sábado, 23 de fevereiro de 2019

O Horizonte da Derrota: entrevista com Idelber Avelar


Em entrevista, o crítico cultural Idelber Avelar analisa a trajetória que levou Bolsonaro à presidência do Brasil, os erros de Lula e o papel das "fake news" no cenário político brasileiro.


Estado da Arte
22 Fevereiro 2019 


por Pablo Makovsky*

Em 1999, antes de que a Argentina retomasse os julgamentos dos crimes de lesa-humanidade cometidos pela última ditadura civil-militar, e quando Hugo Chávez  começava na Venezuela, o crítico cultural brasileiro Idelber Avelar publicou Alegorias da Derrota, um livro magistral que analisava os processos de representação da memória ditatorial na democracia e postulava que as ditaduras que se propagaram na América Latina durante os anos 1960 foram condicionantes das atuais democracias, que por sua vez não questionaram o ordenamento imposto a sangue e fogo e se apresentavam como mero arremedo do antigo desejo de democracia radical. 
Claro que resumir tal livro dessa forma não lhe faz justiça, pois Avelar explorava as diversas facetas de todo esse processo através das representações presentes na literatura. Somente as páginas dedicadas ao boom latino-americano dos anos 60, a reviravolta naturalista da literatura de testemunho e a discussão em torno do realismo mereceriam artigos exclusivos sobre conceitos ainda vigentes e vigorosos. O que Alegorias da Derrota (cujo subtítulo é A Ficção Pós-Ditatorial e o Trabalho do Luto) delineia é essa passagem do Estado para o mercado, como será exemplificado nesta conversa de maneira sintética: a percepção de que a democracia liberal é a continuação do processo que começou com as ditaduras de início dos anos 70 na América Latina, em uma análise que manteve sua relevância: “a memória do mercado – ele escreve – pretende pensar o passado em uma operação de substituição sem restos. Ou seja, ela concebe o passado como um tempo vazio e homogêneo e o presente como mera transição. A relação da memória do mercado com seu objeto tenderia a ser, então, simbólico-totalizante”. 

Recém chegado do Brasil a Nova Orleans, cidade na qual é professor da Universidade Tulane, Avelar disseca nesta entrevista o processo que levou Jair Bolsonaro ao poder em seu país. Dimensiona o erro trágico de Lula ao alentar a candidatura de Jair Bolsonaro na crença de que seu candidato, Fernando Haddad, o derrotaria. Também traça uma linha de continuidade entre a campanha de Fake News das eleições deste ano com as de 2014, que levaram Dilma Rousseff à presidência através da demonização de Marina Silva; sustenta que o processo de memória histórica e de julgamentos de responsabilidades sobre a última ditadura argentina fazem que seja muito difícil que um Bolsonaro ascenda no país e conclui que a atual derrota das esquerdas compartilha o mesmo horizonte epocal dos anos 70. 

Sobre o processo de direitização da região, como você consideraria uma atualização do seu livro Alegorias da Derrota?
Imagino que se tivéssemos que atualizar Alegorias da Derrota, primeiramente teríamos que prestar atenção em alguns processos que são especificamente nacionais e que ocorreram nos últimos 20 anos. Creio, porém, que a hipótese básica do livro continua válida: as ditaduras e o chamado processo de redemocratização não só não se opõem entre si, como são parte do mesmo processo através do qual as classes dominantes latino-americanas realizaram o que chamo de transição epocal, a transição de um modo de acumulação fundamentalmente nacional para um cenário onde não há travas substanciais para a inserção do país em um modo de acumulação global. Mas também acredito que algumas diferenças históricas nacionais deveriam ser enfatizadas e trabalhadas mais detalhadamente. Refiro-me, sobretudo, aos processos de elaboração da memória na Argentina e no Brasil, tão diferentes entre si. Acredito que no caso argentino é incorreto falar em amnésia institucional. Trata-se de um país que tem discutido seu destino nas últimas décadas sistematicamente no terreno da memória. Isso fica claro na maneira em que os governos kirchneristas se apropriaram de um discurso sobre a memória e os direitos humanos e converteram-no em política de Estado. Nada remotamente parecido ocorreu no Brasil, onde não julgamos sequer um único ditador ou torturador. Não falo de condenações, de sentenças condenatórias, mas da mera existência de um território jurídico em que a memória de um país possa ser discutida e rearticulada na polis. Esse déficit de memória, essa forma peculiarmente amnésica através da qual se produzem os fatos políticos do Brasil, nos levou a uma encruzilhada cujo emblema foi a eleição de Jair Bolsonaro, que é um personagem político que me parece impensável na Argentina. É bem possível que venha a existir uma direita dura e viável eleitoralmente na Argentina, mas não me parece que o trabalho de negação da memória que viabilizou Bolsonaro seja factível aí. 

