domingo, 2 de agosto de 2015

DEMASIADAMENTE PÓS-HUMANO

 
(esta entrevista foi republicada aqui com permissão do autor)

Quando se trata de refletir sobre as implicações sociológicas da tecnologia, Laymert Garcia dos Santos é um dos poucos pensadores brasileiros a ir além da mera repetição daquilo que já se sabe sobre o assunto. A radicalidade de suas ideias e a maneira direta com que as expõe em debates, palestras, aulas e entrevistas muitas vezes fazem com que seja classificado como “catastrofista” —  uma injustiça, dada a evidente positividade de seu pensamento. Suas ideias têm o poder de incomodar, principalmente pela sua capacidade de apontar tendências cuja existência muitos prefeririam não admitir. E se o incômodo é o primeiro passo para a mudança, talvez seja justamente por isso que Laymert vem alcançando um reconhecimento cada vez maior por parte de jovens pesquisadores no Brasil e no exterior.

Voz ativa em discussões que extrapolam os limites da universidade, Laymert dedica-se a temas que vão das recombinações artísticas dos irmãos Chapman à jurisprudência brasileira sobre biotecnologia e propriedade intelectual. Como problemática transversal, tem sempre a tecnologia e suas implicações sociais, foco que se formou durante seus estudos de pós-graduação na França nos anos 1970, quando frequentou cursos de Michel Foucault e Gilles Deleuze e entrou em contato com a obra de Gilbert Simondon. “Sempre tive grande dificuldade para dizer o que fazia”, diz Laymert. “Um belo dia, quando cheguei na Inglaterra como professor visitante em 1992, [o sociólogo] Hermínio Martins falou: ‘o que você faz é Sociologia da Tecnologia’. A partir daí, adotei este rótulo.”

Além de lecionar, como professor titular, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Laymert desenvolve uma pesquisa sem paralelos no Brasil sobre aquilo que ele chamaria de “o futuro do humano”. Parte dessa pesquisa já pode ser conhecida nos últimos capítulos de seu mais recente livro, Politizar as novas tecnologias: o impacto sociotécnico da informação digital e genética (São Paulo: Editora 34, 2003), que traz também uma boa amostra de sua produção ao longo da década de 1990.

Laymert concedeu esta entrevista ao grupo de pesquisa “Conhecimento, Tecnologia e Mercado”, CTeMe, que ele lidera, logo após retornar de um período de seis meses na Europa, onde deu continuidade à sua pesquisa atual e dividiu, com Cynthia Morrison-Bell, a curadoria da exposição coletiva Citizens, em Londres.

Cecília – O objetivo central do seu último livro é discutir o desenvolvimento tecnocientífico. Mas, em alguns âmbitos, pelo menos no Brasil, não é possível sequer abordar a questão. Que tipo de reação provoca uma proposta como essa? Eu concordo plenamente. É por isso que algo que parece óbvio, como politizar as tecnologias e politizar a questão da tecnociência, aparece como uma provocação. Eu acho que é óbvio porque não existe, no meu entender, nenhum setor da sociedade que possa se colocar acima dela; e é o que acontece aqui. O simples fato de trazer a questão à tona incomoda, e eu vejo isso pela reação de cientistas quando participo de seminários. A simples menção à possibilidade de questionar o que eles estão fazendo é tomada como uma tentativa inaceitável de imposição de limites, e somos imediatamente catalogados como fundamentalistas, arcaicos, anacrônicos.

Acho que praticamente não existe essa discussão no Brasil. Quando se trata de questionar o estatuto da tecnologia, o máximo que as pessoas conseguem é discutir políticas tecnológicas. Mas há uma questão anterior, muito maior. E essa questão, na verdade, é uma “não questão”.

Aqui, o problema da tecnologia soma-se ao fato de que o país é pobre. Em país pobre, tecnologia é fetiche. Em que sentido é fetiche? Se você pode aceder à tecnologia, isso faz uma diferença e é uma diferença de status, de prestígio. A tecnologia faz uma diferença social. Então, o entendimento de que se está dentro do progresso ou da evolução tecnológica é feito pela via do consumo e não pela via da produção ou da inovação. As elites pensam que basta aceder ao uso para se alcançar a modernidade. É por isso que considero a discussão muito limitada: o máximo que se consegue é o acesso a ela através do uso e não a sua produção.

Percebi isso de uma maneira muito tosca quando voltei da França em 1980 e fui, com minha mulher, fazer fotografia para documentos numa galeria na rua Augusta. Ao lado da máquina — que, a princípio, deveria fazer automaticamente a fotografia —, havia uma mulher uniformizada com uma tesourinha na mão. Comprava-se uma ficha dessa mulher, ela botava a ficha na máquina, ajustava o banco e fazia todas as operações como se estivéssemos num estúdio fotográfico. Quer dizer, havia uma espécie de acoplamento entre uma tecnologia automática e a figura arcaica dessa mulher, que mostrava uma inadequação e um engate bastante complicado. Eu nem acho que esse engate seja apenas negativo. Temos aí o Christian Kasper1, que estuda em seu doutorado questões de tecnologia no meio dos moradores de rua, pensando tecnologia como desvio de função.

