André Ramos Tavares*
Alguma ligação entre religião e poder estatal pode ser salutar, argumenta André Ramos Tavares
[RESUMO] Professor de direito da USP argumenta que Estado laico não significa aversão à religião e que alguma ligação entre essas entidades pode ser salutar.
Como salvar a sociedade brasileira?
A provocação pode ensejar colocações de matizes variados, sendo as mais
evocativas as de cunho religioso. A busca pela “salvação”, apesar dessa
inevitável fisionomia religiosa, também é capaz de gerar propostas
econômicas, jurídicas, tecnológicas e mesmo ações políticas
determinadas, como uma “caça aos corruptos”.
Nesse contexto, não posso deixar de me referir, preliminarmente, a um segmento da literatura jurídica que fala da “fidelidade constitucional”. Ela pode ser melhor visualizada, simbolicamente falando, no juramento de cumprir e defender a Constituição, exigido do presidente e vice-presidente, ao tomarem posse (art. 78 da Constituição de 1988), e também na obrigação do poder público, em todos os níveis, de zelar pela sua guarda, além da imanente atribuição conferida ao STF de guardião constitucional (art. 102, caput).
Essa tese da fidelidade constitucional, embora pouco difundida, não chega a ser questionada ou controversa. Como lembra o americano Jack Balkin, “para um juiz, dizer que a fidelidade à Constituição não é importante é escandaloso (...); para um político (...), é traição (...); para um professor de direito (...), é admitir que ele não está mais fazendo direito constitucional”.
Nesse contexto, não posso deixar de me referir, preliminarmente, a um segmento da literatura jurídica que fala da “fidelidade constitucional”. Ela pode ser melhor visualizada, simbolicamente falando, no juramento de cumprir e defender a Constituição, exigido do presidente e vice-presidente, ao tomarem posse (art. 78 da Constituição de 1988), e também na obrigação do poder público, em todos os níveis, de zelar pela sua guarda, além da imanente atribuição conferida ao STF de guardião constitucional (art. 102, caput).
Essa tese da fidelidade constitucional, embora pouco difundida, não chega a ser questionada ou controversa. Como lembra o americano Jack Balkin, “para um juiz, dizer que a fidelidade à Constituição não é importante é escandaloso (...); para um político (...), é traição (...); para um professor de direito (...), é admitir que ele não está mais fazendo direito constitucional”.
Mas há algo além, uma espécie de fé implícita no constitucionalismo, que pode ser sintetizada da seguinte forma: a Constituição é melhor do que aquilo que teríamos se nós a abandonássemos, na advertência precisa do professor William Michael Treanor.
De fato, é consenso que, em em uma sociedade constitucional, questões
envolvendo o Estado e suas autoridades sejam delimitadas pela aplicação
dos comandos constitucionais. Podemos chamar isso de fidelidade
constitucional ou de qualquer outro nome.
Com a religião e a fé propriamente ditas, o encaminhamento é o mesmo.
Um conjunto robusto de normas, incluindo direitos fundamentais,
disciplinou o assunto em seus principais elementos, o que bem retrata a
relevância do tema religioso para a sociedade brasileira.
Para falar de Estado laico no Brasil, tema central da relação
direito-fé, parece oportuno retomar os dados do IBGE, no censo
demográfico de 2010. Somos, sem dúvida, uma nação cristã no sentido da
opção religiosa de nosso povo, mas não no sentido jurídico de Estado. Em
termos religiosos, quem mais cresce no Brasil são os evangélicos. No
entanto, permanecemos a maior nação católica do mundo (64,6% da
população).
Há razões históricas para isso, como nossa primeira Constituição, de
1824, que configurou o Estado brasileiro como confessional, não obstante
permitisse o culto das demais religiões. Se é verdade que a
Constituição de 1891 rompeu com esse Estado religioso, o processo em
muito se ateve ao âmbito formal e pouco alterou o cotidiano e a própria
vida institucional do país. Vale sempre a perspectiva de que o direito é
um fenômeno cultural.
Daí o tratamento especial a algumas religiões com lastro no interesse
público e, sobretudo, na proteção constitucional da cultura e do
patrimônio histórico nacional, previsto no artigo 215 da Constituição de
1988. Emerge aí, desde logo, uma certa condição ambivalente, como
manifestação cultural e religiosa, reconhecida, por exemplo, no Decreto
da Santa Sé, de 2010.
