De sapatênis marrom e meia verde-abacate, Fernando Henrique Cardoso recebeu o Estado
nesta segunda-feira, 11, no centro de São Paulo, para falar do tema de
seu mais recente livro: a juventude. Contou entusiasmado que tem ido
caminhar na Avenida Paulista aos domingos, quando a via é fechada para
os carros, e disse que tem procurado se adaptar ao modo de pensar das
redes sociais, nas quais procura sempre se manter presente. “Eu tenho 87
anos. Quando nasci, a vida era diferente. E daí? Bom não é o passado, é
o futuro”, disse o sociólogo e presidente do Brasil por dois mandatos
(1995-1998 e 1999-2002).
FHC queria deixar a política partidária de lado na conversa e se concentrar apenas no lançamento de Legado para a Juventude Brasileira (Editora
Record), uma coautoria com a educadora Daniela de Rogatis. Porém, ao
abordar as redes sociais, acabou analisando o uso do Twitter pelo
presidente Jair Bolsonaro:
“É muito difícil pensar ‘tuitonicamente’, você pode, no máximo, emitir
um sinal”. Para o ex-presidente, a democracia exige raciocínio e a rede
social é operada por impulso.
Questionado
diretamente sobre o comportamento de Bolsonaro e de seus filhos
(Flávio, Eduardo e Carlos) nas rede sociais, FHC se disse preocupado com
o envolvimento da família no “jogo do poder” porque “leva o sentimento
demasiado longe” e disparou: “Eu acho perigoso. É abusivo, polariza
(...) Nós estamos assistindo ao renascimento de uma família imperial de
origem plebeia. É curioso isso. Geralmente, na República, as famílias
não têm esse peso”. Segundo ele, “Bolsonaro está indo mal por conta
própria”. Leia a entrevista:
A ideia foi da Daniela de Rogatis, de fazer um livro que resumisse um
pouco o que eu tento passar para as novas gerações. É uma coautoria.
Também foram acrescentadas aulas que eu dei, uma coisa é falar, outra é
escrever.
Qual é o legado que se pode deixar para a juventude brasileira neste momento?
Procuro transmitir um sentimento de amor ao País, respeito ao povo e
valorar a democracia. Fui ministro da Fazenda, conheço um pouco de
economia, acho que o crescimento econômico é importante, mas a mensagem
principal está nos valores e na crença de se ter organizações abertas em
que todos possam participar. Tenho em minha fundação atividades com os
jovens. Uma é essa, que se deve basicamente a Dani Rogatis, que tem como
alvo jovens de famílias empresariais. Há um outro grupo de pessoas,
estudantes de curso secundário, escolas públicas e privadas, escolas
profissionalizantes. Eles me perguntam qualquer coisa e eu só não gosto
de responder a questões de política partidária, não é o meu objeto fazer
pregação. O curioso é que as perguntas dos dois grupos, que são
diferentes quanto à renda, não são muito diferentes.
O senhor se atualiza com esses encontros?
Claro, é bom manter contato com as gerações mais jovens, participar das
inquietações deles também. Eu tenho 87 anos. Quando nasci a vida era
diferente. E daí? Bom não é o passado, é o futuro. Sem desprezar o que
já aconteceu.
O livro expressa uma grande preocupação com a ausência de líderes de peso. Por quê?
A sociedade contemporânea, paradoxalmente, na medida em que as
estruturas e os partidos deixaram de ser tão significativos, porque o
contato direto é mais fácil, requer referências. Essas referências só
existem quando existem pessoas que as simbolizam. Isso significa que
pode estar faltando rumo, alguém para dizer para onde nós vamos. O (Nelson)
Mandela na África era isso. Certa vez fui com ele a uma reunião em uma
área quase florestal da África do Sul. Quando ele chegou, mesmo sem
falar, ele transmitia uma emoção. O que ele estava dizendo não era tão
surpreendente. Ele era surpreendente, ele transmitia, ele significa. O
mundo precisa disso, de pessoas que apontem rumos mesmo sem falar. Aqui
no Brasil, infelizmente, tem muita gente falando e muito pouca gente
simbolizando qualquer coisa. Eu posso não estar de acordo com o Lula,
mas ele simbolizou em certo momento. Eu vi, em greves, ele simbolizava,
por exemplo.
E na transição de seus mandatos para o dele ambos simbolizaram alguma coisa, não?
Bastante. Eu vou publicar o último volume dos meus Diários da
Presidência e você verá como trabalhamos com muito afinco para ter uma
transição civilizada. Sabe por quê? Pelo meu amor à democracia. É
preciso entender que na democracia mudam os ventos, mas certas regras
permanecem e precisam ser valorizadas. No caso do Lula é visível. Ele
vinha contra mim, contra o PSDB, mas ele ganhou a eleição. Eu digo a
mesma coisa com relação ao Jair Bolsonaro. Ele ganhou a eleição e eu não
torço para que ele vá mal. Ele está indo mal por conta própria.