O Félix Guattari achava que o barato do Brasil era esse. Numa certa época, durante os anos 1980, ele viajava anualmente para o Brasil ou para o Japão, alternando os destinos. Ele achava isso interessante porque podia comparar como a tecnologia se inseria socialmente na Europa (ele vivia em Paris) e em outros lugares. Ele gostava de ver, por exemplo, como uma jovem baiana negra que se vestia de pombagira no Candomblé, quando saía do ritual pegava seu walkman, se acoplava naquela máquina e saía rebolando. Era um tipo de ligação com a tecnologia que, segundo ele, só podia acontecer por causa das diferenças de temporalidade. Portanto, essa história tem um lado positivo e um lado negativo.

Acho que precisamos, no Brasil, de um estudo aprofundado sobre a questão da tecnologia como fetiche, de como ela é apropriada como uso suntuário e ostentação.

Martha – O desenvolvimento da ciência e da tecnologia se faz através de consórcios que ultrapassam as fronteiras nacionais. No Brasil, há uma biodiversidade enorme não só nos recursos naturais, mas também nos humanos. No caso da reprodução assistida, por exemplo, o Brasil fornece o material humano para fazer pesquisa. Nesse sentido, não haveria um imaginário de que o Brasil está participando na produção e na inovação dessas pesquisas?
Acho que sim, mas por um lado que considero negativo, pois ele fornece matéria prima. O fato de essa matéria ser “gente” não se restringe à reprodução assistida. Meu filho, que trabalha no Hospital das Clínicas, em São Paulo, comenta o interesse de laboratórios e de pesquisadores estrangeiros pelas patologias que se apresentam lá. São Paulo é uma megalópole com todo tipo de problema: tem uma diversidade cultural e humana enorme, mas uma legislação que nem sempre funciona, permitindo que certas patologias possam ser estudadas como num campo de provas. Os países onde a legislação é mais frouxa são transformados em lugares para testes e pesquisas. O Brasil participa desse processo de pesquisa de ponta pelo lado ruim justamente porque não existe regulação das atividades —  e, quando existe, pode ser burlada. Bom seria se tivéssemos a possibilidade de, por exemplo, transformar em patenteamento pesquisas feitas pela força do desenvolvimento tecnológico local. Ora, quando se comparam as estatísticas de desenvolvimento de patentes, nota-se que a participação do Brasil é irrisória. Portanto, estamos na corrida de um modo problemático.

Osvaldo – O que você entende por pós-humano e qual é a relação entre o pós-humano e o humanismo?
Eu acredito que há uma crise com relação às categorias do humanismo e a questão do pós-humano está ligada a isso. Existem várias perspectivas para ler o que está acontecendo. Hermínio Martins qualificou duas perspectivas fundamentais: uma é a via da singularidade, que é a mais radical porque entende o pós-humano como uma superação do humano que literalmente o deixa para trás. Pertence a essa via a aposta que é feita na inteligência artificial e no desenvolvimento daquilo que seria a abertura de um outro tipo de evolução, que viria com os robôs. O humano seria superado porque, tal como existe hoje, ele estaria obsoleto. Essa é uma via radical e otimista, pois acha que, se seu corpo é um hardware falho e ultrapassado, você pode fazer um download de sua mente num corpo que seja melhor. Mas a obsolescência do corpo estaria se dando aos poucos e não de uma só vez. Ela ocorre, por um lado, através de uma necessidade aparentemente crescente de modificar o organismo mediante a incorporação de próteses para lidar com a velocidade da transformação; e, por outro, através da formulação de uma “exigência” cada vez maior de que o homem precisa poder viver em ambientes que não são o seu habitat natural — como as viagens espaciais. Alguns cosmólogos, por exemplo, chegam a pensar que a vida inteligente precisa continuar no espaço, caso uma catástrofe elimine todas as condições de sobrevivência da espécie humana na terra, tentando antecipar este fim.

Existe um segundo grupo, que é o da transformação biotecnológica ou biogenética. Para eles, não há uma superação do humano, mas sim a sua transformação. O pós-humano seria a possibilidade de se conceber a abertura de uma segunda linha de evolução do humano através da sua transformação genética. Essa segunda linha é menos radical do que a primeira, pois não postula necessariamente uma obsolescência do humano, mas inaugura aquilo que alguns estão chamando de um novo tipo de eugenia. Na eugenia negativa havia a purificação da raça através da eliminação daqueles caracterizados como “humanos deficientes”. Na eugenia positiva, existe a possibilidade de se melhorar o patrimônio genético por meio de transformações nas células germinativas que, acumulando-se ao longo de muitas gerações, dariam origem a uma segunda linha de evolução do humano. No futuro haveria uma diferença grande entre aqueles que ainda evoluem de acordo com a seleção natural e aqueles que evoluem de acordo com essa transformação genética.

Há ainda uma terceira linha de pensamento, que eu acho a mais interessante, que considera que essas duas linhas constroem, ao lado da aceleração tecnocientífica e econômica, uma espécie de grande narrativa da obsolescência do humano e do futuro pós-humano. O capitalismo e a tecnociência estão apresentando a obsolescência e a passagem para o pós-humano dessa maneira.

