Padre Gegê*
Na fileira audaciosa daqueles e daquelas que,
com temor e tremor, buscam sentir e pensar Deus (teologia) a partir das
grandes dores, desgraças e perplexidades humanas (como a de Auschwitz, por
exemplo), a tragédia criminosa produzida pela Empresa Vale em Brumadinho
traz, como tantos outros infortúnios, interrogações à fé, que pode, inclusive,
chegar ao ponto de comprometer a imagem de Deus. Uma pergunta emerge a não
poucos crentes (e descrentes): ONDE ESTAVA DEUS QUANDO A LAMA DESCIA?
Outra indagação pertinente aparece com
legitimidade no âmago da fé cristã: DEUS (onisciente, onipresente e todo
poderoso) não quis ou não pode intervir cessando o horror a céu aberto?
Pelo breve exposto, podemos dizer que se a fé
cristã questiona a vida, essa mesma fé é também questionada pelos mais
diversificados contextos de dor, sobretudo diante de grandes calamidades, mesmo
quando são produzidas pelo desejo insano e voraz de um grupo abastado cujo
único deus é o Capital. Em outros termos, Brumadinho questiona nossa imagem
sobre Deus. Nesse horizonte, o grito do Cristo sofredor na cruz (“Pai,
Pai, por que me abandonaste?”) nos leva à compreensão de um Deus que
compartilha de todos os gritos e sofrimentos humanos, inclusive do
sentir-se abandonado por Ele. Não é desse assombro que fala Castro Alves
quando indaga ao “Senhor Deus dos desgraçados”? Para Ariano Suassuna a questão
do sofrimento é a pergunta mais séria que um não crente pode fazer a quem crê.
A propósito, não é de dentro da dor que Jó duela com Deus? Suassuna cita o rei
da poesia do sertão , Leandro Gomes de Barros, que confessa: “Se eu conversasse
com Deus, eu iria perguntar: Por que é que sofremos tanto quando viemos pra
cá?[…] Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto?[…] Quem foi
temperar o choro e acabou salgando o pranto?”. No rastro das indagações do
poeta, poderíamos também perguntar no contexto de Brumadinho: teria Deus
perdido à medida? Ou mais radicalmente: Deus se compraz com o sofrimento
humano? Ou ainda: É Deus sádico ou insensível? São, pois, questionamentos que
brotam da dor extrema, do assombro e do desespero ante o caos irremediável.
Nessas horas escabrosas, palavras prontas, ditas inadvertidamente por muitos
cristãos, do tipo: “já deu tudo certo”, “Deus já deu a vitória” ou “Deus está
no controle”, constituem, no mínimo, um insulto ao sofrimento alheio. Melhor
seria que tais cristãos seguissem o exemplo do sambista Paulinho da Viola que
diante de um corpo estendido no chão toma respeitosa atitude. Narra o sambista
na canção “Coisas do mundo, minha nega”: “Não tirei minha viola. Parei, olhei,
fui-me embora. Ninguém compreenderia um samba naquela hora”.
Considerando, pois, o Cristo crucificado,
podemos, pensar e sentir Deus como um Deus soterrado em Brumadinho, Deus com
lama dos pés à cabeça. Essa face de Deus captada a partir dos vitimizados da
história não traz a notícia de um Deus super-homem ou sempre vitorioso (como
nas “missas da vitória”), mas traz, sim, o Evangelho de um Deus enlameado
que grita, exige justiça e, identificado, desde as entranhas, com os
sofredores, dá sua vida para salvar outras vidas; e quando a lama encobre seu
corpo, esse Deus solidário sequer tem boca livre para dar o grito derradeiro…
Deus está enlameado, não há sequer um José de Arimatéia para pedir seu corpo;
não se vê corpo…só LAMA. O céu se abriu em intraduzíveis exéquias e Deus
foi quem mais trabalhou. Fez-se a um só tempo: oficiante, corpo e sepulcro.
Deus ama tão engajadamente que está onde
estão os soterrados, os desgraçados pela Vale da Lama, Vale do lamaçal, Vale do
Capital – Lama sujado do mal.