Jair Bolsonaro representa, segundo os analistas mais destacados, uma ligação entre o Brasil ditatorial – que muitos, como o filósofo Vladimir Safatle, não consideram relacionado à onda de ajustes neoliberais – e um desmoronamento do discurso do “politicamente correto” que se associou às democracias desde o fim das ditaduras nos anos 80. O que Bolsonaro representa nesse contexto?
Primeiramente, o que mais chama atenção é o quão antineoliberal Bolsonaro foi em seus tempos de Deputado. O histórico de votação de Bolsonaro é notoriamente parecido com o da esquerda desenvolvimentista em matéria econômica. Refiro-me ao fato de que Bolsonaro já votou junto ao PT contra as medidas de desregulamentação econômica, a favor de prerrogativas corporativas do funcionalismo público, a favor das empresas estatais e em defesa de aspectos vários disso que poderíamos chamar patrimonialismo do Estado brasileiro. É um fenômeno notável e me parece que passa despercebido fora do Brasil. Tem-se prestado muita atenção nos aspectos reacionário, homofóbico, racista e quase fascista da candidatura de Bolsonaro, com boas razões, mas ele surge como representante do que chamamos de “baixo clero” no Brasil: os deputados de base que negociam a portas fechadas sua adesão às propostas da maioria que esteja liderando o Congresso naquele momento. A candidatura de Bolsonaro se apresenta como viável somente quando consegue se desvincular desse histórico de votação — que é, insisto, corporativista, pró-funcionalismo público, pró-empresas estatais, desenvolvimentista e pró-Brasil Grande.
O que mais chama atenção é o quão anti-neoliberal Bolsonaro foi em seus tempos de Deputado. O histórico de votação de Bolsonaro é notoriamente parecido com o da esquerda
Para legitimar sua candidatura e rasurar esse histórico de votação, Bolsonaro convida Paulo Guedes, um economista ultra-neoliberal, para deixar palatável sua candidatura ao mercado financeiro. Essa operação teve êxito eleitoral e viabilizou-o, mas ela ficou incompleta. Nas últimas semanas do primeiro turno, era evidente o movimento de setores do mercado na busca de uma candidatura viável que pudesse representar uma alternativa a Bolsonaro e ao lulismo. Durante meses, o mercado buscou uma candidatura que fosse mais confiável. Sua preferência era Geraldo Alckmin, do PSDB, o partido que antagonizou o PT durante 20 anos como polo de centro-direita e que segue sendo forte em São Paulo. No entanto, a candidatura de Alckmin não saía de 5 a 8 por cento das intenções de voto. O mercado teria abraçado com certa confiança a candidatura de Marina Silva, na medida em que ela era progressista em alguns aspectos, mas também muito firme na defesa de pilares macroeconômicos: o câmbio flutuante, o superávit primário e as metas de inflação. Marina se convenceu da importância do tripé econômico e teria sido uma candidatura viável para o mercado se tivesse ganhado musculatura eleitoral. Nenhuma dessas candidaturas decolou, nem mesmo a de Ciro Gomes, que é uma figura um pouco mais problemática para o mercado, porque flerta com premissas nacionalistas, estatizantes ou desenvolvimentistas, mas ainda assim seria uma figura mais confiável que a de Bolsonaro, que acarreta certa instabilidade que o mercado vê com muita desconfiança. 