Mas podemos pensar isso de outra forma, levando em consideração não a técnica, mas sim a máquina, ou seja, as maquinações. Em que medida os humanos são maquinados também, em que medida eles pertencem ao mesmo terreno do pré-individual, quais relações existem entre o humano e o não-humano, no sentido do animal, no sentido da máquina? Que tipo de transformações ainda poderiam ser atualizadas no humano? Partimos, portanto, do pressuposto de que não há obsolescência do humano. Existe muita virtualidade, nem se sabe quanta, e nem é o caso de quantificar. Supor que o humano está obsoleto é fechar uma possibilidade aberta para construir a via que a tecnociência e o capital querem colocar para nós. Então esse é um problema político. Essa linha — representada por Ansell Pearson, Brian Massumi, gente inspirada em Deleuze e Guattari, o pessoal que pensa a biopolítica em termos foucaultianos — até usa uma outra palavra para se referir à questão do pós-humano. Eles falam em “transumano”, porque pensam essa questão tomando como referência o “para além do humano” de Nietzsche, que não significa a morte do “homem”, mas a morte do “Homem” consagrado pelo humanismo e pelo iluminismo. É claro que deve haver outras tendências, mas o que eu conheço do campo é delimitado mais ou menos por aí.

Essa última linha é diferente da vertente religiosa ou da heideggeriana. A religiosa percebe isso e tenta segurar, botar limites agarrados ao humanismo, a referenciais que não se aplicam mais à situação. A heideggeriana, muito diferentemente dos deleuzianos, está preocupada não com o devir, mas com a essência, e por isso preocupa-se mais com a questão da técnica do que com a da maquinação. O principal problema que tenho notado nesse grupo é uma valorização do humano no que ele tem de animal, como se houvesse uma espécie de terreno a salvaguardar. Esse problema é quente, pois um recuo para o animal implica a tentativa de segurar uma espécie de “essência do humano” que já não tem sentido. Essa posição não me interessa. A meu ver, o pensamento que tem futuro é um pensamento que briga com a tendência dominante à construção da grande narrativa e que, ao mesmo tempo, não tenta segurar a “essência do humano”, mesmo porque esse pensamento não a considera uma essência e nem que valha a pena segurá-la.

Márcio – É comum as pessoas dizerem que o corpo humano é uma máquina. Não dizemos, por exemplo, que o coração parece uma bomba, mas que ele é uma bomba. Por que, em sua opinião, não dizemos mais frequentemente o contrário, ou seja, que a máquina se assemelha ao corpo ou que a bomba parece um coração?
Mais interessante do que essa oposição é, justamente, a diferença. Porque o importante é a diferença entre o humano e a máquina e em que nível podemos pensá-la. O que me interessa, sobretudo no Simondon (acho que ele vai exercer uma influência grande daqui para a frente, pois a sua importância está sendo crescentemente reconhecida), é pensar a tecnologia como um processo de individuação. Em que ponto nos encontramos e nos diferenciamos da máquina? No que ele chama de “realidade pré-individual”. Apesar das diferenças, existem pontos de contato ou níveis de correspondência grandes entre nossa maneira de individuar e o processo de individuação das máquinas. Por exemplo: a máquina é, digamos, pensamento congelado, matéria concretizada. Ela já tem o humano embutido. E nós, por outro lado, também temos muito de maquínico, pelo tipo de agenciamento que fazemos em nossa relação com o lado de fora. Por esse motivo, pensar a questão em termos de oposição é muito ruim: ou se antropomorfiza a máquina, ou se mecaniza o humano. Como diz Simondon, todo pensamento que se dá em termos de oposição acaba considerando a máquina um estrangeiro, um escravo. Não é isso que interessa, mas saber em que medida podemos ter um tipo de individuação que se dá junto com o processo de individuação das máquinas. Em outros termos: de que maneira, ao nos individuarmos, atualizamos uma potência virtual com as máquinas, que então também atualizam virtualidades que pertenciam ao terreno do pré-individual.

A esse respeito, o pensamento de Deleuze e Guattari é interessante. A economia libidinal, tal como proposta no Anti-Édipo 2, é um desejo maquínico que opera junto de uma grande maquinação social, na qual a tecnologia e as máquinas são um vetor. Mas elas só podem fazer o que fazem porque estão conectadas, de um lado, ao desejo, e de outro, ao socius —; portanto, de um lado à economia política, de outro à economia libidinal. A maquinação faz parte do humano. Maquinação é agenciamento, ou agenciamentos moleculares a partir desse terreno pré-individual onde nos encontramos com as máquinas, assim como com os animais e o inanimado. Simondon, em sua trilogia,3 começa escrevendo sobre o modo de existência dos objetos técnicos, mas depois passa aos processos de individuação do físico, depois do ser vivo, depois do humano, até chegar ao coletivo. Quer dizer, temos aí todo o processo de individuação naquilo que costumamos pensar separadamente: o ser vivo, a máquina, o humano e o ser inanimado.

Emerson – Em entrevista recente, Bernard Stiegler afirma que Deleuze “não pensou verdadeiramente a técnica”, pois “estava demasiadamente ligado a uma forma bergsoniana de pensar”4. Você concorda com essa afirmação, inclusive lembrando que Deleuze também era um leitor de Simondon?
Acho uma grande bobagem o que o Stiegler diz nessa entrevista. É um comentário tipicamente francês. O problema dos filósofos hoje na França é a sombra de Deleuze e Foucault. Todos que são proeminentes hoje sabem que o são porque os outros estão mortos, e isso faz diferença. Não estou falando só do Stiegler, mas de outros também, como Badiou e até outros, melhores que o Stiegler. De certa maneira, eles têm que matar os pais.