O Deus enlameado faz-Se, pois, protesto
contra essa lama infernal. E do silêncio ensurdecedor desse Deus enlameado e
“desaparecido”, desse Deus agarrado às centenas de corpos,
igualmente submergidos,transparece a face de um Deus solidário. Desse modo, por
debaixo das lamas de Brumadinho aparece um Deus, desconcertante e profundamente
diferente do Deus anunciado pelo status quo. O Deus “desaparecido”
redime assumindo, sem preocupação asséptica ou profilática, os enlameados da
história. Esse rosto de Deus que se esvazia de si torna-Se não só um convite
mas, sobretudo,uma exigência à Igreja para que também ela, deixando uma
possível compulsão à pureza, seja capaz de enlamear-se com os enlameados,
chorar com os que choram, morrer com os que morrem e lutar esperançosa com
os que lutam.
Desse modo, Brumadinho, à luz da fé cristã,
converte-se em “lugar teológico”, isto é, lugar/situação a partir da qual
podemos refletir em que Deus somos crentes e em que Deus somos ateus.
Brumadinho teve sua sexta-feira da paixão antecipada e nela está o Cristo,
enlameado e agarrado aos soterrados: homens, mulheres, águas, plantas e
animais. Do Cristo, também soterrado pela Vale da lama, sequer se pode avistar
os cabelos de sua cabeça. Deus “desapareceu”; desceu com os seus à mansão dos
mortos. O Verbo se fez carne e a carne fez-se lama… E essa descida de Deus
(“descensus ad inferos”) é EVANGELHO!
Deus não larga a mão de ninguém!!!
Mas, esse anuncio não pode ser dado pela boca
de uma Igreja apática, ensimesmada, insensível e triunfalista. Somente uma
Igreja humanizada, sensível, engajada, agônica, martirial e enlameada (como o
Cristo), pode, no Espírito, proferir em terra devastada uma mensagem tão cheia
de consolo e esperança pascais.
Então, pensando a Páscoa, a partir de
Brumadinho, podemos dizer que ela já está sendo gestada desde as profundezas da
terra. Aquele que modelou no oculto, no oculto realiza a obra de resgate. E a
Páscoa não se dará sem que o Cristo traga em suas mãos o último soterrado e com
ele as águas ofendidas, os peixes apavorados e as árvores generosas. Nem o
latido inocente do último cachorro soterrado será esquecido por Deus.
Conforme crê Adélia Prado: “…nunca nada está morto. O que não parece vivo,
aduba, O que parece estático, espera!
Mas, vale dizer que a mensagem pascal não nos
tira da história, tampouco das diversificadas trincheiras que nos fazem dizer
não a um tipo de Vale que não vale à pena, porque ancorada num modelo político
e econômico que privatiza o “rio do doce” como o mel e socializa a lama mais
amarga que o fel. Podemos, pois, dizer, à luz da fé, que o Deus
enlameado é o já ressuscitado é o já ressuscitado é o ainda
enlameado no romper das sinistras barragens do capital.
Mas, no interior das contradições e
atrocidades humanas (pessoais e estruturais), Deus diz em “noites traiçoeiras”
aos sobreviventes de Brumadinho: “Coragem, eu vencia o mundo”! E aos
insepultos, o mesmo Deus revela: Lá aonde o bombeiro mais bravo não chegou, lá
onde a mão humana mais solidária não alcançou, Eu (igualmente,enlameado) vos
encontrei… Estarei convosco até o fim… Não vos deixarei órfãos… Hoje mesmo
estareis comigo no paraíso… Eu vencia a lama do mundo – Sou vossa
PÁSCOA! Eis o Evangelho do Cristo enlameado! “Humano assim só sendo
Deus mesmo”. Por isso, apesar dos pesares, Brumadinho, conforme o “Credo” da
afropoetisa Elisa Lucinda, é possível crer “na ressurreição da tarde e na vida
bela. Amém!”
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* Padre Gegê é Mestre em teologia (PUC-RJ) e
doutorando em ciência da religião (PUC-SP).
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