José de Souza Martins*
Já é hora
de pensar nos fatores e nas causas de termos estacionado no estágio histórico
da raiva e do ressentimento e não termos conseguido chegar ao estágio
civilizado da indignação para demarcar nossa postura política.
Grupos
protopolíticos, em décadas recentes, têm cultivado o ressentimento contra a
história e o nosso passado, como se viu nas celebrações do quinto centenário da
descoberta do Brasil. Reivindicam uma história sem contradições, antidialética.
Não sabem que a pátria é sempre muito mais do que o tão somente.
Não são
diferentes os grupos que acabam de chegar ao poder, ainda dispersos em
orientações ideológicas e excludentes, que satanizam o outro para elaborar suas
equívocas certezas. Especialmente os oportunistas que se penduraram na campanha
do candidato vencedor. São prisioneiros da extinta Guerra Fria.
Dois
acontecimentos destes dias nos dão a medida do purgatório a que essas
polarizações nos condenam. Um, a renúncia, antes da posse, do deputado federal
reeleito pelo Rio de Janeiro, Jean Wyllys, porque ameaçado de morte já muito
próxima de sua pessoa.
O general
Hamilton Mourão, vice-presidente da República, reconheceu que o fato grave fere
a democracia. Portanto, nos fere a todos em nossos direitos como cidadãos. A
renúncia de Jean Wyllys mostra que a ameaça de morte que lhe é dirigida faz o
Brasil bem menor do que temos o direito de querer. Nos bastidores há uma
máquina de delinquência política que ameaça a todos, não só alguns. É o mar de
lama que degrada a República.
O outro
acontecimento é o da tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais, a lama dos
rejeitos de uma das minas da Vale cobrindo extensa área, matas, plantações,
águas. Sobretudo seres humanos, o melhor patrimônio da nação. Em resumidas contas,
porque neste país, diferente de outros países autenticamente capitalistas, o
lucro está acima de qualquer suspeita, é irresponsável e inimputável a priori.
Nessa
perspectiva deplorável, a pátria é o resto, o descartável. A lama do lucro sem
compromisso com o destino de todos se sobrepõe à vida e aos valores que nos
definem. Talvez devêssemos reler "A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo", de Max Weber, para rever ali as condições éticas e
históricas que viabilizaram o nascimento do capitalismo.
É
descabido que o governo, recém-inaugurado, se defenda alegando que não é
responsável pela tragédia. Ninguém disse que o é. Mas ninguém disse que não o
é. Quando um partido assume o governo, mesmo em nome de antagonismos
ideológicos, assume as funções do Estado e herda todas as responsabilidades
históricas que fazem parte do legado do Estado.
Não pode
omitir-se em relação à violação de princípios, de valores e obrigações
pressupostos na Constituição e nas leis. Se não é cúmplice dos responsáveis
pela tragédia, é responsável pelas medidas duras que no caso cabem para
sobrepor as razões de Estado ao senso comum de seus motivos partidários. Essa
lama confronta a campanha eleitoral. Já é o real e o depois.
Não se
pode nem se deve negar a prontidão desse governo no reconhecimento da tragédia
e nas providências muito rápidas para salvar os que podem ser salvos e aliviar
o sofrimento da extensa lista das vítimas colaterais de mortos e desaparecidos.
A
campanha eleitoral vencedora foi de satanização de algumas das mais
significativas conquistas do povo brasileiro no que se refere aos direitos
sociais, aos direitos humanos, à defesa do patrimônio ambiental, ao
reconhecimento da humanidade das populações indígenas, ao direito à diferença
entre as pessoas e à pluralidade das ideias. Vai o governo, agora, descobrindo
suas limitações ideológicas no dia a dia do poder.
Nosso
grande patrimônio humano, moral e histórico, é o que nos faz plurais em todos
os sentidos, mas também o que nos diferencia como povo de singularidades: modos
de ver, de viver, de pensar e de reagir defensivamente na crítica aos abusos,
ao desrespeito que nos minimiza e subjuga. Mas onde está nossa indignação
construtiva?
O Estado
cúmplice dos poderios mesquinhos dos que mandam mais do que tem o direito de
mandar e cúmplice do lucro acima da moral, dos bons costumes e da própria vida
é o Estado que padecerá de permanente déficit de legitimidade, sempre dominado
pela instabilidade que decorre inevitavelmente desse carecimento.
Um fato
positivo das adversidades de quem governa é que, nesse governo, vão elas
descontruindo as limitações de um senso comum impróprio ao exercício do poder.
O general Augusto Heleno, em face da lama, corrigiu a interpretação de que o governo
pretenderia flexibilizar as leis ambientais. Ao contrário, pretende
racionalizar sua aplicação e torná-las mais rígidas, explicou.
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* José de Souza Martins é professor de sociologia na USP e membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, publicou A Política do Brasil Lúmpen
e Místico (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6099681/jose-de-souza-martins-o-mar-de-lama-que-degrada-republica 01/02/109
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6099681/jose-de-souza-martins-o-mar-de-lama-que-degrada-republica 01/02/109
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