A afirmação é completamente injusta, porque se há alguém que pensou a tecnologia na sociedade contemporânea, esse alguém é Deleuze; Deleuze e Guattari, juntos (embora eu esteja indevidamente deixando de lado o Simondon). Tenho a impressão de que se alguém fez a relação, pela maquinação, entre economia política e economia libidinal (esse era o nome do curso de Deleuze em Vincennes, na época em que todo mundo queria juntar Marx e Freud), foi justamente Deleuze, com Guattari. É uma tremenda injustiça. Enfim, o Stiegler diz isso porque precisa puxar para ele o cobertor.

Emerson – De alguns anos para cá houve um aumento, no Brasil, de uma literatura relacionada ao pós-humano, ao futuro do humano, inclusive nas artes, muitas vezes com discursos simplistas e sem aprofundamento teórico e político. Como você vê esse fenômeno? Desde o início dos anos 1990 eu acompanhava a discussão dos recursos genéticos e, em função disso, comecei a me interessar por uma bibliografia que pudesse me ajudar a entender a chamada “virada cibernética” e o conceito de “informação”. Resgatei então o que havia lido de Simondon, no final da década de 70, para minha tese de doutorado. Apoiei-me bastante nele para pensar a questão política da tecnologia. Simondon pretendia elaborar uma filosofia das máquinas diferente da filosofia autocrática que se tinha até então e que via a máquina como servo ou como senhor. Quando quis entender melhor essa questão da informação genética, voltei ao Simondon e vi que sua filosofia sobre a informação era muito mais do que uma leitura crítica da cibernética. Notei que ele me permitia entender a transformação contemporânea. E foi porque eu entendi a virada cibernética que acabei chegando à questão da incidência que isso tinha sobre o humano, principalmente a partir da leitura da Donna Haraway, mas também porque o Simondon me permitiu reler Deleuze e Guattari já em uma chave diferente, agora pensando a informação dentro da questão do molecular.

Desde que estudei Simondon, sabia que só seria possível pensar a questão da relação homem-máquina, mesmo num país de Terceiro Mundo, de maneira não autocrática. No Brasil, quando se estuda tecnologia (principalmente tecnologias avançadas), é comum ouvir que “isso é assunto para Primeiro Mundo”, que “aqui tem gente morrendo de fome, populações excluídas da tecnologia”. Eu não concordo com isso: daí justamente a questão de politizar as novas tecnologias. Primeiro porque Marx nos ensinou que, se é para estudar o capitalismo, interessam não as suas formas mais atrasadas, mas o capitalismo de ponta, para saber em que direção ele está caminhando. Por isso ele foi para a Inglaterra e estudou o que havia de mais avançado naquele tempo. Portanto, se é para estudar tecnologia, que seja tecnologia de ponta.

Não acho que estudar tecnologia de ponta em um país que não a tem ou não a produz seja alienação, pois ninguém escapa desse processo global de aceleração tecnocientífica, nem os ianomâmis. Sem esse estudo, as opções tecnológicas serão feitas sem que se tenha a mínima condição de discutir. O exemplo do acesso aos recursos genéticos é um caso claro. Mesmo tentando discutir, vemos que existe uma grande dificuldade de perceber o cerne da questão. Mas se não se tentar ao menos discutir, só uma determinada maneira de implementação de opções tecnológicas será feita e, quando as pessoas acordarem, já será tarde.

É preciso pelo menos tentar colocar a questão. Não para chegarmos lá, pois já sabemos que não chegaremos, mas para não fazermos o papel de idiota completo que recebe tudo pronto, depois que as opções já foram feitas e não há mais nada a dizer. Aprendi muito com Vandana Shiva, que também vem de um país sem tecnologia, a Índia, mas que tem uma cultura tradicional de três mil anos. Ela estudou Física Nuclear pois sabia que era através da ponta do processo que se podia ter a inteligibilidade do que caía na Índia como seus efeitos. Portanto, não acho que seja uma questão de alienação. Ao contrário, é porque tem pouca discussão que somos o tempo todo engrupidos.

Emerson – Como você vê, hoje, sua produção sobre o campo das artes?
Meu interesse por arte é, primeiro, por fruição. E também porque é uma maneira de captar o que está acontecendo não pela via do entendimento, mas pela da sensação. Quando isso começa a cruzar, para mim existe um problema importante. Vou dar um exemplo, até para dizer por que acredito que a arte esteja em um buraco complicado.

Abriu agora em Paris uma exposição chamada “Dionisíaco”. Por definição, dionisíaco é o excesso, mas ele não estava presente. Digamos, havia uma representação do excesso, uma ilustração do que poderia ser entendido como excesso. Mas onde ele estava? Na minha opinião, o excesso está no próprio movimento do capitalismo e no atraso da nossa cabeça em lidar com esse movimento quando o motor do capitalismo passou a ser a tecnociência. E, se o excesso está aí, acho que a arte começa a ter pouco a dizer a respeito, porque falta radicalidade nos trabalhos.

Nos últimos anos, andei escrevendo sobre arte em várias circunstâncias, um pouco para testar, para mim mesmo, minha capacidade de percepção, para ver o que seria possível perceber se houvesse o desafio de ter que escrever sobre algum trabalho. Mas acho que é um capítulo que estou encerrando, porque apesar de ser uma via de conhecimento interessantíssima (por ser pela via da sensação e não da intelecção, o que favorece a percepção de muitas coisas), esse não é um objeto de atenção privilegiado em meu trabalho. É quase um efeito colateral, uma coisa que faço mais por gosto do que para avançar do ponto de vista intelectual.

