Historiador vê Executivo paralisado por incompetência,
Congresso irresponsável, PT desmoralizado, oposição oportunista.
E, apesar dos protestos, “um cheiro de pizza”.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO Historiador, sociólogo e membro das Academias Brasileira de Letras e de Ciências |
Entrevista com José Murilo de Carvalho
Atento
às vozes que ontem bradavam “Fora Dilma” e “Fora PT” e aplaudiam a
Polícia Federal e o juiz Sérgio Moro em manifestações por todo o País,
mas ciente dos recentes acertos entre governo, tribunais e o Senado para
garantir no cargo a presidente Dilma Rousseff, o historiador José Murilo de Carvalho diz sentir um “cheiro de pizza indo ao forno”. Isso, porém, não muda o cenário da crise brasileira, afirma. “Vão arrumar uma saída para esta, mas outras crises vão aparecer”.
Do
alto de seus 50 anos de janela – de idade, são 75 – ele recorre à
ironia para comparar a crise de hoje com outras mais antigas e famosas.
Em 1954, “tudo terminou em tragédia (o suicídio de Getúlio Vargas)”. Em 1964, só não foi pior por causa da “pequena disposição de luta do presidente (João Goulart)”. Em 1992, “tivemos uma opereta (a saída de Fernando Collor)”. Hoje, “temos um drama sem nenhuma grandeza”.
Por que sem grandeza? Porque “em tese, a melhor saída seria a renúncia da presidente e sua substituição pelo vice”. Mas ele não se ilude: “Nada sugere que ela possa ter a grandeza cívica de colocar o interesse nacional acima de sua vaidade”.
Imortal na Academia Brasileira de Letras, integrante da Academia Brasileira de Ciências, Zé Murilo, como o chamam os amigos, é titular de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ] e escreveu clássicos como Os Bestializados e Cidadania no Brasil. Neste balanço sobre o País, ele resume: “Se
estivéssemos no parlamentarismo, já teríamos outro primeiro-ministro.
Mas o que se vê é que estamos longe, ainda, de ser uma república
democrática sustentável”.
Eis a entrevista.
Acha que as manifestações de ontem alteraram alguma coisa no cenário político?
José Murilo de Carvalho:
Tudo indica que levaram menos gente às ruas, mas continuam sendo um
fenômeno nacional – foram 25 Estados – e desta vez com foco mais
definido: em Dilma, no PT e na corrupção. Não reforçaram, nem reduziram o
movimento por impeachment. Com isso, as instituições – TCU, STF,
Senado — e organizações empresariais – podem sentir-se encorajadas a
levar a pizza ao forno. Mas o curso dos acontecimentos continua a
depender das investigações do Ministério Público e da Polícia Federal e
do novo herói nacional, Sérgio Moro.
Que comparação o sr. faz entre essa crise e outras famosas da nossa História?
J.M.C.:
Se caracterizarmos crise como coincidência de corrupção, estagnação
econômica, chefe de Estado impopular e acuado politicamente, é possível
sim, até onde alcança minha memória, lembrar as crises de 1954, 1964 e
1992. Em 1954, pela têmpera moral do presidente (Getúlio Vargas),
tudo terminou em tragédia. Em 1964, poderia também ter terminado em
tragédia pessoal e nacional, com guerra civil, não fosse pela pequena
disposição de luta do presidente (João Goulart). Em 1992, tivemos uma opereta (com Fernando Collor).
Hoje, por enquanto, temos um drama sem nenhuma grandeza, sem que se
possa adivinhar o desenlace. A importante diferença entre as duas
primeiras crises e as duas últimas é que nestas está ausente o
pretorianismo [intervenção militar], cabendo às forças civis se responsabilizarem totalmente pelo resultado.
Que elementos se juntaram para chegar ao que temos hoje?