Todas essas alternativas foram deslegitimadas eleitoralmente e o que presenciamos nas últimas semanas foi um mercado que tentava se convencer a si mesmo de que Bolsonaro havia feito uma conversão sincera ao neoliberalismo, sólida o suficiente para que os agentes do mercado pudessem aceitá-lo. Esse abraço do mercado a Bolsonaro não se dá sem certa desconfiança, precariedade e incerteza, e depende da convocação de Paulo Guedes como “Posto Ipiranga” que tem todas as respostas. É um exemplo notável de candidato que se elege declarando-se ignorante em economia. No período pós-eleitoral já se produziram tensões entre Bolsonaro e Guedes que explicam o porquê de esse abraço do mercado a ele continuar precário, incerto e instável. 

E como Bolsonaro foi eleito?
Nenhuma resposta acerca do que Bolsonaro representa estaria completa sem mencionar a dinâmica particular que permite que o bolsonarismo surja como força política, que é sua relação antagônica com o lulismo. Não se pode enfatizar isso suficientemente e é importante que isso seja compreendido fora do Brasil. Ainda a poucos dias antes do primeiro turno estava claríssimo que a única possibilidade de Bolsonaro ganhar o pleito era contra o lulismo. Bolsonaro sempre soube disso, pelo menos sempre apostou nisso, e se apresentou como o anti-Lula. Bolsonaro flerta com militarismo, homofobia, machismo e racismo, mas a âncora que o manteve firme foi o antipetismo, mais até que o antilulismo. O antipetismo foi a condição necessária para essa candidatura. E Lula também sempre soube disso e por isso optou claramente por não atacá-lo, por legitimá-lo, por escolhê-lo como adversário ideal para o segundo turno. O erro de calculo de Lula foi imaginar que a rejeição a Bolsonaro seria tão avassaladora que levaria à vitória de seu candidato. Isso se provou um erro trágico, irresponsável e previsível para todos os que acompanhavam com atenção o fenômeno do anti-petismo. 

Acredito que continue sendo correto dizer que qualquer uma das outras candidaturas–Marina, Ciro, Alckmin–poderia ter derrotado Bolsonaro no segundo turno com certa facilidade, mas a luta pela hegemonia dentro da esquerda, o que poderíamos chamar o hegemonismo petista, impôs um cálculo absolutamente kamikaze, suicida de Lula, que nos levou a uma eleição estranhíssima, na qual os dois principais candidatos eram também os de maior rejeição. Tivemos, então, um segundo turno com os dois candidatos mais odiados. Fernando Haddad não era pessoalmente odiado, mas passou a sê-lo na medida em que se apresentou como candidato de Lula. Essa dinâmica alçou Bolsonaro a uma condição à qual o movimento que ele representa jamais teria chegado sozinho. O petismo tem na sociedade brasileira uma característica particular: é uma força política que leva consigo seguramente uns 25% do eleitorado a qualquer movimento seu, mas também provoca o antagonismo de quase 50%. Chegou, portanto, a um ponto em que é inviável eleitoralmente para o executivo nacional, mas forte o suficiente para arrastar ao precipício qualquer alternativa a ele. Em 2018, ele optou por fazê-lo, e o resultado disso se chama Jair Bolsonaro. 