Osvaldo – Mas e seu texto sobre os irmãos Chapman5, por exemplo?
Aí sim, pois vi no trabalho a aplicação e a discussão de princípios tecnocientíficos. Era um trabalho de recombinação no campo da arte, e não apenas uma ilustração ou uma representação artística da discussão que se dá no campo da ciência.

A maioria dos trabalhos que se pretendem de arte transgênica, que se misturam com ciência, na verdade são mera ilustração de questões científicas. No caso dos Chapman, não era isso. Eles fizeram, no campo artístico, a mesma operação que é feita no campo tecnocientífico, para mostrar que existe um vaso comunicante, uma correlação, porque isso tudo faz parte do contemporâneo de um modo agudo. O recurso usado no trabalho era a própria noção de valor. O recurso eram as gravuras do Goya. Mas por que é um escândalo fazer uma recombinação desse recurso e não é um escândalo fazer uma recombinação do patrimônio genético humano? É o valor de mercado do trabalho do Goya?

O interessante, no caso, é que eram originais da primeira tiragem do Goya, mas eram gravuras. Quer dizer, existiam nessa tiragem outras séries das mesmas gravuras, de modo que eles estavam fazendo uma modificação, uma recombinação, que, na verdade, ainda mantinha séries originais. Mas no caso do patrimônio genético humano, quando se faz uma transformação em células germinativas, as gerações futuras ficam comprometidas. Os Chapman estavam discutindo a questão do valor. Eles fizeram a mesma operação que os biotecnólogos, mas achei relevante porque a discussão se dava no próprio campo estético.
Osvaldo – No ano passado, você mencionou numa palestra, cujo título era muito sugestivo, “Educação desculturalizada”6, o problema da “ausência do cultivo do espírito” na universidade. Como deveríamos pensar essa ausência hoje, tanto no Brasil quanto no mundo?

No Brasil é mais grave, pois o processo de decomposição é mais acelerado. Mas eu acho que é um problema geral. O problema da universidade, para mim, começa antes da universidade brasileira existir. Mais precisamente, em 1870, com as quatro conferências do Nietzsche sobre o futuro dos estabelecimentos de ensino —; é nessa ocasião que ele arranja um jeito de ser aposentado por invalidez, se não me engano, e sai da universidade. Ele já começava a ver que a importância crescente do jornalismo e da imprensa como instrumento para fazer a cabeça das pessoas colocava a universidade em crise. Em termos de detecção do problema, ele começa lá. O que vemos atualmente seria o final desse processo. E a aceleração é ainda maior quando a universidade começa a ter que adotar cada vez mais critérios de empresa para produzir e avaliar conhecimento. Aí, no meu entender, dançou mesmo.

Esse processo é curioso porque, no mesmo momento em que a universidade parece não ser mais capaz de fornecer largueza de espírito, flexibilidade mental e capacidade de lidar com situações e problemas complexos (que seria a cultura), o capital vai considerar que essa é a coisa mais valiosa que temos. É uma situação paradoxal, mas vemos uma incapacidade total das universidades de reconhecer em que mundo estão. Há uma defasagem tão grande entre as velocidades de transformação do mundo e da universidade, uma incapacidade da universidade de reconhecer a sua inadequação com relação a esse mundo, que eu acho que ela é uma instituição terminal mesmo. O que virá depois como maneira de transmissão de saber, eu não sei. Mas acho que, em termos de dominação, o desaparecimento da universidade tem um papel importante, porque a possibilidade de se ter um pensamento crítico (inclusive necessário para a própria ponta do sistema) fica bastante reduzida sem a universidade.

Luiz – Há dois ou três anos o cineasta russo Aleksandr Sokúrov, em visita a São Paulo, afirmou que a Europa preparava-se para uma guerra e recomendou aos brasileiros que ficassem longe dos países europeus. Nesta sua temporada europeia, você percebeu algum sinal nesse sentido?
Eu não me lembrei do Sokúrov na Europa, mas acho que, se tivesse lembrado, teria sido até bom… Mas depende do que você poderia chamar de “estado de guerra”. Muita gente hoje estuda aquilo que Carl Schmitt chamava de “estado de exceção”, em várias perspectivas diferentes, para caracterizar a situação atual nos países industrializados, mas também no mundo em geral. Estado de exceção no sentido de que não há mais uma normalidade: o que existe é uma situação de incerteza, uma indeterminação, um grande questionamento do modo como eram conduzidos os conflitos antes do estado de exceção. Portanto, há uma situação nova. Alguns vão chamar isso de “pós-11 de setembro”, de “luta contra o terrorismo internacional”, de aprofundamento do neoliberalismo casado com o agravamento da crise e com a luta pelos recursos naturais, etc. De todo modo, seja qual for o nome que se dê para isso, isso pesa. No mundo intelectual e artístico, pesa como ausência de perspectiva. Há muito mais clareza na Europa, em comparação com o Brasil, de que não há perspectiva. Aqui a gente é inocente, infantil mesmo. Basta o UOL ou a Globo dizer que a economia cresceu 4% que logo achamos que tiramos o pé da lama. Nós estamos com lama pelo pescoço e ainda achamos que está melhorando. Isso é infantilidade. Nesse ponto, os europeus são mais calejados. Eles sentem um clima, que poderíamos chamar de “perplexidade” pelo lado mais positivo ou de “depressão” pelo lado mais hard. Isso aparece nitidamente na dança, no cinema, na conversa, na bibliografia, nas discussões. Existe uma combinação de agravamento da perda de direitos (em função do aprofundamento do neoliberalismo) com esse clima de instabilidade e essa questão da incerteza e da segurança. E, por outro lado, aquilo que Foucault e Deleuze chamaram de “sociedade do controle” vem vindo mesmo para valer.

