sexta-feira, 1 de março de 2019

Da purpurina às cinzas


                                                               Por Daniel Couto*

  Tanto o carnaval como a quaresma podem ser distorcidos e escapar àquilo que deveriam realizar.
 Tanto o carnaval como a quaresma podem ser distorcidos e escapar àquilo que deveriam realizar. 
(Mink Mingle/ Unsplash) 
 
Carnaval e Quaresma não se opõe, mas se completam como etapas de um caminho que humaniza.

“Carnaval é a alegria popular. Direi mesmo, uma das raras alegrias que ainda sobram para a minha gente querida. Brinque, meu povo querido! Minha gente queridíssima. É verdade que quarta-feira a luta recomeça. Mas, ao menos, se pôs um pouco de sonho na realidade dura da vida!" (Dom Helder Câmara)

A alegria é uma das mais poderosas expressões da natureza humana. A busca pelo prazer, pelo regozijo e pela euforia nos acompanha em todas as etapas da vida e, de maneiras diversas, se tornam uma busca cotidiana. Dentro das múltiplas facetas do ser humano, a dicotomia entre prazer e dor, alegria e austeridade, caracterizam-se como o jogo vital da existência. Conter os impulsos, refletir sobre a própria realidade e revisar os caminhos a serem seguidos contrapõe-se à abundância expressiva, às gargalhadas, ao entusiasmo e à animação. Hora somos alegria, hora mergulhamos em serenidade e melancolia. É necessário estabelecer um “tempo favorável” para que nossa humanidade encontre, em si mesma, todas essas características que a determinam como tal.

O tempo no qual percebemos de maneira mais significativa a exteriorização da alegria, em seu brilho, exuberância, canto e festa, é o carnaval. Como ação política, a cidade se transveste em uma ocupação cidadã, as ruas são tomadas pelos foliões que ressignificam a sua relação com o espaço onde habitam, em uma ruptura do “tempo ordinário”. Os corpos são enfeitados e a vida se torna um espetáculo por poucos dias. Certos limites podem ser quebrados, há uma disposição para o festejo, um hiato no ciclo cotidiano, um ânimo para o encontro e o oásis da afetividade. Carnavalizar é “colocar na avenida” a teatralização da vida, sem as dores e angústias: a epifania da alegria. Diversas forças, antropológicas e políticas, impulsionam o momento do esplendor carnavalesco como a resistência à repressão coletiva e individual. Enquanto se cultiva uma expectativa para os tempos de festa, os preparativos ocorrem em meio à imersão no habitual. Se o empuxo motivado pelo carnaval nos retira do estado de normalidade, como cultivamos, em contraposição, a austeridade e a contemplação?

Em nossa sociedade secular, o tempo para a meditação, a contemplação e o autoexame não se apresentam com força e atratividade. Quando somos chamados ao silêncio e à ponderação, logo após o momento de festa, parece que é retirado de nós o entusiasmo e somos mergulhados na lembrança do deleite passado, quase que negando a experiência da solidão. Assim, depois do carnaval, os cristãos católicos são chamados a viver a quaresma, um deserto de expectativa, uma austeridade fecunda que aprofunda os laços a partir da simplicidade e do exame de consciência. A experiência quaresmal é uma contracorrente da cultura da reificação1, do consumo e do desperdício. Da mesma maneira que algumas forças político-sociais nos chamam à alegria do carnaval, também somos chamados à austeridade da quaresma. Se a alegria nos ajuda a fugir das opressões e pretende oferecer igualdade e liberdade, a austeridade nos ajuda a olhar criticamente para a sociedade e perceber como é preciso agir contra a violência sistêmica, as injustiças e a lógica predatória que nos escraviza no consumo desenfreado. O carnaval nos conecta, uns com os outros, pela alegria, enquanto a quaresma nos conecta pela fraternidade, pelo reconhecimento da partilha de nossa condição humana. O oásis carnavalesco é complementado pelo deserto quaresmal, não são opostos, mas etapas do caminho de humanização.

Enfrentamos um ostensivo combate à expressividade humana, principalmente pelos movimentos conservadores, que demonizam o corpo, atribuindo a ele um estatuto pecaminoso, contrário ao que o próprio Evangelho propõe. O mistério da encarnação caracteriza-se pela ação do divino de assumir a condição humana, em todos os seus aspectos, concebendo dignidade a todas as mulheres e homens. Não existe um mundo espiritual independente, buscado pela negação do corpo, nem uma corporeidade que é desprovida da dimensão do espírito. A mentalidade que apresenta um “divino” governador hierárquico é desconstruída na própria figura do “filho do homem”, Jesus. A desqualificação do carnaval tem como consequência a descaracterização da quaresma, causando sofrimento e gerando uma visão equívoca da completude da existência2.

