sábado, 23 de março de 2019

Psicóloga aplica lições que aprendeu em Auschwitz em terapias

Sobrevivente de Auschwitz que lançou um livro, Edith Eger em foto de 1944, quando tinha 16 anos

Sobrevivente de Auschwitz que lançou um livro, Edith Eger em foto de 1944, quando tinha 16 anos - Jordan Engle/Divulgação

Sobrevivente do Holocausto que usa experiência em campo de concentração com pacientes lança livro

Anna Virginia Balloussier
Rio de Janeiro 
 
“Você verá sua mãe em breve. Ela vai apenas tomar um banho”, lhe disse aquele homem de dentes separados quando sorria, a voz “quase gentil”. Àquela altura Edith Eva Eger ainda não sabia, mas tinha diante dela Josef Mengele, o oficial nazista que entraria para a história sob a alcunha de Anjo da Morte.

Também não desconfiava que ele mentira quando pediu a ela e à irmã, Magda, que fossem para uma fila de mulheres com mais de 14 anos e menos de 40, e a mãe, para outra —mas que não se preocupassem, pois logo estariam juntas de novo.

Coube a uma jovem de vestido listrado esclarecer o que realmente se passava ali, apontando para a fumaça subindo de uma chaminé. “Sua mãe está queimando lá dentro. É melhor você começar a falar dela no passado.”

A mesma garota lhe arrancaria das orelhas os brincos de coral e ouro que usava desde que nasceu. Perguntou por que ela havia feito isso, e ouviu de volta: “Eu estava apodrecendo aqui enquanto você estava livre, indo à escola e ao cinema”.

Assim Edith, a adolescente de 16 anos que só queria saber de dançar balé até o Exército alemão invadir seu vilarejo húngaro, foi apresentada a Auschwitz, em 1944.

Já descrita como a “Anne Frank que não morreu”, Edith, 92, pode não ser a primeira sobrevivente do Holocausto a compartilhar sua história de superação, como o fez em “A Bailarina de Auchswitz” (editora Sextante, 304 páginas, R$ 44,90 ou R$ 24,90 o ebook), que será lançado no Brasil no fim de março.
Um dos relatos mais famosos, inclusive, a inspirou enquanto estudante de psicologia. Trata-se de “Em Busca de Sentido”, que ela leu quase um quarto de século após o fim da Segunda Guerra Mundial e cujo autor, o psiquiatra Viktor Frankl, viraria seu mentor.

Lendo Frankl, ela teve uma epifania que mudaria sua vida: “Não importa quão frustrante, chata, limitadora, dolorosa ou opressiva for nossa experiência; podemos sempre escolher como reagir”.

O que faz do livro de Edith único é a perspectiva que ela oferece não só como alguém que precisou superar os horrores do passado. Doutora em psicologia, a nonagenária ainda atende a pacientes e aplica o que aprendeu no campo de concentração em suas terapias.

Edith atualmente mora na Califórnia e à Folha, por telefone, se diz surpresa de perceber como existe um excesso de medicação nos Estados Unidos. Afinal, uma lição que ficou de Auschwitz, para ela: é preciso “achar sua força interna” e “abraçar o possível, porque tudo pode virar uma oportunidade na vida”.

Parece papo de autoajuda, ok. Mas “não tem verão sem inverno”, e é importante entender isso se você quer superar um trauma, afirma.

E ela teve vários ao longo do ano em que esteve sob a guarda do nazismo, quando testemunhou cenas como a da mulher que entrou em trabalho de parto e teve as pernas amarradas por guardas (“Nunca vi uma agonia como a dela”).

Pesava 32 quilos quando foi resgatada por soldados norte-americanos que “tinham pouca comida a oferecer”, só gotinhas coloridas de chocolate, que depois aprenderia serem M&Ms. 

Graças a Deus, afirma Edith. Uma amiga dela morreu por comer demais depois de ser libertada. “Manter o estado de inanição é tão mortal quanto sair dele”, explica.