Martha – Poderíamos pensar, a partir de suas respostas, que não existem alternativas. Você se considera um pessimista?
Não. Eu diria que sou um realista, com relação à questão do horizonte negativo. Acho que nós nos encontramos efetivamente num momento do andar da carruagem da história que se apresenta como um horizonte negativo. Acho infantil denegarmos isso — no sentido psicanalítico do termo: está na nossa cara e fingimos não ver, ou arranjamos todas as estratégias possíveis para não ver. Acho que só encontraremos critérios para reconhecer os sinais que aparecem na direção de saídas (o que é diferente de encontrar saídas) se assumirmos o tamanho da encrenca. Se ficarmos brincando de Poliana, não vai dar. Então, do ponto de vista coletivo, sinceramente não acredito que existam, no momento, forças capazes de responder a essa estratégia de aceleração total econômica e tecnocientífica do capital. Pode ser que exista, mas eu ainda não encontrei. As formas que me apresentaram como novas possibilidades de emancipação são incipientes demais para serem consideradas respostas efetivas. Pode ser um problema meu, que não tenho critérios para saber ver na leitura das forças o que existe de positivo. Ou pode ser que as forças em campo ainda sejam incipientes demais para se configurarem como uma construção diferente desse rumo pelo qual estamos indo.

Martha – É notório seu cansaço e sua decepção com o tema do conhecimento tradicional. O que causou isso?
A questão entre biodiversidade e biotecnologia começou a aparecer pra mim nos anos 1990. E não foi pelo lado da tecnologia, mas por meu interesse por povos indígenas. Um dia eu estava assistindo na TV a uma entrevista do Washington Novaes com Ailton Krenak (na época, líder da União das Nações Indígenas) e aquilo me encantou. Fui então procurar o Krenak e acompanhei o trabalho dele por mais ou menos três anos a partir da sede dos Povos da Floresta em São Paulo. Eles tentavam mudar a mentalidade dos brasileiros com relação aos povos indígenas, como dizia o próprio Krenak na época. Aquilo me interessou e eu passei a frequentar o local.

Quando apareceu a oportunidade de ir para a Inglaterra, em 1992, eu achei que poderia ser interessante aproveitar para estudar seriamente algo que estava começando a aparecer no Brasil (principalmente devido à Rio-92) e que eu ainda desconhecia: a questão da relação entre biodiversidade e biotecnologia. Lá, fui a um seminário que considero decisivo: era um encontro em Oxford sobre biodiversidade, patentes, direitos de propriedade intelectual e conhecimento tradicional. Quando entrei na sala, vi que lá estavam grandes advogados, representantes das grandes farmacêuticas e scholars do mais alto nível de Oxford e Cambridge. Foi dito então que os países de megadiversidade teriam de dez a quinze anos para obter o controle de seus recursos genéticos. Se eles não o fizessem dentro deste prazo, quando acordassem, os recursos não seriam mais deles. Saí do seminário com a impressão de que aquele grupo, formado pela nata das grandes empresas, da universidade e de advogados, estava discutindo algo que, para nós, o país número um em megadiversidade, ainda não era uma questão. Então resolvi estudar isso.

Em razão desse estudo e de minha conexão com o Krenak, fui convidado pela ONG Gaia, de Londres, para entrar no circuito internacional das discussões sobre o acesso aos recursos genéticos e conhecimento tradicional associado. Passei praticamente a década de 1990 inteira acompanhando esse dossiê: fui à Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, acompanhei reuniões internacionais promovidas pelos povos indígenas, viajei muito pelos países andinos… Nesse processo, foi decisiva uma viagem que fiz para a Malásia, em 1994. Lá eu tive acesso à Vandana Shiva, aos advogados, a cientistas que estavam começando a se interessar pelo assunto —  como Mae-Wan Ho (que depois iria escrever um livro interessantíssimo sobre genética)7 e Brian Goodwin —  e, enfim, a um nível interessante dessa discussão.

Mais tarde, acabei me desconectando desse tema. O problema é que a relação entre o Norte e o Sul é muito mais complicada do que parece -   e é reproduzida no interior das ONGs. Acabei entrando em conflito com ONGs do Norte por não concordar com pressões para a minha adesão a certos acordos que eram feitos com as indústrias de biotecnologia. Esses conflitos chegaram a um ponto de ruptura em 1996, quando fui impedido de entrar numa reunião de latino-americanos, mesmo sendo representante de uma ONG brasileira. As ONGs do Sul não me deixaram entrar por pressão das ONGs do Norte (que estavam financiando o lado pobre da história, como sempre acontece), porque numa conferência anterior eu não havia concordado com as opções feitas por elas. Descobri então que era inútil continuar tentando trabalhar, pois no interior mesmo das delegações e dos governos havia duas velocidades: uma ultrarrápida, para a inserção e o reconhecimento cada vez maiores do papel da biotecnologia na biodiversidade pelos países do Norte; e outra hiperlenta, esta para a adoção dos direitos de proteção para os povos indígenas e populações tradicionais. Percebi que estávamos lá apenas para encenar uma preocupação com a proteção do conhecimento tradicional. Na verdade, esse discurso era uma espécie de biombo para a verdadeira questão: a inserção da biodiversidade no chamado biomercado que vinha se constituindo durante a década de 1990, inclusive através da transformação dos acordos GATT-Trips, posteriormente incluídos na legislação da Organização Mundial do Comércio sobre propriedade intelectual8.