Alegorias da Derrota já discute esse eterno presente–sua edição inglesa foi intitulada Untimely Present— de uma literatura que, ancorada no boom dos anos 60-70, se constroi a partir da nostalgia. Se você chamou de derrota essa época que culminou com as ditaduras na América Latina, como se refere a esta época de retorno do conservadorismo na região? Que autores já perceberam esta nova derrota?
O título em inglês é uma historia divertida. Mais que de presente eterno, imagino que poderíamos falar de presente intempestivo. Untimely é a palavra que utilizamos em inglês para o que acontece a destempo, fora de seu tempo. Uma das razões por que não utilizei a palavra intempestivo no castelhano e no português é por ela soar demasiado acadêmica, enquanto que em inglês untimely é uma palavra comum e corrente, ao mesmo tempo em que é também a tradução utilizada para o conceito nietszcheano de Das Unzeitgemässe, que vertemos ao castelhano e português como intempestivo ou extemporâneo. O unzeitgemässe nietszchiano seria tudo que está em desacordo com o presente, que está em desacordo com o tempo, mas que também atua sobre sobre esse  tempo, apontando para aquilo que esse tempo constitutivamente teria esquecido, reprimido e silenciado. Então o untimely seria, antes de mais nada, um destempo e um contratempo, mais que uma espécie de dimensão atemporal ou transtemporal que poderíamos igualar à eternidade. Nesse sentido, essa nova etapa histórica é um outro momento da derrota epocal que descrevo no livro. A derrota ali não se limitava a um acontecimento histórico particular ou a um período histórico determinado. Ela era uma espécie de horizonte epocal das sociedades latino-americanas pós-Salvador Allende, pós-11 de setembro de 1973 ou, para dizer de outra maneira, pós-sonhos letrados do boom. Em seu caráter de horizonte epocal, mais que de um período histórico fixo e determinado, a derrota continua se manifestando entre nós; suas dinâmicas me parecem ser, em grande medida, atualizações das dinâmicas descritas no livro. Acerca dos autores que melhor vislumbraram esse novo momento, mais que na literatura experimental ou vanguardista, eu veria em autores como Cristóvão Tezza uma compreensão muito aguda dos antagonismos dos últimos 20 anos. Na Argentina penso em ficcionistas como Martín Kohan e, em uma geração um pouco posterior, em Hernán Ronsino. Trata-se de autores que de alguma maneira têm atualizado a percepção desse horizonte epocal que é a derrota. Em todo caso, eu não diria que se trata de uma nova derrota, me parece que é uma atualização da mesma derrota, ou um novo momento do mesmo horizonte epocal que estava descrito no livro como derrota. 

Em recentes especulações jornalísticas sobre Bolsonaro, surge o argumento de que a ditadura brasileira não foi de todo neoliberal e que os militares poderiam ser uma espécie de barreira que bloqueasse o abraço de Bolsonaro ao neoliberalismo. Você, que analisou o discurso com que Fernando Henrique Cardoso saudou a democracia, enxerga esse cenário como possível?
Imagino que não seria errado dizer que a ditadura brasileira não foi neoliberal. Se você dá uma olhada na construção dos gigantescos aparatos estatais de cultura, do turismo, do cinema, do planejamento regional, enfim, a ditadura brasileira possui uma dimensão que poderíamos chamar de nacional-empreendedorista que, obviamente, as ditaduras argentina e chilena não tiveram. Mas tampouco me parece errado dizer que a ditadura brasileira, assim como a argentina e a chilena, abriu caminho para a inserção do Brasil em uma ordem capitalista global, através da eliminação de toda a resistência a esse projeto. Acredito que se podem afirmar as duas coisas simultaneamente. A ditadura brasileira não tinha um projeto neoliberal, mas eliminou do corpo social aquelas forças que poderiam se opor a ele. Acredito que são distinções importantes, pois o termo neoliberal nos últimos 20 anos tem se derivado para alguns usos que não estavam muito claros no momento em que escrevi Alegorias da Derrota, mas que neste momento haveria de apontar. Em boa parte dos discursos da esquerda, o termo passou a ser um simples sinônimo de feio, chato e bobo. É um conceito a se usar com cuidado e auto-consciência. 