De que maneira o senhor acha que essa comunicação via redes sociais impacta a política?
Primeiro, é difícil o Twitter. Você dizer alguma coisa naquele pouco
espaço disponível não é fácil. Em geral as pessoas não dizem quase nada,
apenas manifestam o que estão fazendo. Isso passou a ser o modo com que
as pessoas acham que pensam. É muito difícil pensar “tuitonicamente”.
Você pode, no máximo, emitir um sinal. Nós estamos vivendo uma
transformação de uma sociedade na qual as elites eram reflexivas para
uma sociedade na qual todos são impulsivos. Isso tem efeito. É bom? É
mau? Eu não quero julgar. Como a democracia vai se ajeitar com isso é a
grande questão. A democracia requer reflexão, escolhas. O Twitter leva
mais ao impulso do que a uma escolha racional, e democracia necessita de
algo um pouco racional.
Como o senhor vê a maneira como o presidente Bolsonaro e os filhos dele, que são jovens, usam as redes sociais?
Eu acho perigoso. É abusivo, polariza. O Twitter facilita isso, o nós
contra eles. Isso para a democracia não é bom. Os líderes de várias
tendências não deveriam entrar nesse choque direto. Nós estamos
assistindo ao renascimento de uma família imperial de origem plebeia. É
curioso isso. Geralmente, na República, as famílias não têm esse peso.
Quando têm, é complicado, porque a instituição política não é a
instituição familiar, são coisas diferentes. Quando você tem a
instituição familiar assumindo parcelas do jogo de poder, você leva o
sentimento demasiado longe. O jogo de poder requer um equilíbrio
estratégico, de objetivos e meios para se chegar lá. Quando a pura
emoção domina é um perigo, porque você leva ao nós e eles: está do meu
lado ou está contra mim?
A preocupação do senhor com a radicalização tem sido grande.
Radicalizar no sentido de ir à raiz da questão, não como oposição. O
que é central para um sujeito que não seja do Centrão fisiológico? Para
mim, são duas coisas basicamente, a crença na democracia e o sentimento
de que é preciso maior igualdade social, isso é o miolo do que é
radicalmente centro. Nesse livro, isso reaparece, porque faz parte de
treinar a pensar no Brasil. Eu tenho uma preocupação com a concentração
de renda e poder, me preocupa também que a diferença entre Nordeste e
São Paulo seja muito grande. Você não deve deixar que uma nação se
divida. A função do Estado é ter maneira de induzir o crescimento e
equalizar as oportunidades. Está muito desigual o Brasil.
O senhor diria que este livro é mais pessimista ou otimista?
A despeito de tudo, é mensagem de otimismo. Eu não posso ser
pessimista. Vim para São Paulo em 1940, vi esta cidade crescer e
continua crescendo. Tem 18 milhões de habitantes e todos os dias de
manhã tem pão, ônibus, luz elétrica. Ainda é precário? Pode até ser, mas
o Brasil mudou para melhor, não foi para pior. Para a classe média
alta, talvez a vida seja mais dura. Mas quem pertencia a essa classe há
50 anos? Um grupo pequeno. De vez em quando eu vou passear a pé na
Avenida Paulista aos domingos, quando ela está fechada para carros. Você
vê o pessoal usufruindo a cidade, não tem briga, é só você não ter medo
dos outros. Estão desfrutando a vida. Isso não havia. É uma experiência
interessante. É gente que mora na periferia e vem para a Paulista, para
a Augusta, para o Minhocão aos domingos usufruir democraticamente da
cidade.
O conceito de democracia está em risco no Brasil?
Isso me preocupa. A juventude atual é mais bem-nascida do que a
anterior. Desfruta de algumas coisas como se elas fossem dadas. Não sei
se isso vai gerar solidariedade. Com quem as pessoas se preocupam na
Europa? Com os de fora, com os imigrantes. Aqui, não. São os de dentro
que não têm. É preciso despertar nos jovens desse grupo a consciência
disso, sem fazer demagogia.
Por que a juventude chegou a um momento de descrédito com os partidos e as instituições?
A forma de organização da produção e da vida na sociedade, com a
ligação direta na internet, mudou as coisas. Os partidos não se
adaptaram. Os candidatos, alguns, sim. As instituições ficaram aquém das
pessoas no mundo todo e isso criou a ilusão de que você pode ter a
democracia direta.
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Reportagem por Alberto Bombig, O Estado de S.Paulo
Fonte: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,assistimos-ao-renascimento-da-familia-imperial-critica-fhc,70002758352 17/03/2019
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