No plano interno, desanimei quando vi que a briga se arrastava. O movimento ambientalista era incapaz de entender que o conhecimento tradicional, por ser não moderno, não pode ser regido por um sistema de proteção que visa proteger o conhecimento tecnocientífico moderno contra os outros conhecimentos e tipos de inovação. As ONGs não eram capazes de entender que a adoção desse sistema para o conhecimento tradicional (ou as chamadas patentes coletivas ou propriedade intelectual coletiva) era, na verdade, uma maneira de dourar a pílula. No fundo, não passava de um modo de associar esse conhecimento ao processo jurídico que interessa à inovação científica e que, em troca dos recursos genéticos, apenas distribui migalhas como repartição de benefício para os povos tradicionais. Quando percebi que os nossos próprios aliados não conseguiam avançar nessa discussão, achei que era bobagem insistir. Então desisti, parei de acompanhar esse dossiê.

Pedro – Você tem textos que tratam da relação entre xamanismo e tecnologia, o mais recente deles escrito há dez anos9. Como você pensa essa relação hoje?
Da mesma maneira. Quem me abriu os olhos para isso foi o Simondon, para quem o primeiro tecnólogo é o xamã. Examinando as linhagens tecnológicas, ele mostrou que a nossa ideia iluminista de progresso tecnológico (no sentido de que a evolução tecnológica significaria uma melhora com relação a um momento anterior) era completamente ilusória. Ao fazer essa crítica, Simondon mostrou algo fundamental e que o Elias Canetti também viu, mas por uma via completamente diferente. Canetti dizia que todas as realizações tecnológicas do mundo moderno foram pensadas primeiro nos mitos. Portanto, a tecnologia moderna é a concretização do que foi pensado e imaginado através deles. O nosso problema, diz Canetti, é que não conseguimos mais imaginar ou inventar mito nenhum. Se estamos, na verdade, concretizando aquilo que a humanidade já imaginou há muito tempo, e se não conseguimos ter nenhum mito novo, temos um problema para o futuro.

A partir dessas leituras, revi meu preconceito com relação ao chamado conhecimento tradicional. Revi porque, por duas vezes, ouvi mais ou menos a seguinte frase, uma vez de um pajé xavante e outra de um pajé caiapó: “nós é que inventamos toda essa tecnologia que vocês têm, só que não nos interessamos em desenvolvê-la”. O senso comum do brasileiro ouve isso pensando assim: “ele está dizendo isso porque tem inveja da nossa tecnologia; ele diz que inventou, mas na verdade isso demonstra a pobreza de espírito desses povos”. Eu aprendi com Canetti e Simondon a ouvir de outro modo, pensando: “mas então aquilo que esses autores estavam dizendo era correto e eu realmente tenho que levar a sério o que os índios estão falando e reconhecer o xamã como inventor”. Isso sempre me interessou no meu contato com os povos indígenas. Toda vez que eles diziam alguma coisa, eu sabia que devia ouvir aquilo literalmente, que devia acreditar no que estava sendo dito. E se não conseguia entender, era porque tinha algum problema para encontrar a faixa de onda e obter aquela ressonância.

Depois, achei muito interessante quando vi, no livro do antropólogo Jeremy Narby10, que ele tomou ayahuasca no Peru porque queria acreditar nos pajés quando diziam para ele que seus conhecimentos lhes eram transmitidos pelas plantas. Se não temos esse canal, mas eles têm, porque vou considerar que o meu mundo tecnológico é mais avançado que o deles? Talvez seja justamente minha incapacidade de alcançar o seu conhecimento que me faça pensar que aquilo é tudo primitivo. Se considerarmos, por exemplo, a quantidade de coisas de que precisamos para viver, do ponto de vista material, e aquilo de que os índios precisam, pode ser que eles sejam até mais sofisticados do que nós.

É curioso que, um mês atrás, vi na vitrina da Prada em Paris uma saia feita metade de penas de cocar e metade de um tecido totalmente geométrico, jogando de uma maneira absolutamente contemporânea com a confrontação entre o primitivo e o moderno. Percebe-se então que até na alta costura essa relação é reconhecida como positiva. Eu acho até que a biotecnologia já sabe disso, mas quer predar esse conhecimento (o que eu chamo de “predação high tech“). Estou, enfim, convencido de que existe uma possibilidade de uma ponte interessantíssima e acho que o trabalho do Eduardo Viveiros de Castro está aí para mostrar que existe um mundo a ser descoberto a respeito do modo como os povos indígenas da América trabalham o virtual.