Portanto, sim, no caso da ditadura brasileira, deve-se sublinhar esse aspecto nacional-empreendedorista, estatizante em muitos casos e que compartilha com a esquerda lulo-dilmista um imaginário fortemente desenvolvimentista, que acredita que o Estado pode ser sempre uma força desencadeadora do crescimento. Isso é o que o período Geisel, dos anos 1970, e o período Dilma, dos anos 2010, têm em comum: a nova matriz econômica que surge com Dilma em 2012 é muito parecida com o projeto desenvolvimentista de Ernesto Geisel. Então, a entrada do Brasil na ordem capitalista global nas últimas décadas combina esses dois movimentos, um movimento estritamente neoliberal de eliminação dos direitos trabalhistas, privatização, desregulamentação dos mecanismos de travas ao mercado financeiro, enfim, uma série de medidas que seriam neoliberais, com outras medidas que poderíamos chamar de nacional-desenvolvimentistas e que continuam dominantes na esquerda brasileira, tão dominantes que em sua maioria a esquerda brasileira sequer começou a refletir sobre as possíveis responsabilidades do nacional-desenvolvimentismo de esquerda na instalação de uma ordem dominada e hegemonizada pela direita, que é a ordem pós-2018. 

Você poderia falar sobre os vários imaginários que disputam por narrar o Brasil: um carioca, outro mais despojado, como o de Joaõ Gilberto Noll e assim por diante? Como esses imaginários deságuam em Bolsonaro?
Uso aqui imaginário no sentido mais pedestre de conjunto de imagens. Nesse sentido, poderíamos dizer que estão em disputa diferentes imaginários políticos nas formas de narrar o Brasil nos últimos anos. Uma possibilidade é essa que você apontou na pergunta, imaginários regionais que estão em luta e muitas vezes em processo violento de colonização um sobre o outro. Poderíamos pensar, por exemplo, que existe um imaginário amazônico na cultura brasileira que foi soterrado ou colonizado na ditadura militar, com sua concepção da Amazônia como território a ocupar. A ditadura concebeu a Amazônia como território vazio e colônia energética que, ao ser incorporada à pátria, serviria a um projeto de Brasil Grande. Essa disputa entre imaginários, essa colonização de uns imaginários por outros, é um processo que se desdobra na ascensão de Bolsonaro. Em Bolsonaro se combinam imaginários reativos e não apenas reacionários; eles têm tanto uma dimensão histórica como outra que poderíamos chamar de “comportamental”. Por um lado, como todos os fascismos, o bolsonarismo nos propõe uma era de ouro. Ele já chegou a dizer que seu projeto era retroceder o Brasil em 50 anos, a uma época em que o cidadão de bem podia sair de casa sem temer a violência, em que se cumpria a lei etc. Há então, por um lado, um imaginário reacionário que se combina com, por outro lado, um imaginário reativo. Boa parte dos laços de pertencimento que o bolsonarismo consegue articular no interior da sociedade brasileira se relacionam com reações a processos que poderíamos chamar de emancipatórios e identitários–contraditoriamente emancipatórios por serem identitários—de que foram protagonistas setores das populações negra, LGBT, feminina e indígena. Essa combinação entre um retrocesso histórico e uma reação comportamental explica a penetração e o enraizamento que o bolsonarismo teve na sociedade brasileira. E isso deve ser enfatizado: o bolsonarismo é um fenômeno popular, uma reação enraizada na sociedade brasileira, que mobilizou uma parcela considerável não só da classe média, como também das classes populares. 

