhov, que agora nos chega pela Penguin Companhia, em tradução do escritor Rubens Figueiredo. Primeiro relato mais longo de Tchékhov, A estepe é uma novela que _ como as experiências extremas _, ao mesmo tempo incomoda e assombra. Conta a história do menino Iegóruchka, de 9 anos, sobrinho do comerciante Kusmitchóv que, a pedido da mãe, o leva do interior profundo da Rússia até uma cidade maior em que possa estudar. Em sua travessia da estepe, tio e sobrinho são acompanhados pelo padre Khristofor _ que também abandonou a batina para se tornar negociante _ e pelo jovem cocheiro Deniska.

As palavras costumam nos fugir quando estamos diante dos grandes livros. É o que ocorre com A estepe, uma narrativa que supera, em muito, tudo o que se possa dizer sobre ela. “O menino, sem entender para onde e por que viajava, estava sentado na boleia da charrete ao lado de Deniska, segurando no cotovelo do cocheiro para não cair e sacudindo como uma chaleira no fogão aceso”. As imagens são fortes e luminosas _ Tchékhov escreve como um pintor clarividente. Assim, ele nos arranca de nosso mundo vulgar, lançando-nos com força para fora de nós mesmos. 

É uma triste experiência para Iegóruchka. “Ele se sentia extremamente infeliz e tinha vontade de chorar”. Exímio paisagista, Tchékhov tem o dom de transformar sentimentos em imagens, de forma que nunca mais consigamos deles nos esquecer. “Diante dos olhos dos viajantes, se alastrava a planície vasta, infinita, cortada por uma cadeia de colinas. (...) Essas colunas se fundiam numa ondulação que se estendia à direita, da estrada até o horizonte, e desaparecia na vastidão lilás”. Uma das características mais fortes da estepe é a ausência de limites. Você não sabe onde as coisas começam e onde elas terminam. Tudo se dissolve num grande clarão, que hipnotiza os viajantes. Na alma de um menino, essa sensação se alarga.

A estepe se define, sobretudo, por dois elementos: a repetição e o tédio. Há, porém, uma beleza dolorosa nessa paisagem vazia _ aspecto que não escapou a Tchékhov, ao contrário, do qual ele arrancou a força de sua narrativa. Consegue extrair, do nada, um retrato resplandecente do mundo e das pessoas. “Sem nada para fazer, Iegóruchka pegou um grilo no capim e, dentro do punho fechado. Ergueu-o até a orelha e por muito tempo ficou ouvindo como ele tocava seu violino”. Na vastidão da estepe, as pequenas coisas se agigantam. Parece haver também mais espaço para a fantasia _ característica, aliás, das viagens que Tchekhov tanto apreciava. 

A repetição inverte o sentido da realidade, desmascarando sua suposta simplicidade. “Um minuto depois a charrete seguiu pela estrada. Como se ela andasse para trás e não para a frente, os viajantes contemplavam as mesmas cenas que tinham visto antes do meio-dia”. Mas a repetição também abre espaço para o sonho. “Em meio aos chiados monótonos, perturbando o ar imóvel, irrompe cada vez mais freqüente o mesmo “ah! ah!” de espanto e se ouve o grito de um pássaro que não dorme ou delira”. O assombro procede da ausência. É ela, ausência, que promove e assina a imaginação.

Mas quem é o homem que está por trás de A estepe? O que sente o sujeito que traça imagens tão inesquecíveis? Anton Tchékhov não acreditava muito em seu trabalho. Escreveu seu relato nos dois primeiros meses de 1888, quando tinha 28 anos. Lembra-nos Rubens Figueiredo em seu prefácio que, embora já fosse um médico formado, sobrevivia, àquela época, com as ficções que vendia a publicações de pouco prestígio. É rigoroso, às vezes impiedoso, consigo mesmo. Em pleno processo de escrita, escreve ao amigo Grigoróvitch: “Se minha novelinha fizer os meus colegas lembrarem a estepe, que esqueceram, se ao menos um dos motivos por mim esboçados, de modo superficial e seco, der a qualquer poetazinho ocasião de meditar, eu já serei grato por isso”.

Tchekhov teria sempre uma postura muito crítica em relação a própria ficção. No mesmo mês de janeiro, escreve a Jákov Polónski: “Minha novelazinha não me satisfaz. Parece-me atravancada, enfadonha e por demais especializada”. Sabe Tchékhov que, mesmo estando a literatura atada à realidade, ao escritor não basta ver. Em carta ao editor Suvórin, dois anos depois, reflete: “Eu vi tudo; portanto a questão não o que eu vi, mas como vi”.  Escritor ligado a seu povo e à gente comum, em outra carta a Suvórin ele afirma: “É mais fácil escrever a respeito de Sócrates, que de uma fidalga ou de uma cozinheira”. Diante da simplicidade, o “como” se agiganta.

Também em relação a si mesmo Tchekhov é impiedoso: “Sou medroso e cismado; tenho medo de me apressar e, geralmente, tenho medo de ser publicado”, diz em carta a Alersei Plechtchéiev, de abri de 1888 _ quando já tinha colocado o ponto final em sua novela.  Quase 130 anos depois, suas reflexões – que leio em Sem trama e sem final, seleção de pensamentos do escritor organizada por Piero Brunello (Martins Fontes, tradução de Homero Freitas de Andrade) _ ainda soam surpreendentes e, mesmo, incoerentes.

Na verdade, elas vêm confirmar que a grandeza do escritor se mede não só por suas certezas, mas sobretudo por suas dúvidas. Também os escritores atravessam uma vasta estepe _ um campo deserto e vazio _, no qual perseguem as palavras. Escrever é um processo árduo, que exige idas e vindas. Que exige coragem para duvidar de si mesmo. Com muita ênfase, Tchékhov criticou os jovens escritores de seu tempo, em quem via altas doses de “farisaísmo, estupidez e arbitrariedade”. A hipocrisia, como se sabe, é irmã da arrogância. Elementos venenosos que, em vez fazer um escritor avançar, o atolam em seus próprios defeitos.

Mais sábio agira como Tchékhov que, escrevendo sobre A estepe, não teve medo de dizer: “Minha novela nem parece uma novela, parece uma enciclopédia da estepe”. Só porque foi duro consigo mesmo e intransigente em relação às próprias dúvidas, Tchékhov escreveu um grande livro.
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 * José Castello é escritor e jornalista. Autor, entre outros, de “Ribamar”, Jabuti de “romance do ano” em 2011, “Vinicius: o poeta da paixão” (Jabuti de “ensaio do ano” em 1995) e “A literatura na poltrona. É Mestre em Comunicação pela UFRJ
(Texto publicado no suplemento “Prosa” do O GLOBO em 01/08/15)
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