‘A ditadura me deixou na prisão por 6 anos e
8 meses contínuos’
Foto: Elena Romanov
Milton Ribeiro
Esta entrevista em duas partes com Roberto Markarian, Reitor da Udelar — Universidad de la República,
Uruguai –, tem sua origem em fatos pessoais. Conheci Markarian em Porto
Alegre, quando estudava engenharia e ele era estudante do Curso de
Matemática da Ufrgs, logo após os sete anos em que esteve preso pela
ditadura uruguaia. Na época, ele era do Partido Comunista.
Não obstante o fato de sermos estudantes da área de exatas da mesma
Universidade e de estarmos, por assim dizer, em trincheiras ideológicas
muito próximas, nossa amizade mantinha-se mais pelo amor ao cinema, à
música e à literatura. Demorou muito para eu saber que meu amigo era um
matemático brilhante que, poucos anos depois, teria destaque mundial em
sua área.
Neste ano de 2015, após quase meia década sem contato, tive de
escrever sobre os 100 anos do genocídio armênio. E, já que Markarian é
filho de armênios que fugiram da perseguição turca — há ainda um
Abrahamian em seu nome — consultei sem maiores objetivos seu nome no
Google, fato que me fez dar de cara com uma série de fotos de meu amigo
com o presidente José Mujica. O que teria acontecido? Do que não me
informaram?
Markarian é um sujeito amável e tranquilo, dono de uma respeitável e
variada erudição. Nela, curiosamente, nunca coube o futebol e ele
reclama que muitas vezes é confundido com o irmão Sergio, famoso
treinador que já comandou, por exemplo, as seleções do Paraguai, Peru e
Grécia. Roberto é chamado por Sergio de “o irmão inteligente”, enquanto
Sergio, no dizer de Roberto, seria “o irmão famoso”.
Markarian tem pelo menos oito livros publicados e dezenas de artigos
que refletem seu trabalho como pesquisador. Até sua eleição como Reitor,
investigava principalmente as propriedades não uniformes dos sistemas
dinâmicos. Com a modéstia habitual, como se fosse algo comum, ele diz
ser difícil alguém estudar o tema sem se referir a seus trabalhos. Para
os leigos, trata-se de movimentos semelhantes aos de bolas movendo-se
numa mesa de bilhar, sem atrito. Tais movimentos acabam por enquadrar-se
em algumas definições de caos e têm aplicações na área tecnológica.
Bilhar? Markarian adverte que esteve apenas duas vezes inclinado
sobre o pano verde. No entanto, conta que recebe rotineiramente
publicidade de fabricantes de mesas de bilhar. Além de propostas para
treinar times de futebol.
Sul21 – Gostaria que tu descrevesses resumidamente tua
atividade política e acadêmica até aquele período em que te conheci, no
início dos anos 80.
Roberto Markarian – Comecei a estudar engenharia
quando tinha 17 anos. Apesar de ir bem nos estudos, vi que a Engenharia
não era minha vocação e fiquei na dúvida entre ir para a Geologia ou
para a Matemática. Então eu visitei os dois institutos e decidi que a
matemática era um bom lugar para mim. Obtive lá uma pequena posição de
horista. E comecei a estudar dedicadamente matemática. Uns 4 ou 5 anos
depois, entre 1968 e 1970, fiz um concurso para entrar como docente. O
concurso era de nível de mestrado. E ganhei a posição mesmo sem ter
qualquer outro título. Era outra época. Por exemplo, o maior matemático
do Uruguai, José Luis Massera, não foi mestre em matemática, ele só
tinha o diploma de engenheiro. Na época do concurso, eu já estava
envolvido com a política. Entrei na escola de engenharia num ano e, no
ano seguinte, era o secretário-geral do Grêmio Estudantil da Engenharia
(CEIA). Era uma turma muito estudiosa, tentamos várias vezes expulsar
professores ruins, mas acabamos renunciando após algumas derrotas…
Sul21 – Tu chegaste a assumir como docente ou não?
Roberto Markarian – Sim, assumi e comecei a dar
aulas. Eu vivia disso. O dinheiro era bastante razoável. Quando veio a
ditadura, em 1973, eu estava completamente envolvido com a atividade
acadêmica e política, integrando a direção da juventude comunista.
Também ocupava um cargo na Federação dos Estudantes (FEUU) e tinha sido
membro do comitê de mobilização no agitado ano de 68. Acabei preso em 76
por minhas atividades no âmbito político. Fui processado e estive na
prisão por 6 anos e 8 meses contínuos, mas já estivera lá outras vezes,
entre 69 e 73, por um total de 4 meses.