Hoje ela se descreve como uma senhora ativa e ainda capaz de dar seus pulinhos de balé, estilo que a garotada chama de “música de supermercado”, reconhece, rindo.
Sobrevivente de Auschwitz, Edith Eger (em foto de 2007) lançou o livro "A Bailarina de Auschwitz"
Sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, Edith Eger (em foto de 2007) lançou o livro "A Bailarina de Auschwitz" - Jordan Engle/Divulgação
Bailarina desde criança, ela já recebeu de Mengele a ordem para dar piruetas ao som da valsa “Danúbio Azul” para seu deleite. Acha que o agradou: “Ele deve ter ficado impressionado com o meu desempenho, porque jogou um pedaço de pão para mim”. 

Fechou os olhos e se sentiu rodopiando no inferno. Viu-se, então, “como Salomé, obrigada a dançar para o padrasto, Herodes”, e se questionou se “a dança lhe dá poder ou tira seu poder”.

Edith Eva Eger se decidiu pelo primeiro caso. A bailarina de Auschwitz ainda dança, “apesar de eu ter um mau caso de escoliose”. 

E esse, ela conta à reportagem, é seu segredo: “O contrário da depressão é a expressão. A gente precisa se expressar, não suprimir os sentimentos”.

Nem os piores deles, como o ódio. Isso percebeu ao atender um garoto de 14 anos enviado por um juiz. Ele havia ajudado a roubar um carro e, com o cotovelo na mesa, afirmou de cara: “Está na hora de a América ser branca novamente. Vou matar todos os judeus, negros, mexicanos e todos os chineses”.

Imagina! Logo ela, que sobrevivera a um genocídio, que utilizou o banheiro “para negras” em solidariedade a colegas afro-americanas e marchou com Martin Luther King para acabar com a segregação racial nos EUA.

Edith conta como descobriu que o ódio que sentia pelo rapaz também precisa ser vencido. Para isso, lembrou de duas pessoas: Adolf Hitler e Corrie ten Boom, a “gentia honrada”, uma holandesa que escondeu centenas de judeus em casa e acabou também em um campo de concentração.

Passada a guerra, Corrie se encontrou com um dos guardas responsáveis pela morte de sua irmã no campo. Poderia ter cuspido nele, mas não. 

Corrie conta que naquele momento, em que a ex-prisioneira apertou as mãos do ex-guarda, ela sentiu um amor puro e profundo. “Imaginei se era possível que aquele rapaz racista tivesse entrado em minha vida para que eu pudesse aprender o que é o amor incondicional”, diz Edith.

Então, engoliu a seco e, ante a verborragia nazista do jovem paciente, disse apenas: “Conte mais”.
Assim, aprendeu que ambos perderam os pais —ele por abandono, ela por morte— e se viam como uma mercadoria danificada. 

“Ao abrir mão de julgar, ao deixar de lado a minha vontade de que ele fosse ou acreditasse em algo diferente, ao perceber sua vulnerabilidade e sua ansiedade por pertencimento e amor, ao conseguir superar o meu medo e minha raiva de modo a aceitá-lo e amá-lo, fui capaz de dar a ele algo que suas botas marrons e sua camisa marrom [vestes de skinhead] não conseguiram –uma imagem real de seu próprio valor”, afirma.

Todos, ali compreendeu, têm a capacidade de odiar ou amar. De ser Hitler ou Corrie. Questiona a repórter: na vida, quem você escolhe ser?

Capa do livro "A Bailarina de Auschwitz", da autora Edith Eva Eger
Capa do livro "A Bailarina de Auschwitz", da autora Edith Eva Eger - Reprodução
Livro:  "A Bailariana de Auschwitz"
Autor: Edith  Eva Eger
Editora: Sextante, 304 págs.,
Preço: R$ 44,90 ou R$ 24,90 o ebook
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Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/psicologa-aplica-licoes-que-aprendeu-em-auschwitz-em-terapias.shtml

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