J.M.C.:
Generalizando, pode-se dizer que a combinação de presidencialismo e
voto proporcional, que facilita a multiplicação de partidos, em países
de recente expansão do eleitorado e sem partidos consolidados, constitui
receita segura para crises. O início da democratização do voto data de
1945 – e os partidos mais antigos, do governo militar. A expansão do
eleitorado e a falta de barreiras ao aumento do número de partidos
transformaram a criação dos últimos em bom negócio. Chegamos ao que se
chamou de presidencialismo de coalizão, depois de cooptação, hoje mais adequadamente descrito como de mensalão, ou petrolão, todos instáveis. Daí me parecer que, passada a crise atual, virão outras. É maldição que afeta quase toda a América ibérica.
As
instituições estão funcionando bem, os militares nos quartéis, a
imprensa atua sem restrições. O que foi que não funcionou? É um sinal de
que a democracia tem seus limites e só ir às urnas votar não basta?
J.M.C.:
É verdade, e eu acrescentaria que também estão funcionando bem o
Ministério Público, graças à independência que lhe deu a Constituição de
1988 e à nova geração de procuradores que se formou depois, o
Judiciário, após a sacudidela que lhe deu Joaquim Barbosa, e a Polícia
Federal, que parece estar deixando de ser pau mandado do ministro da
Justiça. E mais ainda: a punição dos responsáveis pelo mensalão,
acoplada aos resultados até agora exibidos pela Operação Lava Jato,
representa pequena revolução em nossa tradição de impunidade dos
poderosos. Mas o Legislativo e o Executivo, e junto os partidos políticos, estão longe de um funcionamento satisfatório.
Temos um Executivo paralisado por incompetência e arrogância de sua
chefe, um Congresso irresponsável, um partido do governo desmoralizado
pelas denúncias de corrupção e uma oposição oportunista. Não é bom. Estamos ainda longe de uma república democrática sustentável.
Grandes
manifestações do passado contra a ditadura, como a Passeata dos 100 Mil
no Rio ou as Diretas Já, tinham um país inteiro unido contra o governo.
Hoje não há ligação dos protestos com as instituições políticas. Como
resolver isso?
J.M.C.:
As manifestações de junho de 2013 foram sintoma da corrosão da
legitimidade do sistema representativo. É uma ironia, se nos lembrarmos
de que nunca houve tantos brasileiros votando como agora. Passados dois
anos das manifestações de 2013, nada foi feito para responder ao que
pediam as ruas – essa interlocução não avançou além da retórica. Os
partidos mantiveram suas práticas, as eleições continuaram a ser
financiadas por dinheiro suspeito, as campanhas se mantiveram sob o
comando dos marqueteiros. O resultado da última eleição foi
adequadamente considerado estelionato eleitoral, o que lhe tira a
legitimidade, embora não a legalidade. A natureza fragmentada e
antipolítica do movimento de 2013 também não ajudou. O problema da representatividade do sistema político continua a ser uma pedra no caminho.
Além
da crise existencial que abalou o PT, temos hoje uma sociedade
complexa, globalizada, com desafios para os quais a esquerda, de modo
geral, não tem conseguido dar respostas – veja-se a Grécia e a Espanha.
Quanto do enfraquecimento do PT é fruto de erros e abusos de seus
líderes e quanto de uma crise de identidade das esquerdas?
J.M.C.: As esquerdas antigas, categoria em que se enquadra a nossa, sempre foram marcadas pelo estatismo[forte presença e atuação do Estado na economia e sociedade], pela alergia ao mercado e à iniciativa individual.