Sul21 – Tu achas que a participação e a atuação política dos
estudantes colaboram com a modernização educacional? Porque no Brasil,
existe a política estudantil, a Universidade e há os professores, que
costumam ficar alheios.
Roberto Markarian – Aqui no Uruguai, a influência do
movimento estudantil foi e continua sendo muito forte. Por exemplo: a
lei orgânica que regula o sistema universitário público, não existiria
se não fosse pelo movimento estudantil. As formas educacionais são
elaboradas pelos docentes, mas muitas coisas foram promovidas pelo
movimento estudantil e continua sendo assim. Por exemplo, há
uma influência muito forte dos estudantes nas eleições das autoridades
das escolas. O sistema uruguaio é muito aberto, os estudantes têm
influência real no corpo universitário. É difícil que uma autoridade
importante seja eleita com oposição estudantil. No meu caso, na eleição
de Reitor, eles se dividiram, mas tiveram participação ativa. Dos 105
votantes, 30 são estudantes. Eu diria que movimento estudantil tem uma
influência muito grande, mas menor do que a que teve entre os anos 50 e
70. Depois da ditadura e modernamente, todo o sistema de influência
democrática no mundo foi alterado, não só o do Uruguai. Mas os
estudantes são sistematicamente ouvidos sim.
Sul21 – E tua vida depois da prisão?
Roberto Markarian – Depois de sair da prisão, decidi
ficar no Uruguai por problemas familiares. Muita gente que saía da
prisão saía do país também. Não foi o meu caso. Ficamos, eu, minha
mulher na época e minha filha morando aqui e eu decidi que deveria
continuar sendo matemático. Claro que perdi meu cargo em 1976, mas o
recuperei em 85, quando voltou a democracia. Voltei ao mesmo cargo e ao
mesmo nível que tinha na época anterior, quase dez anos antes. Então,
meu amigo Marco Sebastiani e a professora Gelsa Knijnik me convidaram a
ir para a Ufrgs. Eu fiz vestibular como se fosse um iniciante, consegui
depois equivalência de algumas cadeiras. Eu tinha dificuldades para
conseguir a equivalência porque estávamos ainda na ditadura. Os
documentos me fugiam. Eu ficava viajando entre Montevidéu e Porto
Alegre, dava e recebia aulas. Fazia provas e mais provas. A cada viagem,
tinha que pedir autorização à polícia. Eu dizia sempre que ia visitar
Marco Sebastiani e me autorizavam. No início, ficava na casa dele,
depois na casa de outro grande amigo, Alejandro Borche Casalas. Nem
tinha terminado o bacharelado e, simultaneamente, comecei a trabalhar na
tese de mestrado. Em pouco tempo, dois anos, finalizei a graduação e o
mestrado, tudo na Ufrgs. Então o pessoal do Impa, do Rio de Janeiro,
ficou sabendo que tinha aparecido um cara com um trabalho grande de
mestrado e com resultados interessantes — na verdade, meu trabalho foi
publicado por uma importante revista — e me convidaram para ser aluno do
Impa. E comecei a estudar lá no ano de 88. Doutorei-me em 1990. Foi
tudo muito rápido. Entre 85 e 90, eu recebi três títulos: de bacharel,
mestre e doutor.
Sul21 – Sempre indo e vindo, entre Brasil e Uruguai.
Roberto Markarian – Sim, fiz o mesmo sistema de ir e
voltar. No Rio de Janeiro, morei menos de dois anos, foi o período que
eu fiz cursos e a tese de doutorado.
Sul21 – Tu és um matemático muito respeitado. Quais são teus principais trabalhos?
Roberto Markarian – A disciplina a que mais me
dediquei chama-se Dinâmica Caótica. É o estudo matemático da desordem.
Há modelos simples de sistemas dinâmicos chamados de bilhares caóticos.
Trata-se do estudo matemático dos movimentos desordenados. Nesta área,
eu escrevi um livro, que só posso chamar de importante, com um colega
russo chamado Nikolai Chernov, falecido faz pouco tempo. Trabalhamos a
partir de modelos simples de movimentos desordenados e chegamos a
resultados consistentes. Nosso trabalho foi publicado numa coleção de
monografias da American Mathematical Society. O título é Chaotic Billiards. Publiquei outros livros, em parceria ou não, que serviram como preparação para este principal com Chernov.
Sul21 – Como foi teu contato com Chernov?
