Clarice Lispector, grande escritora brasileira, nascida de uma
família que teve de abandonar a Ucrânia devido às perseguições aos
judeus, é considerada uma das grandes escritoras do século XX, a maior
escritora judia depois de Kafka.
Escreve o seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, aos 24
anos. Para ela “escrever é uma indagação”. Não a podemos confinar a um
único género literário, “não caibo em nenhum género”, afirma ela, mas
tem consciência da importância da sua escrita: “Eu já nasci incumbida!” e
afirmava: “Eu quero atingir o mais íntimo segredo daquilo que existe.
Estou em plena comunhão com o mundo” (…) “O milagre é a simplicidade
última de existir”. Confrontamo-nos aqui com a profunda espiritualidade
de Clarice.
A sua obra tem carácter universal, carregada de complexidade, numa
escrita “no feminino”. Escreve sobre o trivial, o quotidiano, levando a
descrição de um determinado momento ao detalhe: a barata; o ovo a ser
estrelado; o saco de compras. Clarice não olha. Contempla. É “a epifania
das personagens comuns em momentos do quotidiano”, segundo um dos seus
críticos. Tinha uma vocação solar: “Vamos não morrer como desafio?”,
afirmou.
A sua relação com Deus é complexa e contraditória. Clarice era uma
inquieta de Deus: “Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz
nascerem flores no peito (…) É por isso que me dou à morte todos os
dias. Morro e renasço”. A forma como escreve, a atenção ao quotidiano, o
sentido de contemplação tornam-na uma mística: a procura de Deus estava
no cerne da sua existência. “A escrita humanizou-me”, dizia.
Clarice vai dando visibilidade a um outro mundo possível. Afirma a
escritora e ativista brasileira Rosiska Darcy de Oliveira: “A vida não
enganava Clarice: por baixo dos factos, do enredo, borbulha a matéria
misteriosa de que é feita a existência e é ela que emerge fulgurante em
sua literatura vinda de atrás do pensamento”.
Para Clarice, escrever “é uma maldição… que salva”. “Eu escrevo como
se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria
vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos
porque neles vivemos”… Define Deus como “uma coisa que se respira”. Por
outro lado, mais adiante, exprime a sua inquietação: “Eu não tenho fé em
Deus. A sorte é às vezes não ter fé. Pois assim poderá ter a Grande
Surpresa dos que não esperam milagres”.
O movimento da sua vida “enquanto escritora e enquanto mística é em
direção a Deus”, afirma o seu biógrafo, Benjamim Moser. Clarice afirma,
no final da sua vida: “Eu não sou senão um estado potencial, sentindo
que há em mim água fresca, mas sem descobrir onde é a sua fonte”. A
Fonte que é Deus, sempre num além inominável.
Já muito doente – morreu prematuramente com um cancro aos 56 anos de
idade – escreve na sua caligrafia já trémula: “Eu sei que Deus existe”. E
adiante: “Quando acabardes este livro chorai por mim mais um aleluia
(…) No entanto eu já estou no futuro”.
Este último desejo – “Eu quero simplesmente isto: o impossível. Ver
Deus! ouço o barulho do vento nas folhas e respondo: sim!” – lembra que
Clarice buscou um “Deus caminhando na brisa da tarde” do livro do
Génesis.
A mística busca do transcendente coloca Clarice Lispector perto do
Castelo Interior de Teresa de Ávila. O desejo da fusão. Até sempre,
Clarice, no futuro!
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Teresa Vasconcelos é professora do ensino superior e membro do Movimento Graal de mulheres católicasFonte: https://setemargens.com/clarice-lispector-e-deus/ 08/03/2019
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