Você reconhece que uma pessoa tem repertório se
ela ultrapassou os ditos comuns de muitos que reduzem o cristianismo a
suas sombras históricas (ou suas sombras psicológicas em colégios de
padres ou freiras). Inteligentinhos de todos os matizes gostam de cuspir
no cristianismo, pregando um ateísmo de bolso.
A importância da compreensão do cristianismo, assim como de muitas
outras religiões, é entender que elas falam da condição humana ancestral
e contemporânea, apesar de muitos acharem que, porque temos um iPhone
novo a cada ano, nasce uma humanidade a cada ano.
Se você ouvir alguém dizendo que a Bíblia é um livro opressor,
patriarcal, ultrapassado, saiba que está diante de gente ignorante.
Mesmo se essa gente estiver montada em títulos, viagens ao exterior,
passaportes europeus, cursos em Paris com gente chique. A ignorância é
mais difícil de ser reconhecida quando ela veste Prada.
Uma das pérolas do cristianismo é o conceito de pecado. Construído a
partir de uma narrativa hebraica, o cristianismo deu a esta narrativa
contornos operísticos de grande valor dramático existencial, e
espiritual, é claro.
Uma das formas de identificar a espiritualidade de bolso que anda por
aí é identificar nela uma certa boçalidade associada à ideia de
assertividade e eliminação da auto-responsabilidade pelos próprios atos.
Se ouvir que alguém descobriu a espiritualidade quântica, provavelmente
você está diante da ignorância vestindo Prada —nada contra a marca,
claro.
Uma das qualidades da tal mecânica quântica é que ninguém entende
nada dela, e como alguém disse que nela tudo é nada e nada é tudo, o
mundo fica fluído como os gêneros sexuais da moda.
Um autor muito responsável pelo aprofundamento do conceito de pecado
foi Santo Agostinho, que viveu entre os anos de 354 e 430. Muitas foram
as definições e descrições dadas ao pecado desde o período patrístico,
como são chamados na história do cristianismo os séculos 2 a 7. Uma
delas, dada por Agostinho, me parece excepcionalmente valorosa: o pecado
de Adão e Eva, e o nosso por descendência, pode ser definido por um
tripé: orgulho, revolta e cegueira.
Comecemos pelo orgulho. Por que nosso casal parental teria sido
acometido pelo orgulho? Resposta: a dependência para com Deus os
irritava e os fazia se sentir menores.
Agora, pergunto eu: quem não depende de alguém? Haverá um homem ou
uma mulher sequer que seja de fato autossuficiente? A busca de nossos
ancestrais originais seria ser como Deus, donos do próprio destino.
Apesar de viverem num suposto paraíso, não lhes bastava o bem-estar
advindo desse paraíso; a raiva contra Aquele que os mantinha nessa
“felicidade infinita” tomou conta de suas almas criadas e eles decidiram
se tornar “almas incriadas”, ou seja, deuses. O ridículo da empreitada
nos assola até hoje.
Neste caso já vemos uma crítica interessante à boçalidade que se
espalha hoje, da publicidade aos worshops de coaching para felicidade ou
prosperidade. E mesmo ideias mais sofisticadas como o utilitarismo, que
sustenta sua ética num cálculo de bem-estar, pode ser alvo dessa
crítica.
A felicidade como paradigma parece gerar “dialeticamente” uma
epidemia de depressão. A natureza humana é tal que nem sendo feliz, ela é
feliz. Essa volatilidade do afeto, muitas vezes, nos cansa. Eis uma das
causas de corrermos para a medicação: nos curar de nós mesmos.
A felicidade infinita do paraíso nos entediou. A estratégia usada
pelo casal foi a seguinte: o problema não era a felicidade, mas sim ela
ser dependente de Deus. Optar pela felicidade orgulhosa de seres
supostamente autossuficientes os levou ao fracasso da empreitada e à
revolta.
A revolta os tornou rancorosos, ressentidos e propagadores da
“teoria” segundo a qual sua decisão de separar-se de Deus foi, de alguma
forma, culpa Dele. Quem sabe, Adão e Eva se sentiam “sem espaço” para
viver o que lhes era de direito: ser feliz sem depender de nenhuma fonte
externa para essa felicidade.
A revolta e seus “filhos”, o rancor, o ressentimento e a mentira sobre a própria condição, acabaram por levá-los cegueira.
Quanto mais orgulhosos e revoltados, mais cegos, e quanto mais cegos,
mais orgulhos (como mentira acerca da própria cegueira) e mais
revoltados.
Enfim, o pecado seria uma forma de cegueira. Neste sentido, a
humanidade seria uma espécie cega que caminha sobre a Terra. Como
morcegos sem asa. E o pecado seria uma forma de compulsão hereditária à
cegueira.
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