José de Souza Martins*
O Brasil
que conhecemos é resultado histórico de um longo processo de rupturas
significativas, porque inovadoras, no marco da conciliação. A República o reconheceu
na adoção da consigna positivista de "Ordem e Progresso", como lema
da nova nação que nascia com o fim da escravidão. Mas nascia impregnada de
ressalvas em relação ao pressuposto da liberdade e da igualdade que seria próprio
de um regime republicano. Conciliávamos com as desigualdades profundas que o
regime escravista implantara na alma e na consciência do povo brasileiro.
Foi o que
nos confirmou como um país de história lenta. Era e ainda é uma característica
nacional. Um traço cultural e político. Mudamos, mas resistimos. É
nossa
personalidade conservadora, de um conservadorismo híbrido e sem autenticidade.
Desde o Império, aliás, estabelecêramos as bases de um regime político
pendular, como observou Euclides da Cunha, os liberais avançando ideológica e
doutrinariamente e os conservadores concretizando as inovações politicamente.
Raramente
nos damos conta de que inovações sociais e políticas modernizadoras e decisivas
foram adotadas no Brasil por facções conservadoras e autoritárias. Puseram em
prática bandeiras democráticas e de esquerda que as próprias esquerdas não
tinham condições políticas de viabilizar.
Foram os conservadores monarquistas que aboliram a escravidão, e não os liberais, contra a resistência dos republicanos. Foram os conservadores que, graças à lucidez política do fazendeiro e empresário Antônio da Silva Prado, articularam o fim do veto à libertação dos escravos. Foi o Estado Novo de Getúlio Vargas que implantou a legislação trabalhista e os respectivos direitos sociais. Foi o regime militar que viabilizou a reforma agrária e introduziu o direito ao divórcio. As contradições das circunstâncias têm governado o país quando encontram o estadista que as decifra e desata-lhes os bloqueios.
Foram os conservadores monarquistas que aboliram a escravidão, e não os liberais, contra a resistência dos republicanos. Foram os conservadores que, graças à lucidez política do fazendeiro e empresário Antônio da Silva Prado, articularam o fim do veto à libertação dos escravos. Foi o Estado Novo de Getúlio Vargas que implantou a legislação trabalhista e os respectivos direitos sociais. Foi o regime militar que viabilizou a reforma agrária e introduziu o direito ao divórcio. As contradições das circunstâncias têm governado o país quando encontram o estadista que as decifra e desata-lhes os bloqueios.
Porém,
nosso conservadorismo é mais omissão do que ação, mais desconhecimento do que sabedoria.
No fim, fica a impressão de que tudo se resolveu, apesar do incompleto e do
inacabado.
Dentre os
fatores históricos desse peculiar conservadorismo estão as duas escravidões, a
indígena e parda e a africana e negra, que marcaram profundamente a
personalidade dos brasileiros. Tanto a dos que obedeciam quanto a dos que mandavam,
na observação lúcida de Joaquim Nabuco. Uma elite de senhores de escravos não
poderia senão ganhar identidade na estreiteza das ideias própria de sociedade
de organização social rígida e de pouca diferenciação social, em que muitos não
eram considerados nem mesmo pessoas.
O
colonialismo de outras sociedades latino-americanas teve brechas que o que nos subjugou não teve. Atenuou a opção colonial
pela ignorância como instrumento de dominação. A Bolívia teve sua primeira
universidade em 1624, a Universidad San Francisco Xavier de Chuquisaca. O
Brasil só teve uma verdadeira Universidade, a de São Paulo, em 1934. Optamos
por libertar os cativos do trabalho escravo, mas não optamos por libertar o povo
da ignorância. Com atenuações insuficientes, até hoje é essa a opção que manda
no poder e manda em nós. Até pela educação limitada. Escravidão e ignorância
gestaram aqui um conservadorismo de resistência a inovações e transformações
sociais, políticas e culturais. Bem diverso do conservadorismo clássico, que se
robusteceu nos séculos XVIII e XIX, na contraposição aos valores e concepções
da Revolução Francesa.
O
conservadorismo europeu opõe-se, historicamente, ao liberalismo. Encontrou suas
bases sociais na nobreza vencida e nos direitos corporativos de artesãos e
camponeses. Como mostram T. H. Marshall e E. P. Thompson, daí vieram os
direitos sociais da sociedade moderna.
Aqui foi diferente. Sociedade de latifundiários e senhores de escravos ou beneficiários de relações pré-modernas de trabalho, só teve tardiamente uma burguesia que pudesse se expressar no liberalismo. E ainda assim, uma burguesia extensamente apoiada, direta ou indiretamente, mais na grande propriedade de terra do que no capital. Eis porque nunca tivemos, propriamente, liberalismo a que pudesse se opor um conservadorismo reformista de amplas e criativas consequências sociais e políticas.
Aqui foi diferente. Sociedade de latifundiários e senhores de escravos ou beneficiários de relações pré-modernas de trabalho, só teve tardiamente uma burguesia que pudesse se expressar no liberalismo. E ainda assim, uma burguesia extensamente apoiada, direta ou indiretamente, mais na grande propriedade de terra do que no capital. Eis porque nunca tivemos, propriamente, liberalismo a que pudesse se opor um conservadorismo reformista de amplas e criativas consequências sociais e políticas.
Essa
longa tradição vem passando por tendências de ruptura. Uma, a do período
petista, marcado pela ideologia sem teoria, a sujeição ao primado do econômico
sem a crítica da economia política, o socialismo do acaso.
Outra, no
período que se inicia agora, a economia reduzida ao meramente fiscal e os
prejuízos debitados na conta de quem trabalha e perde, e não na conta de quem
ganha e muito. O capitalismo modernoso no lugar do capitalismo moderno.
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* José de Souza Martins é professor de sociologia na USP
e membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, publicou A Política
do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto).
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