sábado, 8 de agosto de 2015

Aos 87 anos, sociólogo americano Howard Becker defende estudos sobre entretenimento


 O sociólogo Howard Becker em entrevista por Skype de sua casa, em São Francisco (EUA) - María Aramburú/La Nacion / MARIA ARAMBURU/LA NACION

Pioneiro nas pesquisas sobre ‘outsiders’, autor lançou no Brasil este ano manual para estudantes e cientistas sociais

BUENOS AIRES - Howard Becker é um patriarca da sociologia americana, mas um dos mais cool que se pode encontrar. Nascido em 1928, completou o doutorado na Universidade de Chicago com apenas 23 anos, quando já era pianista profissional de jazz e tocava em bares de mais — ou melhor, menos — prestígio. Assistiu à expansão dos departamentos da área nos Estados Unidos e tornou-se referência no campo conhecido como sociologia do desvio, a partir de seus trabalhos sobre a cultura da droga, sistematizados no livro “Outsiders: estudos de sociologia do desvio” (lançado em 1963 e publicado no Brasil em 2008, pela Zahar). Escreveu também sobre sociologia das artes (como em “O jazz em ação”, livro em parceria com o músico e sociólogo Robert Faulkner, inédito no Brasil) e sobre metodologia, compartilhando com estudantes da academia os truques do ofício e seus segredos sobre como terminar uma tese e outros ensaios em “Truques da escrita: Para começar e terminar teses, livros e artigos”, lançado há pouco no Brasil pela Zahar. 

Becker fez carreira nas universidades Northwestern e de Washington, com períodos fora dos Estados Unidos, no Reino Unido e no Brasil (onde deu aulas no Museu Nacional da UFRJ). É generoso com seus conhecimentos e entusiasta de sua disciplina. Parece ter embarcado numa tarefa de abertura de desmistificação: não gosta muito que se fale da “Escola de Chicago” (alguns estudiosos o consideram representante de uma “segundo Escola de Chicago”, junto com Erving Goffman) ou que o associem apenas a uma determinada metodologia. Insiste na importância da indagação minuciosa, a busca dos dados, que quase poderia ser definida como uma imersão no ambiente que se vai estudar. Essa paixão pela pesquisa, que transcende a rigidez dos métodos, é explícita em livros como “Falando da sociedade” (lançado pela Zahar em 2009), no qual Becker compila um trabalho de anos e conta como e o quê a literatura ou a fotografia nos ensinam sobre as sociedades. 

Embora no início não quisesse dar aulas, com os anos foi se tornando um professor dedicado e criativo, que pôs em prática diversas estratégias para ensinar o que já sabia e construir novos conhecimentos com os alunos. Sua escrita recupera essas experiências: sua sociologia não é de resultados e sim de processos, com muito do processo de pesquisa sociológica. Está um pouco cansado de viajar e, por isso, evita viagens longas de avião em “circunstâncias incômodas” e inclusive nas “mais cômodas”. Mas responde por e-mail de São Francisco em velocidade supersônica, dando uma entrevista e fazendo um pouco de sociologia do jornalismo ao mesmo tempo.

Em “Falando da sociedade”, o senhor diz que as ciências sociais não monopolizam o conhecimento sobre o que acontece nas sociedades. Nesse sentido, por que usa expressões como “falar de” ou “contar” em vez de, por exemplo, “entender” ou “explicar”?
São as palavras mais abrangentes que pude encontrar para abarcar o leque de formas usadas para comunicar conhecimentos ou ideias sobre a vida social. São também, talvez, palavras menos pretensiosas. 

A experiência cotidiana, os meios de comunicação, a literatura e o cinema muitas vezes são considerados fontes valiosas sobre a vida social. Seu livro parece estar direcionado sobretudo aos pesquisadores de ciências sociais. Concorda?
É possível, mas penso que, embora pessoas de toda parte usem estas formas que as ajudam a compreender a vida social, eu pretendia mostrar às pessoas em geral, não só aos cientistas sociais, como usar estas fontes com esse propósito; como ver mais em um filme ou um romance do que a mera experiência emocional, por exemplo. Pensar nestes meios como fontes de verdadeiro conhecimento e fazê-lo de maneira mais sistemática e consciente do que como se faz habitualmente. Mas, é claro, o livro é dirigido, em grande medida, aos especialistas em ciências sociais e em campos relacionados. Quanto a eles, meu objetivo foi mostrar de que modo usar esses materiais para seus propósitos. E, especialmente, tipos de trabalho — por exemplo, a fotografia — que transmitem um conhecimento que não é fácil compartilhar de outra forma, mas um conhecimento que parece “não científico”. É estranho que os cientistas sociais tenham essas ideias, porque as ciências naturais se apoiam em materiais fotográficos como material de pesquisa e para embasar evidências. Um exemplo claro é a astronomia. 

O que o senhor esperava que os cientistas sociais aprendessem com este livro?
De que forma empregar esses materiais como evidência séria sobre a sociedade, não só como entretenimento. E como usá-los como recurso para seu trabalho. 

E os não especialistas?
Que aquilo que poderiam considerar entretenimento é também uma fonte de conhecimento séria. Que possam ver uma obra como “A profissão da senhora Warren”, de George Bernard Shaw, por exemplo, como um argumento sério e razoável sobre a prostituição, tão informativo e crível como um estudo sociológico. 

