Adriano Moreira*
O
número de poderes políticos personalizados, que no século passado
apareceram à esquerda e à direita dos regimes ditatoriais, com a
designação genérica de fascismo e sovietismo em conflito, levaram Claude
Lefort a usar as expressões "egocracia", esta herdada de Soljénitsyne, e
"idiocracia", que juntam ao "culto da personalidade" a lex animata do titular do poder, que, por inspiração, se assegurava a excelência da conduta política pessoal.
Entre
as múltiplas análises e previsões fundadamente pessimistas, sobre a
situação da Venezuela, cuja crise pesa severamente na crise do
globalismo sem governança em que o mundo se encontra, aparece lembrado,
por comentadores do chamado "chavismo", um discurso do presidente Hugo
Chávez, em 2012, como exemplo da pretensão ou convicção da posse de
ambas as definições. Dirigindo-se ao povo aglomerado numa manifestação,
afirmou: "Quando vos vejo, quando me vedes, sinto, qualquer coisa me
diz: 'Chávez, já não és Chávez, és um povo.' Eu de facto já não sou eu,
sou um povo e sou vós, é assim que o sinto, encarnei em vós... somos
milhões de Chávez."
Nos regimes autoritários que na Europa, à
direita e à esquerda, viveram o "culto da personalidade" dos
governantes, não é impossível que algum líder o pensasse, mas é difícil
de encontrar assumida convicção, com igual expressão verbal que excede
as convicções das monarquias absolutas do passado distante. O desastre a
que o atual presidente, de legitimidade contestada, conduziu a
Venezuela de 2019, e que não deve estar livre de agravar, tentando
reimplantar o culto do passado Chávez, alerta para o perigo de que os
populismos, dinamizados pela queda no desastre institucional a que foram
conduzidas a sociedades civis, possam nesta situação inclinar para
reabrir caminhos a solitárias egocracias, opostas ao apoio dos países
que assumem os deveres humanitários. Invocariam facilmente o propósito
de evitar a ameaçadora inquietação interna, agravando os procedimentos
de total desorientação que o governo Maduro obriga a temer.
E
também obriga, tendo por exemplo o caso de Maduro, a que as instituições
de governança global, de estrutura frequentemente demonstrada incapaz
de implantar o projeto que assumiram, todavia tenham de incluir na sua
responsabilidade, desafiada, a urgência de impedir que o populismo, de
perfis variados, não venha a evoluir, em qualquer latitude, mas com
atenção interessada pelo Ocidente em crise, para eurocracias piores do
que as do século passado. Designadamente, como foi recentemente
advertido por Monod, já Orbán passou a usar a esclarecedora expressão
"democracia iliberal" em reação contra a União Europeia, e querendo,
segundo tão avisado analista, criar "uma adesão emocional a um líder que
se apresente a si próprio como estando à escuta do "verdadeiro povo",
pensado, com critério étnico, no povo nacional a defender contra o
estrangeiro, o refugiado e o emigrado, em rutura com o reprovado e
chamado establishment intelectual e mediático, condenado
aderente à livre circulação das pessoas, ao liberalismo
jurídico-político e ao "cosmopolitismo".
As eleições nos vários
países da União Europeia, com herança diferente entre as antigas meia
Europa ocidental e a meia Europa do leste, podem ser atingidas por
populismos fraturantes, que não encontraram, mas é de admitir que
procurem, em vista de fortalecerem a insubordinação contra a ordem
política que não consideram justa ou consideram mesmo adversária da
justiça, dirigentes que poderão tender para a "egocracia", de que, por
exemplo, o próprio princípio da "America First" parece acolher
fragmentos ao consagrar os proclamados triunfos individuais, dando-se o
autor como exemplo e criticando implícita e explicitamente as que
apelida de elites dominantes do Estado, de que ocupa o governo, com a
mesma Constituição, embora numa Casa Branca que parece ter criado o
maior dinamismo de sempre na circulação de auxiliares responsáveis.
A
experiência francesa dos coletes amarelos já contagiou outros Estados,
também da União, no sentido de temerem a desordem que a última votação
presidencial francesa não permitia ser prevista por qualquer análise. A
União Europeia, que procurou dar forma a projetos que esperaram séculos,
tem de enfrentar o desafio da reformulação em termos de impedir que o
futuro de qualquer membro seja um regresso, mais acentuado ou menos
acentuado, ao passado: o ameaçador outono ocidental da interdependência
de todos os seus membros. Não obstante projetos e doutrinas posteriores
ao cataclismo da última guerra mundial terem em vista a unidade
europeia, a experiência das meias-Europas que se seguiu à paz requereu
tempo demorado para que a visão unitária se reconstituísse com harmonia
estratégica.
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* Advogado, professor universitário de ciência política e relações internacionais e político português.
Fonte: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/24-mar-2019/interior/a-egocracia-10712072.html?target=conteudo_fechado
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