Roberto Markarian – Ele trabalhava em Moscou. Os
principais estudos da área, naquele momento, vinham de Moscou. O grupo
principal estava sediado lá com Chernov e seu chefe Yakov Sinai. Eu
propus um pós-doutorado em Moscou, fui aceito, e viajei pouco tempo
depois. Conheci Sinai e passei a trabalhar com Chernov, que estava no
Centro Nuclear de Dubna, que fora criado pouco depois da 2ª Guerra
Mundial por Stalin. Era o local de desenvolvimento de pesquisas
nucleares para todos os países socialistas. A cidade fica a 110 km de
Moscou, às margens do Volga. Chernov trabalhava no Centro Nuclear.
Passei quase um mês morando com ele, fazendo matemática.
Sul21 – Eu imagino que esse teu trabalho com Chernov seja muito citado em trabalhos acadêmicos. Qual é a importância dele?
Roberto Markarian – Qualquer pessoa que queira
estudar os elementos básicos da dinâmica caótica vai usar nosso livro
como uma de suas principais referências. Eu não estava muito convencido
disso, mas ultimamente, já como Reitor, fui a duas ou três grandes
reuniões, uma delas em homenagem a Sinai, que tinha recebido o Nobel de matemática, o Prêmio Abel,
concedido pelo noruegueses no valor de quase 1 milhão de dólares. Sim, é
o maior prêmio para matemáticos. Depois, houve uma reunião de homenagem
a Chernov, que morreu ano passado no Alabama, onde trabalhou no final
de sua carreira. Aí, me convenci que era um livro de referência.
Sul21 – E isso é utilizado em quê?
Roberto Markarian – Além de ser usado nos cursos de pós-graduação de
quem queira estudar o caos, é uma ferramenta teórica que serve à
mecânica quântica e a outras aplicações tecnológicas. Há aproximadamente
30 pessoas no mundo que trabalham nisso no momento e eu fazia parte
dessa turma.
Sul21 — Fazia?
Roberto Markarian — Porque agora, como Reitor, é muito complicado seguir produzindo.
Sul21 – O cargo de Reitor é muito importante no Uruguai. Até o presidente Mujica veio te saudar quando foste eleito.
Roberto Markarian – Sim, quando eu tomei posse no
cargo, Mujica apareceu aqui. Afinal, era o Presidente da República e a
posição de Reitor em nosso pequeno país é importante. Tabaré Vázquez
também já veio nos visitar. A relação da Reitoria com o sistema
político é muito grande e Mujica apareceu logo após a eleição, fez um
discurso elogioso. Usou um provérbio que me parece ser utilizado no
Quixote, Genio y figura hasta la sepultura, que significa que as características de algumas pessoas duram toda a vida, que não são fáceis de mudar.
Sul21 – Tua neta diz que és a terceira pessoa mais importante do país….
Roberto Markarian – (risadas) A Udelar é
uma grande Universidade pública e de livre acesso em um país pequeno.
Não há vestibular, quem desejar entrar, entra. Temos 100.000 estudantes e
10.000 professores. Do ponto de vista numérico ela é maior do que a
Ufrgs. No Uruguai há uma outra Universidade, a Utec, com menos de 1000
estudantes. Ou seja, praticamente só existe a Udelar. Dos 10.000
professores, temos alguns que cumprem uma hora de obrigação semanal de
trabalho e outros com dedicação exclusiva. O número de docentes com
dedicação exclusiva são aproximadamente 1000.
Sul21 – Há estabilidade para os professores?
Roberto Markarian – Não, todas as posições docentes
na Universidade são ocupadas inicialmente por dois anos e, depois, há as
chamadas reeleições a cada cinco anos. Eu, por exemplo, mesmo depois
que ganhei posições mais altas, tive que continuar comprovando
merecimento para permanecer naquela posição. Cada professor tem que
apresentar um informativo do que produziu, dos planos que tem para o
período seguinte. Os Conselhos decidem se cada professor vai continuar
ou não. A cada cinco anos, há possibilidade de você não ser eleito. A
cada cinco anos, sua cabeça é colocada a prêmio. Não temos maiores
proteções.
Sul21 – Em que casos acontecem as demissões?
Roberto Markarian – Se o professor não faz
pesquisas, se ele não produz nenhum trabalho original ou criativo. Falo
em criativo porque, se você é um artista deve produzir arte — ou
projetos artísticos ou de pesquisas sobre arte — , se você é engenheiro
tem que fazer projetos, patentes ou coisas referentes a alguma pesquisa.
Se você é um professor muito ruim também pode não ser reconduzido, pois
os estudantes podem te “jogar fora”, o que já aconteceu. Eu diria que,
em geral, o sistema é muito bom. Não se pode dar nunca lugar à
arbitrariedade. Claro que membros do Conselho podem detestar certos
professores, mas normalmente prevalecem os critérios objetivos. A
capacidade de autocrítica, de aplicar bem os critérios, está funcionando
adequadamente. Houve um período em que algumas pessoas saíram por
razões subjetivas ou políticas, mas isto não ocorre mais.