Eu li em Franco Berardi uma citação de Marshall McLuhan que dizia que “quando a simultaneidade substitui a sequencialidade—ou seja, quando a enunciação se acelera sem limites–a mente perde a capacidade de discernimento crítico e passamos, a partir dessa condição, a uma neomitologia.” Houve muito dessa “narrativa” chamada fake news nas eleições do Brasil, difundidas pelas redes e pelo WhatsApp. Você acredita que o estado atual das coisas teria suplantado de alguma maneira o pensamento crítico e histórico?
Sem dúvida, a oposição entre pensamento crítico e mitológico é uma vertente possível para pensar as novas formas de discurso público. Eu começaria questionando essa própria distinção, na medida em que as forças sociais que têm recorrido nos últimos anos à noção de pensamento crítico não estão muito atentas, me parece, às dimensões mitológicas do seu próprio pensamento. Se tomamos a eleição de Bolsonaro e o papel das fake news nessa eleição, o que mais chama atenção não é o caráter inovador do fenômeno, mas as linhas de continuidade com o discurso dominante da campanha eleitoral de 2014, a saber, o discurso dilmista sobre como sua coalizão–que incluía Michel Temer, não nos esqueçamos–, era a guardiã da reflexão crítica sobre a desigualdade social brasileira.
Sem dúvida, a oposição entre pensamento crítico e mitológico é uma vertente possível para pensar as novas formas de discurso público
A campanha de 2014 também foi caracterizada pelas fake news, apesar de que não existia o termo fake news na época. O dilmismo impôs, por exemplo, à liderança ambientalista de Marina Silva a imagem de entreguista neoliberal sabotadora da ascensão social dos pobres. Foi um verdadeiro massacre propagandístico liderado por João Santana, o marqueteiro de Dilma. Há semelhança entre o que fez o lulo-dilmismo a Marina–acusada não só de neoliberal, mas também de fundamentalista–e o que Bolsonaro fez ao lulo-dilmismo em 2018, embora o veículo fundamental na campanha de 2014 tenha sido a televisão e, até certo ponto, as redes sociais como o Facebook e o Twitter, e o veículo principal da campanha de Bolsonaro tenha sido o WhatsApp. Então, para retornar ao problema do crítico versus o mitológico, poderíamos dizer que 2018 no Brasil representou o momento de derrota de um discurso fortemente atravessado por mitos não questionados, mas que se apresentava como guardião da reflexão crítica. Esse discurso foi derrotado. Não está derrotado todo o legado lulista, mas foi derrotado um aspecto peculiar desse legado, a forma como o lulo-dilmismo se imaginou a si mesmo como depositário exclusivo de uma concepção crítica de país. O que a situação atual nos exige seria questionar melhor o estabelecimento da fronteira entre essas duas dimensões que você cita, a crítica e a mitológica. 

Na sua obra, você soube descrever como se reformularam nos últimos tempos o papel dos intelectuais. Como definir o papel deles hoje em dia?
No Alegorias da Derrota trabalhei com a premissa de que o horizonte epocal representado por essa transição que, simplificando, era do Estado ao mercado, eliminava a função reitorial dos intelectuais e os instalava em um terreno em que deveriam lutar contra sua transformação em técnicos. A oposição tradicional entre ideólogos e intelectuais era deslocada para uma nova oposição, agora entre técnicos e intelectuais, em um contexto em que a necessidade laboral permanentemente transformava intelectuais em técnicos. Nos últimos 20 anos essa dinâmica se acentuou. Limito minhas considerações à universidade brasileira, onde a notável expansão universitária dos anos Lula se ancora em uma série de fundamentos que intensificam a dimensão puramente técnica do trabalho intelectual. O lulismo expande a universidade brasileira basicamente através de três pilares: o primeiro, que é fundamental para o aumento da população que consegue chegar às universidades, sustenta-se por programas de transferência do erário público para os empresários do ensino privado ou por bolsas a alunos também do ensino privado. O ProUni e o ReUni, responsáveis pela entrada de centenas de milhares, se não milhões de jovens brasileiros ao sistema de ensino superior privado, se baseiam na premissa de que o Estado garantirá, através de bolsas e programas de transferência de renda, o diploma de ensino superior às classes populares brasileiras. Não se pode desprezar o papel simbólico que teve Lula ao impulsionar essas medidas. Nos anos de maior entusiasmo popular com o lulismo, um dos atributos mais fortes de seu discurso era a celebração dessa novidade: “Sou o primeiro de minha família a me formar em uma universidade, o primeiro a receber um diploma de curso superior”. Essa dimensão simbólica teve um impacto tremendo no Brasil, que talvez não seja muito visível na Argentina, um país que foi alfabetizado muito cedo, em que o processo de alfabetização se resolveu muito antes e de maneira mais completa. No Brasil, a força desse discurso de Lula sobre a entrada de uma primeira geração de pobres e negros à universidade teve um peso enorme na legitimação do lulismo. Por outro lado, as circunstâncias econômicas produzidas pelo próprio lulismo convertem esse corpo laboral diplomado em um exército de técnicos de baixa qualificação buscando inserção no mercado. 