Martha – Isso é um retorno ao tradicional?
Não, de jeito nenhum. Sabemos de nossa diferença com relação a ele e não queremos uma volta para trás, mas uma conexão nova com processos e temporalidades diferentes dos que até hoje estão aí.
Um exemplo: há dois anos eu fui a Delfos (Grécia) num congresso anual onde helenistas e o pessoal de teatro se reúnem para discutir a tragédia grega. O que me impressionou foi a percepção de que existe uma parcela da cultura ocidental que fica alucinada correndo atrás do tempo do mito e tentando descobri-lo através do que ficou como o seu vestígio, que são os escritos, a arte que foi produzida naquele tempo, etc. Mas, ao mesmo tempo, com os povos tradicionais do mundo, nós temos o mito vivo —  não aquele específico da Grécia, mas o pensamento mítico vivo. Por que essa obsessão em reencontrar esse mito apenas através de um movimento arqueológico? Por que não tentar olhar para o lado e, se conseguirmos diminuir nossa arrogância, perceber que poderíamos fazer pontes positivas, conexões interessantíssimas e novas relações com os conhecimentos de todos esses povos de culturas tradicionais que ainda existem e são tesouros vivos da humanidade? E como fazer isso se fazemos genocídio com eles (que vai desde a aculturação até a dizimação mesmo), se tiramos deles as condições para continuarem se desenvolvendo? Não podemos pensar que só nós nos desenvolvemos tecnologicamente e que um índio ianomâmi é igualzinho a seu ancestral de três mil anos, que ele não se modificou nada nesse período, como se não tivesse nenhuma inteligência. É claro que, se ele evoluiu, foi numa outra chave, e o interessante é justamente a relação entre as diferentes temporalidades e entre as diferentes chaves. É interessante perguntar: se não somos mais capazes de inventar nenhum mito e se o pensamento mítico hoje só pode ser concebido por um pensamento não mítico (por especialistas que sabem tudo do mito mas não têm, eles mesmos, um pensamento mítico), por que acabar com aqueles que têm o pensamento mítico? Até egoisticamente é cretino liquidarmos com eles, porque estaremos destruindo possibilidades de construção de mundos possíveis.

Ailton Krenak me contou uma história fantástica do dia em que ele e Davi Kopenawa ianomâmi foram até Atenas receber um prêmio da Fundação Onassis pela preservação do meio ambiente. Recepcionados com limusine na porta do avião, banquetes, aquela loucura toda, eles receberam o prêmio e, enfim, foram levados para uma visita à Acrópole junto com o embaixador brasileiro. Quando a visita acabou, o embaixador perguntou para Davi: “Então Davi, o que você acha?” E ele respondeu: “Ah! Agora eu entendi, a casa do avô do garimpeiro é aqui.” “Onde estão as florestas de vocês?”, ele perguntou. “Aqui nunca teve floresta?” E responderam: “sim, há muito tempo, mas depois…”. Eu achei fantástico, porque ele trazia, agora, o antes! É o pré-socrático chegando! Ele diz: “Entendi, vocês são construtores de ruínas!” Numa outra chave, pode-se dizer: “que cretino, não soube ver a beleza da Acrópole”. Mas a relação que ele fazia era entre a ruína da Acrópole e a floresta. Num tipo de pensamento desses, o que interessa é a origem, é o “antes”, então ele vai pra trás. Acho isso muito interessante como situação.

[*] Esta entrevista foi realizada pelo grupo de pesquisa “Conhecimento, Tecnologia e Mercado” (CTeMe), em 30 de março de 2005. Participaram da conversa os seguintes pesquisadores: Cecilia Diaz-Isenrath, Emerson Freire, Luiz Cintra, Márcio Barreto, Marta Kanashiro, Martha Celia Ramírez-Gálvez, Osvaldo López-Ruiz e Pedro Ferreira.
[1] Doutorando em Ciências Sociais no IFCH-Unicamp e integrante do CTeMe.
[2] Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1972[         [ Links ]STANDARDIZEDENDPARAG]
[3] Simondon, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques, Paris: Aubier-Montaigne, 1969;         [ Links ]L’Individu et sa génèse physico-biologique, Paris: PUF, 1964;         [ Links ]L’Individuation psychique et collective, Paris: Aubier, 1989.         [ Links ]
[4] Cf. R. Silva, F. Duarte e J. Urbano, “A gramatização do vivo: entrevista a Bernard Stiegler”, in: Nada 4:16-27.         [ Links ]
[5] L. Garcia dos Santos, “As Fronteiras do Conhecimento nas Ciências Contemporâneas”, in: Nada 3:32-7.         [ Links ]
[6] Palestra proferida no “Colóquio Internacional Cultura Século XXI” em 29 de junho de 2004 no Goethe-Institut São Paulo.
Disponível na Internet em: <http://www.goethe.de/br/sap/kultur/cs21/pr_lgs.pdf >.
[7] M.-W. Ho, Genetic engineering, dream or nightmare?, New Delhi: Research Foundation for Science/The Third World Network, 1997.         [ Links ]
[8] TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), um dos acordos mundiais sobre propriedade intelectual que surgiu em 1994 durante a chamada “Rodada do Uruguai”, encontro histórico para a revisão dos acordos comerciais mundiais ligados ao acordo GATT (General Agreement of Tariffs and Trade) da Organização Mundial do Comércio. Com o TRIPS, todos os países da OMC se comprometeram a uniformizar, em prazos estabelecidos, suas próprias leis sobre propriedade intelectual.
[9] L. Garcia dos Santos, “Bill Viola, xamã eletrônico”, in: Politizar as novas tecnologias, São Paulo: Ed.34, 2003, pp.185-96.         [ Links ]
[10] J. Narby, The Cosmic Serpent, London: Phoenix, 1999.        [ Links ]
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FONTE:  http://www.cosmosecontexto.org.br/?p=3126

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