Se o Estado é laico no Brasil, seria isso, rigorosamente falando,
legítimo? Uma primeira advertência é que não se pode tomar o termo laico
como portador de um sentido unívoco. Ele pode variar fortemente, de
país para país, a partir das experiências culturais, dos percursos
históricos e da normatividade em vigor.
Assim é que se compreende a razão de uma França repressiva quando o
assunto é manifestação religiosa, e de uma Itália amigável no mesmo
tema. Isso dito, fica evidente que modelos estrangeiros não podem servir
como paradigmas autoaplicáveis, imediatamente mimetizáveis pelo Estado
brasileiro.
De maneira propedêutica, posso afirmar que Estado laico pressupõe
postura estatal de neutralidade religiosa. Isso é básico. O conceito de
neutralidade, contudo, não propugna por um Estado ateu ou
contrarreligioso, como tenho advertido há algum tempo. Pelo contrário,
não se quer, com neutralidade, um Estado alheio ao fenômeno religioso.
Vejamos, então, o sentido constitucional do Estado laico no Brasil.
O caráter secular tem como norma basilar de sustentação o artigo 19,
inciso I, da Constituição de 1988, que veda “estabelecer cultos
religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento
ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou
aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse
público”.
Dada a predominância proibitiva da semântica constitucional que
norteia a relação Estado-religião, poderíamos ser tentados a equiparar,
no Brasil, Estado laico e laicismo, sendo esta última uma postura de
aversão religiosa, de intolerância. Se o propósito da Constituição e dos
constituintes fosse o de uma segregação plena entre as instituições,
então o teriam feito expressamente, ou, ao menos, não teriam admitido
textualmente a ressalva da colaboração, seguindo a Carta do Estado Novo.
É inquestionável que a dinâmica estabelecida pela Constituição do
Brasil não é hostil ao contato e à correlação entre ambos. Pelo
contrário. Determina-se, em diversos pontos e momentos, uma necessária e
salutar imbricação mútua, sempre com o objetivo de privilegiar o
interesse público. E do Estado se esperam ações positivas, como as de
afastar barreiras que possam impedir ou dificultar determinadas opções
em matéria de fé, como destacou o ministro Gilmar Mendes, do STF, em julgamento de 2009.
Há, sim, uma distinção necessária e saudável, o que interessa
sobretudo a uma sociedade plural e diversa. É corolário que o discurso
oficial do Estado, e de suas autoridades, não possa assumir uma religião
como se fosse oficial. Apesar disso, a liberdade de expressão
individual precisa ser respeitada.
O enfrentamento deste tema pela discussão do Estado laico, porém, é
insuficiente. Como saber se a autoridade pública pode invocar uma ampla e
intensa liberdade de expressão religiosa? Poderiam um ministro, um
parlamentar, um governador ou mesmo o presidente do país exercer uma
ampla liberdade religiosa, expressando-a por meio do exercício de um
cargo ou mandato público? O assunto deve também ser analisado a partir
dessa perspectiva dos direitos fundamentais e dos deveres
institucionais.
Um dos pressupostos centrais, aqui, é que algumas religiões ostentam
ambição universalista, por serem teorias morais de primeira ordem.
Cristianismo, judaísmo e islamismo acabam por exercer essa pretensão nos
discursos de seus praticantes, na evangelização e no proselitismo
—discurso que almeja converter membros de outras religiões. Isso exige
um cuidado maior, uma tutela mais constante da liberdade de crença,
protegida em nossa Constituição.
Recorro, de início, à Corte Suprema dos EUA, coincidentemente uma
instituição de pretensões universais, com sua autoimagem de berço das
liberdades e única fonte do melhor direito. Essa corte, na decisão
tomada no caso Cantwell v. Connecticut (1940), considerou que o
proselitismo está protegido, inclusive em suas manifestações de ataque
(teórico, verbal) às demais religiões.
Considerou-se que, a longo prazo, essas liberdades são essenciais à
plena cidadania na democracia. A conclusão é plenamente aproveitável,
não pela fonte da qual emana, mas pelas razões adiante. Vejamos.
