O sociólogo Howard
Becker em entrevista por Skype de sua casa, em São Francisco (EUA) - María
Aramburú/La Nacion / MARIA ARAMBURU/LA NACION
Pioneiro
nas pesquisas sobre ‘outsiders’, autor lançou no Brasil este ano manual para
estudantes e cientistas sociais
BUENOS
AIRES - Howard Becker é um patriarca da sociologia americana, mas um dos mais cool
que se pode encontrar. Nascido em 1928, completou o doutorado na
Universidade de Chicago com apenas 23 anos, quando já era pianista profissional
de jazz e tocava em bares de mais — ou melhor, menos — prestígio. Assistiu à
expansão dos departamentos da área nos Estados Unidos e tornou-se referência no
campo conhecido como sociologia do desvio, a partir de seus trabalhos sobre a
cultura da droga, sistematizados no livro “Outsiders: estudos de sociologia do
desvio” (lançado em 1963 e publicado no Brasil em 2008, pela Zahar). Escreveu
também sobre sociologia das artes (como em “O jazz em ação”, livro em parceria
com o músico e sociólogo Robert Faulkner, inédito no Brasil) e sobre
metodologia, compartilhando com estudantes da academia os truques do ofício e
seus segredos sobre como terminar uma tese e outros ensaios em “Truques da
escrita: Para começar e terminar teses, livros e artigos”, lançado há pouco no
Brasil pela Zahar.
Becker
fez carreira nas universidades Northwestern e de Washington, com períodos fora
dos Estados Unidos, no Reino Unido e no Brasil (onde deu aulas no Museu
Nacional da UFRJ). É generoso com seus conhecimentos e entusiasta de sua
disciplina. Parece ter embarcado numa tarefa de abertura de desmistificação:
não gosta muito que se fale da “Escola de Chicago” (alguns estudiosos o
consideram representante de uma “segundo Escola de Chicago”, junto com Erving
Goffman) ou que o associem apenas a uma determinada metodologia. Insiste na
importância da indagação minuciosa, a busca dos dados, que quase poderia ser
definida como uma imersão no ambiente que se vai estudar. Essa paixão pela
pesquisa, que transcende a rigidez dos métodos, é explícita em livros como “Falando
da sociedade” (lançado pela Zahar em 2009), no qual Becker compila um trabalho
de anos e conta como e o quê a literatura ou a fotografia nos ensinam sobre as
sociedades.
Embora
no início não quisesse dar aulas, com os anos foi se tornando um professor
dedicado e criativo, que pôs em prática diversas estratégias para ensinar o que
já sabia e construir novos conhecimentos com os alunos. Sua escrita recupera
essas experiências: sua sociologia não é de resultados e sim de processos, com
muito do processo de pesquisa sociológica. Está um pouco cansado de viajar e,
por isso, evita viagens longas de avião em “circunstâncias incômodas” e
inclusive nas “mais cômodas”. Mas responde por e-mail de São Francisco em
velocidade supersônica, dando uma entrevista e fazendo um pouco de sociologia
do jornalismo ao mesmo tempo.
Em
“Falando da sociedade”, o senhor diz que as ciências sociais não monopolizam o
conhecimento sobre o que acontece nas sociedades. Nesse sentido, por que usa
expressões como “falar de” ou “contar” em vez de, por exemplo, “entender” ou
“explicar”?
São
as palavras mais abrangentes que pude encontrar para abarcar o leque de formas
usadas para comunicar conhecimentos ou ideias sobre a vida social. São também,
talvez, palavras menos pretensiosas.
A
experiência cotidiana, os meios de comunicação, a literatura e o cinema muitas
vezes são considerados fontes valiosas sobre a vida social. Seu livro parece
estar direcionado sobretudo aos pesquisadores de ciências sociais. Concorda?
É
possível, mas penso que, embora pessoas de toda parte usem estas formas que as
ajudam a compreender a vida social, eu pretendia mostrar às pessoas em geral,
não só aos cientistas sociais, como usar estas fontes com esse propósito; como
ver mais em um filme ou um romance do que a mera experiência emocional, por
exemplo. Pensar nestes meios como fontes de verdadeiro conhecimento e fazê-lo
de maneira mais sistemática e consciente do que como se faz habitualmente. Mas,
é claro, o livro é dirigido, em grande medida, aos especialistas em ciências
sociais e em campos relacionados. Quanto a eles, meu objetivo foi mostrar de
que modo usar esses materiais para seus propósitos. E, especialmente, tipos de
trabalho — por exemplo, a fotografia — que transmitem um conhecimento que não é
fácil compartilhar de outra forma, mas um conhecimento que parece “não
científico”. É estranho que os cientistas sociais tenham essas ideias, porque
as ciências naturais se apoiam em materiais fotográficos como material de
pesquisa e para embasar evidências. Um exemplo claro é a astronomia.
O
que o senhor esperava que os cientistas sociais aprendessem com este livro?
De
que forma empregar esses materiais como evidência séria sobre a sociedade, não
só como entretenimento. E como usá-los como recurso para seu trabalho.
E
os não especialistas?
Que
aquilo que poderiam considerar entretenimento é também uma fonte de
conhecimento séria. Que possam ver uma obra como “A profissão da senhora
Warren”, de George Bernard Shaw, por exemplo, como um argumento sério e
razoável sobre a prostituição, tão informativo e crível como um estudo
sociológico.
Mas,
então, o que as ciências sociais nos oferecem, enquanto produção de
conhecimento? Qual é a especificidade delas?
