Em 33 anos de viagens
a países socialistas, Frei Betto intermediou relações entre os políticos e as
religiões - Divulgação
Escritor
e teólogo relembra 33 anos de diálogos com líderes políticos e busca novo olhar
sobre o cristianismo
RIO
— Buscar conexões entre o cristianismo e o marxismo é uma constante na
trajetória de Frei Betto. Há décadas, o teólogo e escritor mineiro viaja pelos
países socialistas intermediando as tensas relações entre Estado e religiões.
Espécie de diário de viagem, “Paraíso perdido — viagens ao mundo socialista”
(Rocco) descreve os bastidores desse longo trabalho, em que Frei Betto dialogou
com líderes católicos e políticos, como Ernesto Cardenal, Fidel Castro ou Lech
Walesa. Publicado pela primeira vez em 1993, o livro volta agora às livrarias
em uma edição revisada e ampliada, que abarca 33 anos de reflexão sobre os
desafios e as contradições do socialismo. O lançamento no Rio está previsto
para a próxima segunda-feira, às 18h, no Esch Café Leblon (Rua Dias Ferreira,
78). No mesmo evento, será lançado outro livro inédito de Frei Betto, “Um Deus
muito humano” (Fontanar), que propõe um novo olhar sobre Jesus.
—
Ao longo de meu trabalho em países socialistas, descrito em “Paraíso
perdido", sofri a dupla desconfiança: católicos que me julgavam agente do
Partido Comunista, e comunistas que me viam como agente do imperialismo
vaticano... — lembra Betto, em entrevista por e-mail. — Felizmente bispos e
dirigentes políticos, meus anfitriões, me demonstraram confiança. O diálogo é
sempre a melhor ponte para comprovar que diferenças não são necessariamente
divergências, e entre pessoas de convicções distintas pode haver convergências.
A
jornada se inicia com uma conversa com Ernesto Cardenal, em 1979, quando o
poeta e (então) revolucionário sandinista se escondia na Costa Rica. Nos trinta
anos seguintes, Betto percorreu países socialistas como Cuba, China,
Tchecoslováquia, Lituânia e Polônia. Após a queda do muro de Berlim, em 1989, o
autor restringiu-se a Cuba, país no qual encontrou ótimo diálogo com as
lideranças locais, especialmente com seu amigo Fidel Castro.
—
Hoje, em Cuba, são excelentes as relações entre Igrejas e religiões em geral e
a Revolução — avalia o autor, lembrando que sua entrevista com Fidel em 1985,
publicada no livro “Fidel e a religião” (a ser relançado pela Companhia das
Letras, com introdução atualizadora), teve papel importante para “erradicar o
medo dos cristãos e o preconceito dos comunistas”.
Para o escritor,
recuperar as viagens pelas entranhas da esquerda é uma maneira de compreender
os impasses de hoje. O marxismo, diz ele, é um método de análise da realidade,
“mais do que nunca útil para se compreender a atual crise do capitalismo”.
—
Revisitar o socialismo é importante para encontrarmos uma saída ao capitalismo
que só agrava a desigualdade mundial, como analisa (o economista francês
Thomas) Piketty — afirma.
O
livro, porém, também faz um balanço dos erros da esquerda no período.
O
socialismo cometeu o erro de, ao socializar os bens materiais, privatizar os
bens simbólicos. Todos tinham acesso a uma vida digna, mas só a cúpula
dirigente desfrutava o direito de sonhar com “outros mundos possíveis”. E um
valor profundamente enraizado na subjetividade humana, a religião, foi
descartado, condenado e humilhado. O capitalismo faz o contrário: privatiza os
bens materiais e socializa os simbólicos. Todos têm direito de sonhar em voz
alta, mas não de alcançar o mínimo necessário à vida digna.
Ao
retratar o colapso soviético, Frei Betto reflete sobre o abismo que se formou
entre os entusiastas da Teologia da Libertação, que “falavam como
revolucionários”, e os marxistas que tentavam se adaptar a uma nova linguagem,
mais “digerível por aqueles que detinham a hegemonia do neoliberalismo”. Neste
sentido, qual seria o lugar da Teologia da Libertação depois que o capitalismo
passou a dominar o mundo?
—
A esquerda acadêmica, teórica, sem vínculos com os movimentos populares,
desapareceu após a queda do muro de Berlim — responde. — Restaram os que mantêm
contatos com os mais pobres, como é o caso dos adeptos da Teologia da
Libertação, e militantes de outros movimentos, como o indígena. Mas assim como
a fé não pode pretender transformar-se em ideologia, a ideologia não deve ser
encarada como religião. Essa distinção ajuda, hoje, a evitar, ao menos entre
católicos e comunistas, a confessionalização da política, como querer
submetê-la aos preceitos da Igreja ou ao caráter ateu do partido. Infelizmente
os partidos comunistas tardiamente se deram conta de que Estado e partido devem
ser laicos, como hoje ocorre em Cuba.
Com
a esquerda cooptada pelo liberalismo, diz Frei Betto, estaria cada vez mais
difícil encontrar líderes políticos que busquem novos caminhos:
—
Como previu Robert Michels em 1911, a esquerda no poder se deixou seduzir e
trocou princípios por interesses. Hoje, no bojo da crise europeia, onde está a
está a alternativa de esquerda? O “socialista” Hollande? E no Brasil, a
política econômica do PT monitorada por Joaquim Levy?
O
escritor vem acompanhando de perto a recente aproximação de Cuba com os Estados
Unidos, que ele descreve como “o choque entre o tsunami consumista e a
austeridade comunista”.
—
Espero que Cuba não se transforme em uma mini-China, nem que seu futuro seja o
presente de Honduras ou da Guatemala...
Já
com “Um Deus muito humano”, que também será lançado segunda-feira, Frei Betto
chega ao seu 60º título, sem contar as coautorias. Uma produção maciça que
requer disciplina: o autor reserva 120 dias do ano só para escrever. São dias
sagrados, nos quais se isola, desliga o celular e mergulha nos textos. No novo
livro inédito, ele busca entender as diferenças entre o Jesus da fé e o Jesus
da História — questão já trabalhada em “Um homem chamado Jesus” (Rocco), onde
descreve os quatro evangelhos em forma de romance.
—
Todo ponto de vista é a partir de um ponto. O Jesus dos cristãos
fundamentalistas e homofóbicos não é o meu — explica. — O desafio não é ter fé
em Jesus, é ter a fé de Jesus.
Para
o profeta, diz ele, o amor não seria apenas um sentimento, mas sobretudo um ato
de veracidade e justiça.
— Exemplos são o bom samaritano,
que mudou a sua rota em função do homem caído na estrada, e o pai do filho
pródigo, que acolhe o filho antes deste se desculpar. E o papa Francisco, na
encíclica “Louvado Sejas”. enfatiza a dimensão social e política do amor.
Reportagem por Bolívar
Torres
Fonte: Jornal O globo online
- 01/08/2015
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