Hoje, o proselitismo está albergado no seio da liberdade religiosa,
direito constitucional no Brasil, nos termos do artigo 5º: “É inviolável
a liberdade de consciência e de crença”. Ao dizer que também a
Constituição brasileira protege essa ocorrência, isso significa, dentre
outros aspectos, que as religiões têm o direito de serem intolerantes.
Mais do que isso, não se lhes pode impor nem mesmo a indiferença
religiosa. Isso seria negar a própria liberdade de crença e de prática
da fé. Mais ainda, romperia também com a livre construção da
personalidade individual.
A liberdade de expressão religiosa, como se vê, é um tanto diversa da
mera liberdade de expressão. Ela não expressa uma mensagem qualquer ou
comunicação. Se assim fosse, bastaria consagrar a liberdade ampla de
expressão. Bem por isso não se aplicam, por exemplo, as regras do Código
de Defesa do Consumidor às mensagens transcendentais emanadas de uma
religião com cunho universal. Nesse sentido, a liberdade de expressão
religiosa é mais robusta, tem alcance maior e mereceu um tratamento
próprio na Constituição.
Por tudo isso, qualquer ato de censura pelo exercício dessa liberdade
é, no caso brasileiro, muito delicado. A tarefa complexa é identificar
limites por antecipação de condutas. Alguns decerto são velhos
conhecidos do direito. Não está protegido o discurso de ódio ou
discriminatório, nem se protege o discurso que leve à quebra da paz ou
da ordem pública. Não se poderia praticar uma guerra santa em nome dessa
liberdade constitucional.
É evidente que a compreensão das fronteiras entre direitos e deveres
constitucionais se torna conturbada quando ocorrem interseções ou
choques, como coloquei no dilema acima, na concomitância do proselitismo
religioso com o exercício estrito de cargos públicos ou mandatos
populares, nos quais é forte o influxo de deveres e normas limitativas
em geral.
Cito mais uma vez a Corte Suprema dos EUA, para divergir. No caso
Rosenberger v. Universidade da Virgínia (1995), a corte entendeu que é
proibido ao governo encampar em seu discurso uma dada religião. Mas os
contextos de nossos países são diversos, e os EUA não nos servem de
padrão.
Creio que possa haver justo receio quando ocorrem reiterados
discursos religiosos por indivíduos que exercem também autoridade
pública. Entre nós, ilícitos existirão se os canais de comando estatal
ou a autoridade que deles deriva servirem para propagar privilégios ou
assegurar uma eficácia proselitista.
No entanto, há excesso em identificar, no discurso isolado, no
posicionamento pessoal tornado público, um atentado à Constituição, uma
violação de direitos ou mesmo a violação de nosso acordo constitucional
de neutralidade.
O que mais importa é impedir práticas espúrias, combatendo atos
revestidos de legalidade externa, de legalidade formal e de legalidade
aparente, mas que configuram fraude à Constituição.
Por isso entendo que são relevantes as ações, e menos os discursos
(geralmente segmentados por plateia), como aponta a teoria da fidelidade
constitucional. Muitas ações inconstitucionais, aliás, são adotadas em
um contexto de absoluto silêncio discursivo.
Uma boa chave de leitura, quando o temor é a direção do Estado por
alguma religião, está na obrigação constitucional de promover e
incentivar a ciência, a pesquisa e a capacitação tecnológica da
sociedade. Estão vedados os retrocessos culturais e educacionais.
Em tempos de grandes desafios econômicos postos pelas tecnologias,
por uma quarta Revolução Industrial, a linha de frente de nossas
atenções, discussões e políticas estaria mais bem localizada exatamente
nestes quadrantes, o que atenderia, de maneira inovadora, à
Constituição. Neste tema sim deveríamos empregar algum radicalismo
piedoso, resguardando o futuro próximo de nossa sociedade.
André Ramos Tavares é professor titular da Faculdade de Direito da USP.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/estado-laico-e-neutro-nao-ateu-escreve-professor-de-direito-da-usp.shtml
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/estado-laico-e-neutro-nao-ateu-escreve-professor-de-direito-da-usp.shtml
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