Como movimento político, o carnaval e a quaresma também são atacados pelas forças conservadoras, que desejam que as reflexões sociais se tornem cada vez mais fracas, escondidas nas mazelas da periferia, reforçando o estereótipo da desigualdade e a injustiça sistêmicas. Sair às ruas em uma clara expressão de festa, oferecendo um espaço de confronto à ordem estabelecida dos lugares sociais, é atacado pelos “bons costumes” como vagabundismo e “pouca vergonha”. O carnaval torna-se um rompimento da barreira dos favorecidos, pois é uma festa popular, uma importante e reconhecida expressão cultural. Da mesma maneira, viver a quaresma, em muitos dos casos, tornou-se uma satisfação das necessidades de afirmação do lugar social, seja ele nas demonstrações pias de caridade, seja nas promessas de abstinência que não passam nem perto do espírito do autoconhecimento, mas de uma pseudo-flagelação temporária. A “camarotização” do carnaval, tornando a manifestação popular uma mercadoria rentável e para poucos, também atinge a experiência quaresmal, com oneroso exercícios e retiros, guiados por religiosos famosos, confusas “orientações espirituais”, ações caritativas dispendiosas e pontuais e uma comercialização de “objetos da fé”.

A distorção desses dois “tempos oportunos” é um retrato do que vivemos como sociedade. Estamos imersos em um momento onde o “capital” dita as regras, os pobres e marginalizados são jogados, ainda mais, na miséria e as políticas sociais se desmontam. O Brasil, reconhecido por suas imensas festas populares carnavalescas, e premiado internacionalmente por suas conquistas na distribuição de renda, na diminuição da fome e nas políticas de seguridade, torna-se, cada vez mais, uma distorção do projeto democrático desejado para se tornar uma “mercadoria”. A elitização acarreta, necessariamente, em desigualdade, concentração de riqueza e condições de sobrevivência sub-humanas.

Em tempos onde a verdade tornou-se tão relativa, o carnaval e a quaresma podem oferecer para nossa sociedade um manancial de sentidos, resistência e humanidade. Levar alegria aos que sofrem e saciar a fome dos famintos é o caminho para a reconstrução de uma sociedade que tem esperança nos seus indivíduos porque os enxerga como dignos e iguais. Mais do que fazer desses momentos a presença do sagrado, é preciso resgatar nos seres humanos a pulsão de sua natureza. A festa nos prepara para o deserto da vida, mas temos sempre a esperança de nos regozijar na presença dos irmãos.  

Assim, enquanto tentam nos convencer que “Deus está acima de tudo”, experimentamos a alegria do “divino que dança no meio de nós” e que nos acompanha no silêncio e na contemplação do deserto. Enquanto tentam nos obrigar a aceitar “O Brasil acima de todos”, experimentamos que só é possível uma nação porque existem seres humanos irmanados por sua condição, e que somos nós que formamos um Brasil. Este Brasil que queremos é alegre, auto reflexivo, justo e com oportunidades igualitárias.

Em tempos em que pontes são depostas e muros construídos, encontramos no carnaval e no período quaresmal uma oportunidade para vivenciar um longo processo de regeneração cultural, espiritual e educativo, capaz de formar novas convicções, atitudes e estilos de vida fundados na consciência basilar duma recíproca pertença, duma origem comum e dum futuro partilhado por todos3.

Notas
[1] A reificação é um conceito que está relacionado à transformação das coisas (inclusive os seres humanos) em objetos de consumo. Inicialmente a reificação estava ligada à objetificação de ideias, mas com Adorno o conceito adentra a teoria social, onde os seres humanos perdem os traços de subjetividade, reflexão e individualidade para a participação em um coletivo técnico de “consumo de bens”.
[2] É importante relembrar que as comemorações do carnaval acontecem, exatamente, em relação ao ciclo quaresmal, com a sua data definida, inclusive, pela Páscoa e Quarta-Feira de Cinzas. Ambos são movimentos culturais profundamente imbricados.
[3] Cf. (FRANCISCO, Laudato Si, 202)
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*Daniel Couto é mestrando em filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), com pesquisas na área de filosofia antiga, retórica grega, filosofia aristotélica e recepção da filosofia antiga. Trabalha ainda com a Liturgia, a Ritualidade Cristã, a Cerimonialidade e a Teologia Litúrgica.

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