Um
de meus professores costumava dizer que a sociologia nos conta o que é
verdadeiro sobre as pessoas como resultado do fato de que em toda parte vivemos
em grupos. O que significa que, dado que não podemos fazer nada sem a
cooperação dos outros, nossa maneira de cooperar afeta tudo o que fazemos. Isso
é muito claro nas artes. Não posso fazer um filme sozinho. Preciso de atores,
escritores, eletricistas que se ocupem da luz, operadores das câmeras que
filmam os atores que trabalham sob essas luzes etc. O filme depende da
contribuição de todos. É fácil fazer uma pequena experiência mental: todos os
filmes têm créditos pelo catering, o fornecimento de comida no set. Para
mim, os entregadores de comida também contribuem para o filme: basta imaginar
como seria um dia de filmagem sem catering. Atores e técnicos teriam que
sair para almoçar, isso levaria mais tempo do que comer no set, os dia de
trabalho se estenderiam e isso consumiria mais dinheiro do orçamento, fazendo
com que uma ou outra coisa precisasse ser cortada, e então o filme seria
diferente, com figurinos mais baratos ou sem efeitos especiais. Entende?
E
que tipo de conhecimento sobre a sociedade a literatura nos oferece? E a
literatura fantástica ou a ficção científica? A literatura “realista” é a única
capaz de contar algo sobre a sociedade?
A
literatura não precisa ser realista para nos dar informação sobre a sociedade.
A ficção científica, por exemplo, sempre foi considerada uma espécie de
experiência mental sobre o que poderia ocorrer se determinados aspectos da vida
social fossem diferentes.
Por
que o senhor estuda fotografias jornalísticas, mas não a imprensa em geral?
A
verdade é que não sei. Há muitas coisas de que não falo, muitos aspectos que
não relacionei com minha proposta. Não me propus a ser enciclopédico, e sim a
mostrar que é possível pensar sobre qualquer forma de comunicação dessa
maneira. O jornalismo seria um lugar natural para investigar as limitações
organizativas na produção de representações da vida social. Um jornalista tem
que preparar um artigo e só pode dedicar um tempo limitado a essa tarefa. Você
pode querer dedicar semanas a me entrevistar (ou não), mas isso não se encaixa
no cronograma de trabalho e distribuição de tarefas do seu jornal. Por aí vai.
Seu
trabalho é muito claro sobre os valores e os pressupostos que podem estar por
trás de uma terminologia aparentemente neutra, como quando a medicina fala de
“viciados em drogas”. O que significa a “objetividade” para as ciências
sociais?
Bem,
não falo em “objetividade”, pelo menos acredito não fazê-lo. Prefiro
“precisão”, “completude” e critérios similares, objetivos que um campo de
conhecimento pode alcançar de maneira coletiva, por meio de um processo de
crítica, argumentação e discussão. Por isso os pesquisadores de ciências
naturais se interessam tanto em publicar seus achados em periódicos revisados
por seus pares, ou seja, por seus colegas. Ao fazê-lo, o trabalho fica exposto
à crítica organizada de pessoas que sabem muito sobre o mesmo tema, que
conhecem os erros e distorções que podem afetar uma pesquisa. Bruno Latour diz,
em um de seus trabalhos, que o destino de uma afirmação científica está nas
mãos daqueles que a usam depois de sua publicação, ou seja, outros cientistas.
O
senhor é um cientista social com um passado de músico de jazz. Como isso
influenciou seu trabalho? Que vantagens e desvantagens trouxe para sua
carreira?
Acredito
que para qualquer pesquisador de ciências sociais é útil ter um conhecimento
pessoal das atividades de que participam as pessoas que você estuda. Isso não
significa que é preciso ser médico para analisar estudantes de medicina, como
fiz em “Garotos de branco: a cultura estudantil numa escola de Medicina”
(inédito no Brasil). Mas sem dúvida me ajudou o fato de ver sobre o que estavam
falando e experimentar pelo menos uma parte do que eles experimentaram. Além
disso, acredito que tocar nos clubes e bares onde toquei durante todos esses
anos me permitiu desenvolver um olhar suspeito sobre as instituições
convencionais: assim eu estava menos inclinado a aceitar o que diziam de si
mesmas, suas afirmações, e melhor preparado para fazer minha pesquisa de
maneira mais imparcial.
Quais
seriam essas “instituições convencionais”? A própria sociologia, as universidades?
Todas
as organizações clássicas. Certamente, as universidades, mas também os
hospitais e as empresas, grandes e pequenas, os governos municipais e o governo
nacional etc. Minha ideia é simples. Todas as organizações têm uma história, um
relato sobre si mesmas que enfatiza o que seus donos ou administradores pensam
que essas organizações têm de “bom”, e tentam minimizar o que poderia ser
criticado. Para eles, é uma questão de relações públicas, de minimizar as
aparências. De modo que se alguém faz uma pesquisa séria, inquisitiva,
certamente vai encontrar essas coisas criticáveis e vai incluí-las em sua
compreensão dessa organização. Vão te dizer coisas como: “Você não precisa se
preocupar com isso”, seja lá o que for. Sempre soube que cada vez que o líder
de uma organização me disse que algo não era importante e que não precisava me
preocupar com aquilo, bem, era exatamente naquilo que devia prestar atenção.
Uma intuição que sempre se provou correta.
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O jornal argentino “La Nación” integra o Grupo de Diarios América (GDA), do
qual O GLOBO faz parte
Reportagem por Ana Maria Vara,
do La Nación/GDA*
Jornal O globo online, 08/08/2015 6:00
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