Entre nós, ela acoplou ao estatismo a tradição clientelista e
patrimonialista. São traços presentes no PT, em convivência com a
preocupação tradicional das esquerdas com a promoção da igualdade
social, mesmo com arranhões à liberdade. No governo Lula, o estatismo
não pôs em risco conquistas importantes da política econômica e
concentrou-se na promoção da política social, não sem, ao mesmo tempo,
patrocinar práticas clientelistas e antirrepublicanas já devidamente
punidas. Creio que a crise do PT tem mais a ver com atraso ideológico, falta de criatividade e mau diagnóstico da realidade brasileira
– sem esquecer, naturalmente, os malfeitos – do que com o exemplo das
esquerdas europeias que, pelo menos, estão tentando renovar-se. A esquerda do PT ainda apoia o bolivarianismo e o castrismo [regime de Cuba]. É patético. Lembra a frase do Millôr (Fernandes, jornalista carioca falecido): as ideologias, quando ficam velhinhas, vêm morar no Brasil.
Como outras vozes, o sr. acha que a melhor saída é a renúncia da presidente e sua substituição pelo vice. Por quê?
J.M.C.: Porque pouparia à nação os traumas de um eventual processo de impeachmente
de uma eventual nova eleição – que, tão próxima da última, se faria em
clima de guerra e dificultaria o governo do vencedor, adiando as medidas
de recuperação da economia. Dos peemedebistas, pode-se dizer tudo,
menos que não sabem fazer política. O vice, como já revelou em ato
falho, poderia costurar um arranjo político que destravasse o governo,
apaziguasse o Congresso, facilitasse a aprovação das medidas econômicas
corretivas e arrastasse o país até 2018. O PSDB não precisaria enfrentar
outra guerra eleitoral e, se vencedor, descascar o abacaxi plantado
pelo governo Dilma. O PT se livraria do imbróglio criado por Dilma,
poderia lamber as feridas em paz e se reinventar, como propôs o próprio
Lula.
E continuaria em cena o presidencialismo de coalizão.
J.M.C.:
Sim, o problema com esta solução é que o presidencialismo valoriza
excessivamente a personalidade dos presidentes, como em 1954, 1961,
1964, 1992. Getúlio reagiu à crise matando-se, Jânio montou a farsa da
renúncia, João Goulart fugiu, Collor tentou uma bravata ridícula. No
parlamentarismo, já teríamos outro primeiro ministro. A recusa da atual
presidente de admitir os erros elementares que cometeu, sua inapetência
para o diálogo, sua fixação na imagem de guerrilheira, nada disso sugere
que possa ter a grandeza cívica de colocar o interesse nacional acima
de sua vaidade. Daí que, realisticamente, pode-se esperar uma saída de
acomodação, de arreglo. O Tribunal de Contas da União já ensaia uma
pedalada legal. O Senado já está pedalando. Só falta o Supremo Tribunal
Federal entrar na dança. Em vez de drama ou tragédia, podemos ter outra
opereta barata.
Como
historiador experimentado, que já viu tantos altos e baixos, pensando
no futuro o sr. está mais para esperançoso ou para desalentado?
J.M.C.:
Guardo algumas lembranças desde a crise de 1954, depois revistas em
parte pelo estudo. Não há como não reconhecer que o País mudou
radicalmente nos últimos 70 anos. Mudou, sobretudo, devido à entrada do
povo na política, pelo voto e pelas ruas. Mas a sensação principal que
guardo, talvez muito influenciada pelo momento atual, é a de ter vivido
um processo de ciclotimia nacional [períodos de excitação, euforia ou hiperatividade, que alternam com outros de depressão, tristeza ou inatividade], de idas e vindas, de avanços e recuos, de esperança e desalento. O País parece ter grande capacidade de se autossabotar.
Parecemos incapazes de um esforço concentrado e persistente em torno de
objetivos comuns que nos poderiam colocar entre os países capazes de
combinar liberdade política e igualdade social. Lembro-me aqui de uma
frase de Euclides da Cunha: “Estamos condenados à civilização: ou progredimos ou desaparecemos”. O risco é que não aconteça nenhuma das duas coisas.
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Fonte: O Estado de S. Paulo – Caderno 2/ Direto da Fonte – Sonia Racy – Segunda-feira, 17 de agosto de 2015 – Pg. C2 – Internet: clique aqui.
Reportagem por Gabriel Manzano
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