Essa é a primeira dimensão: o repasse de fundos públicos a empresários do ensino privado. A segunda dimensão: a expansão dos campi das universidades federais, que é notável durante o lulismo e que explica de certa forma a força que o lulismo exerce dentro da academia brasileira, entre os professores e também entre os alunos. A terceira dimensão são as cotas raciais, um fenômeno que cuja relevância não se pode ignorar no legado universitário lulista. Porém, apesar disso tudo, essa expansão desenfreada do período lulista se chocou com os limites do próprio modelo desenvolvimentista que viu seu colapso definitivo nos anos Dilma e que transformou essa população de recém formados em um espécie de precariado intelectual. Aqui me refiro ao conceito do sociólogo brasileiro Ruy Braga no livro Política do Precariado, no qual ele estuda essa nova classe social, emblemática dos anos Lula e que já foi chamada de batalhadores ou de nova classe C: um exército de reserva do setor de serviços caracterizado por forte precariedade e combinação de trabalho intelectual e trabalho manual de uma maneira que submete qualquer dimensão intelectualmente independente à mera execução técnica. Portanto, ao analisar a atualização do problema intelectuais versus técnicos, creio que poderíamos dizer que não temos uma mudança, um distanciamento do horizonte que descrevi em Alegorias da Derrota, mas uma intensificação e realização completa dessa dinâmica de transformação epocal dos intelectuais em técnicos. 

Em Letter of Violence, você aponta para as figuras de violência do Estado e analisa sua legitimidade, além de sua legalidade (“formas de violência que seriam cúmplices do horror, da acumulação original, da submissão de milhões de seres humanos para o ganho de alguns, por oposição a formas de violência que aspiram a supressão desse horror”). Você pode discorrer sobre como as democracias liberais que sucederam as ditaduras limaram a legitimidade dessa segunda forma de violência enquanto legitimavam a primeira?
Acredito que você está certo quando aponta que as democracias das últimas décadas procederam a legitimar a primeira forma de violência, que poderíamos chamar de violência originária, e a deslegitimar a segunda, que poderíamos chamar de violência revolucionária. De resto, essa distinção é tão precária, que inclusive pessoas como eu, que refletiram sobre ela e não confundimos as duas formas de violência, nos pegamos, durante a campanha eleitoral de 2018, falando em termos quase arendtianos sobre o tema, implorando diretamente às pessoas que tivessem cuidado com qualquer discurso ou atitude que pudesse estimular violência física nas ruas, algo que passou a ser um temor muito real entre nós. Isso me fascina pois, por um lado, é evidente a distinção entre essas formas de violência e também é claríssimo o processo de legitimação da violência fundante da desigualdade e de deslegitimação das formas de insurreição violenta que a aspiram mitigação ou eliminação dessa desigualdade. Por outro lado, há uma dimensão bastante pragmática do problema da violência, que nos obriga em vários momentos a realizar uma escolha visível pela recusa de todas as formas de violência, sem distinção entre elas. 

Em certo sentido, volto a uma distinção que trabalhei em Figuras da Violência e que vem de Walter Benjamin, que é a de violência instauradora da lei e mantenedora da lei. O que Bolsonaro fez com essa distinção é interessante, porque legitima todas as formas de violência que supostamente se ocupam de manter a lei. Qualquer ação de um agente estatal está legitimada de antemão, ainda que seja um assassinato a sangue frio. Ao mesmo tempo, oculta-se por completo o fato de que a violência mantenedora da lei, a policial, atua com frequência fora de toda lei, atua de forma a inventar uma nova lei em cada ação. O emblema disso no Brasil é o que chamamos de “autos de resistência”, que são documentos que legitimam assassinatos cometidos por policiais militares ao pintar  um cenário em que a vítima teria apresentado algum tipo de perigo ao agente estatal, que se viu obrigado a utilizar da força letal. Os autos de resistência são uma legitimação prévia da violência estatal e a lógica que os preside teve papel importante na campanha de Bolsonaro em torno dos chamados “excludentes de ilicitude”, que são nada menos que autorizações prévias para matar, concedidas ao Estado. 