Mas, então, o que as ciências sociais nos oferecem, enquanto produção de conhecimento? Qual é a especificidade delas?
Um de meus professores costumava dizer que a sociologia nos conta o que é verdadeiro sobre as pessoas como resultado do fato de que em toda parte vivemos em grupos. O que significa que, dado que não podemos fazer nada sem a cooperação dos outros, nossa maneira de cooperar afeta tudo o que fazemos. Isso é muito claro nas artes. Não posso fazer um filme sozinho. Preciso de atores, escritores, eletricistas que se ocupem da luz, operadores das câmeras que filmam os atores que trabalham sob essas luzes etc. O filme depende da contribuição de todos. É fácil fazer uma pequena experiência mental: todos os filmes têm créditos pelo catering, o fornecimento de comida no set. Para mim, os entregadores de comida também contribuem para o filme: basta imaginar como seria um dia de filmagem sem catering. Atores e técnicos teriam que sair para almoçar, isso levaria mais tempo do que comer no set, os dia de trabalho se estenderiam e isso consumiria mais dinheiro do orçamento, fazendo com que uma ou outra coisa precisasse ser cortada, e então o filme seria diferente, com figurinos mais baratos ou sem efeitos especiais. Entende? 

E que tipo de conhecimento sobre a sociedade a literatura nos oferece? E a literatura fantástica ou a ficção científica? A literatura “realista” é a única capaz de contar algo sobre a sociedade?
A literatura não precisa ser realista para nos dar informação sobre a sociedade. A ficção científica, por exemplo, sempre foi considerada uma espécie de experiência mental sobre o que poderia ocorrer se determinados aspectos da vida social fossem diferentes.

Por que o senhor estuda fotografias jornalísticas, mas não a imprensa em geral?
A verdade é que não sei. Há muitas coisas de que não falo, muitos aspectos que não relacionei com minha proposta. Não me propus a ser enciclopédico, e sim a mostrar que é possível pensar sobre qualquer forma de comunicação dessa maneira. O jornalismo seria um lugar natural para investigar as limitações organizativas na produção de representações da vida social. Um jornalista tem que preparar um artigo e só pode dedicar um tempo limitado a essa tarefa. Você pode querer dedicar semanas a me entrevistar (ou não), mas isso não se encaixa no cronograma de trabalho e distribuição de tarefas do seu jornal. Por aí vai.

Seu trabalho é muito claro sobre os valores e os pressupostos que podem estar por trás de uma terminologia aparentemente neutra, como quando a medicina fala de “viciados em drogas”. O que significa a “objetividade” para as ciências sociais?
Bem, não falo em “objetividade”, pelo menos acredito não fazê-lo. Prefiro “precisão”, “completude” e critérios similares, objetivos que um campo de conhecimento pode alcançar de maneira coletiva, por meio de um processo de crítica, argumentação e discussão. Por isso os pesquisadores de ciências naturais se interessam tanto em publicar seus achados em periódicos revisados por seus pares, ou seja, por seus colegas. Ao fazê-lo, o trabalho fica exposto à crítica organizada de pessoas que sabem muito sobre o mesmo tema, que conhecem os erros e distorções que podem afetar uma pesquisa. Bruno Latour diz, em um de seus trabalhos, que o destino de uma afirmação científica está nas mãos daqueles que a usam depois de sua publicação, ou seja, outros cientistas. 

O senhor é um cientista social com um passado de músico de jazz. Como isso influenciou seu trabalho? Que vantagens e desvantagens trouxe para sua carreira?
Acredito que para qualquer pesquisador de ciências sociais é útil ter um conhecimento pessoal das atividades de que participam as pessoas que você estuda. Isso não significa que é preciso ser médico para analisar estudantes de medicina, como fiz em “Garotos de branco: a cultura estudantil numa escola de Medicina” (inédito no Brasil). Mas sem dúvida me ajudou o fato de ver sobre o que estavam falando e experimentar pelo menos uma parte do que eles experimentaram. Além disso, acredito que tocar nos clubes e bares onde toquei durante todos esses anos me permitiu desenvolver um olhar suspeito sobre as instituições convencionais: assim eu estava menos inclinado a aceitar o que diziam de si mesmas, suas afirmações, e melhor preparado para fazer minha pesquisa de maneira mais imparcial. 

Quais seriam essas “instituições convencionais”? A própria sociologia, as universidades?
Todas as organizações clássicas. Certamente, as universidades, mas também os hospitais e as empresas, grandes e pequenas, os governos municipais e o governo nacional etc. Minha ideia é simples. Todas as organizações têm uma história, um relato sobre si mesmas que enfatiza o que seus donos ou administradores pensam que essas organizações têm de “bom”, e tentam minimizar o que poderia ser criticado. Para eles, é uma questão de relações públicas, de minimizar as aparências. De modo que se alguém faz uma pesquisa séria, inquisitiva, certamente vai encontrar essas coisas criticáveis e vai incluí-las em sua compreensão dessa organização. Vão te dizer coisas como: “Você não precisa se preocupar com isso”, seja lá o que for. Sempre soube que cada vez que o líder de uma organização me disse que algo não era importante e que não precisava me preocupar com aquilo, bem, era exatamente naquilo que devia prestar atenção. Uma intuição que sempre se provou correta. 
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* O jornal argentino “La Nación” integra o Grupo de Diarios América (GDA), do qual O GLOBO faz parte
Reportagem  por Ana Maria Vara, do La Nación/GDA*
Jornal O globo online, 08/08/2015 6:00

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