Sul21 – E como são os salários desses professores?
Roberto Markarian – O salário do professor melhorou
nos últimos dez anos, especialmente no primeiro período do governo da
Frente Ampla. Porém, se comparados com os salários da região, continuam
baixos. É muito difícil comparar nossa remuneração com a dos professores
brasileiros, porque o custo de vida está sempre se alterando, as moedas
se desvalorizam, etc. Eu diria que, no início da carreira, os docentes
daqui ganham menos que seus colegas brasileiros. Se você chega a um
nível mais alto na carreira, os valores são semelhantes aos normalmente
pagos pelas Universidades federais brasileiras, só que sem os extras que
os professores brasileiros ganham. Não temos isso aqui. Ou seja, se
você comparar, o salário básico é parecido, mas se você comparar o
salário total, os salários dos brasileiros são melhores.
Sul21 – O Uruguai é atrativo para um jovem doutor ou há muita
fuga de cérebros? É bom para um jovem doutor permanecer aqui, ter uma
carreira ou é melhor ir embora?
Roberto Markarian – Depende muito da área. Temos
áreas onde a capacidade de absorção dos jovens doutores pelo sistema
acadêmico é muito grande. Praticamente não há fugas de matemáticos, por
exemplo. Em outras áreas, como as engenharias, existe uma saída maior,
não obstante o fato de que há mercado de trabalho para todos engenheiros
uruguaios dentro do país. Mas mesmo assim existe a fuga. De um modo
geral, a fuga foi diminuindo. Sendo mais específico, há 4 ou 5 anos a
situação era melhor e agora tem aumentado novamente. Há um fato dentro
da Udelar que tem evitado a fuga do pessoal acadêmico: é que a
Universidade, com o apoio do governo, cresceu no interior. Com isso,
foram criadas muitas novas posições.
Sul21 — Como está sendo feita tal expansão?
Roberto Markarian — A Udelar expandiu-se muito pelo
país e agora temos que concentrar esforços em manter a qualidade do
trabalho em todos os lugares. Não pode haver uma Universidade do
interior e outra de Montevidéu. Ambas — ou todas as unidades — têm que
ser de mesma qualidade. Isso não é fácil, os recursos humanos no
interior são diferentes dos de Montevidéu. O Uruguai é subdividido em 19
departamentos e todos nós sabemos que é um exagero. A Udelar tenta
promover uma estrutura administrativa mais racional e eficaz. É um
problema.
Sul21 – E a tua vida como Reitor, quais são os outros desafios?
Roberto Markarian – Olha, minha principal obrigação
como Reitor é assinar todos os títulos que a Universidade dá… É um
trabalho maluco. Hoje já assinei mais de cem certificados e títulos. (risadas) Qualquer categoria de título tem que ser assinada pelo Reitor da Universidade. A lei é esta. (Ele pega um certificado) Veja só, aqui temos uma nova contadora pública, que se chama Griselda. Seu documento tem que ser assinado pelo Reitor. (Markarian assina) Aqui temos uma licenciada em economia, a Maria Catalina, que também vai ter o título legalizado por mim. (Markarian assina)
Só Bach e Beethoven me ajudam nestas leituras e assinaturas! Mas vamos à
pergunta. Neste momento, estamos às voltas com a questão orçamentária.
Ontem, o Conselho Universitário aprovou o período para os próximos cinco
anos. Essa não é uma responsabilidade exclusiva do Reitor. O Reitor
preside de um Conselho de 25 pessoas, que funciona a cada duas semanas.
Então, a decisão é coletiva. Os planos de estudos de todas as carreiras
dependem de questões orçamentárias que temos que discutir com o governo
nacional, porque somos praticamente financiados por ele. Cerca de 80% do
orçamento da Universidade é financiado pelo governo. Apenas 20% vêm de
recursos de contratos e convênios com organismos estatais e privados.
Sul21 — E quanto vocês pediram para o próximo quinquênio?
Roberto Markarian — O Conselho aprovou um pedido de
aumento de 90% em valores nominais. Agora aguardamos a resposta
governamental. Temos que preencher algumas lacunas que ficaram em aberto
a partir do orçamento anterior. A proposta é de que se eleve o
investimento na educação para 6% do PIB.
(Continua na próxima semana).
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Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/entrevista-com-roberto-markarian-reitor-da-universidad-de-la-republica-do-uruguai/
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