Na Argentina pressupomos que os julgamentos dos crimes de lesa-humanidade retomados em 2006 salvam de alguma forma este país da ascensão de um Bolsonaro. Porém, sem manchar em nada a validade histórica dos julgamentos, eles tampouco vieram a questionar a continuidade da tirania do capital financeiro entre ditadura e democracia, como de algum modo você postula nas Alegorias (assim como outras vozes que apontaram esse aspecto acerca desses julgamentos). Como você analisa esses julgamentos na cultura argentina e na da região?
Creio que é correto pressupor que o processo de julgamento de ditadores e torturadores argentino colocou vocês em uma posição na qual o surgimento de um Jair Bolsonaro é, senão impossível, altamente improvável. Não se pode relativizar isso, não se pode desenfatizar isso, não se pode deixar de ter uma apreciação intensa desse processo de julgamento de torturadores, precisamente porque temos o horizonte comparativo do Brasil como país que não realizou nenhuma dessas tarefas. Isso é algo notável no Brasil não apenas porque não fizemos nada do que foi feito na Argentina, como sequer fizemos o que foi feito no Chile, algo bem mais tímido e limitado no que se refere à responsabilização. No Brasil, conseguimos não fazer nada e temos instalado como dominante, inclusive durante os governos de esquerda, o imaginário econômico da ditadura, o imaginário desenvolvimentista, colonizador da Amazônia e nacional-estatista, nacional-grandioso que teve a ditadura brasileira. Portanto, partindo do ponto de vista brasileiro, isso seria a primeira coisa que eu sublinharia: a importância de não perder de vista o impacto cidadão, não apenas simbólico, mas também pragmático, político e efetivo dos julgamentos. Eu não seria a melhor pessoa para analisar até que ponto os julgamentos conseguiram ou não questionar o vinculo do instrumental mortífero da ditadura com o horizonte do neoliberalismo duro que se impõe nos anos 1990 com Menem, mas creio de alguma maneira que a tarefa que se delineia para vocês é muito mais avançada, pode-se dizer, que a tarefa que temos no Brasil, que é basicamente voltar ao ABC da memória. Alguns amigos argentinos têm mencionado o novo ciclo de direitas no continente e às vezes demonstravam preocupação que algo como um Bolsonaro pudesse emergir na Argentina. Demonstravam preocupação de que o Brasil poderia ser em alguma medida a antecipação de um processo que pode vir a  suceder na Argentina. Posso me equivocar, mas não acredito que este deva ser o principal medo que devamos ter neste momento, não penso que esse é o horizonte com que se deve trabalhar agora. Acredito que vale mais a pena entender algumas tarefas básicas executadas na Argentina e ignoradas no Brasil e que a dinâmica política de cada um de nossos países responde não somente a um horizonte global comum como também a diferenças nacionais agudas. Em vez de entender o Brasil como algo que viria a antecipar a Argentina, prefiro, a partir do Brasil, continuar prestando atenção na Argentina como um país onde algumas das tarefas mais urgentes que nos envolvem tiveram resultado se não de uma maneira completa, definitiva e incontestável, pelo menos de forma suficientemente contundente para que o horizonte político da Argentina seja um pouco menos catastrófico que o do Brasil.     
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* Escritor. Crítico literário. Jornalista.
*Publicado em espanhol na Revista Rea.Tradução de Gabriel Caio Correa Borges
Fonte:  https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-horizonte-da-derrota-entrevista-com-idelber-avelar/ 22/02/2019

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