segunda-feira, 25 de março de 2019

A egocracia

Adriano Moreira*

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O número de poderes políticos personalizados, que no século passado apareceram à esquerda e à direita dos regimes ditatoriais, com a designação genérica de fascismo e sovietismo em conflito, levaram Claude Lefort a usar as expressões "egocracia", esta herdada de Soljénitsyne, e "idiocracia", que juntam ao "culto da personalidade" a lex animata do titular do poder, que, por inspiração, se assegurava a excelência da conduta política pessoal.

Entre as múltiplas análises e previsões fundadamente pessimistas, sobre a situação da Venezuela, cuja crise pesa severamente na crise do globalismo sem governança em que o mundo se encontra, aparece lembrado, por comentadores do chamado "chavismo", um discurso do presidente Hugo Chávez, em 2012, como exemplo da pretensão ou convicção da posse de ambas as definições. Dirigindo-se ao povo aglomerado numa manifestação, afirmou: "Quando vos vejo, quando me vedes, sinto, qualquer coisa me diz: 'Chávez, já não és Chávez, és um povo.' Eu de facto já não sou eu, sou um povo e sou vós, é assim que o sinto, encarnei em vós... somos milhões de Chávez."

Nos regimes autoritários que na Europa, à direita e à esquerda, viveram o "culto da personalidade" dos governantes, não é impossível que algum líder o pensasse, mas é difícil de encontrar assumida convicção, com igual expressão verbal que excede as convicções das monarquias absolutas do passado distante. O desastre a que o atual presidente, de legitimidade contestada, conduziu a Venezuela de 2019, e que não deve estar livre de agravar, tentando reimplantar o culto do passado Chávez, alerta para o perigo de que os populismos, dinamizados pela queda no desastre institucional a que foram conduzidas a sociedades civis, possam nesta situação inclinar para reabrir caminhos a solitárias egocracias, opostas ao apoio dos países que assumem os deveres humanitários. Invocariam facilmente o propósito de evitar a ameaçadora inquietação interna, agravando os procedimentos de total desorientação que o governo Maduro obriga a temer.

E também obriga, tendo por exemplo o caso de Maduro, a que as instituições de governança global, de estrutura frequentemente demonstrada incapaz de implantar o projeto que assumiram, todavia tenham de incluir na sua responsabilidade, desafiada, a urgência de impedir que o populismo, de perfis variados, não venha a evoluir, em qualquer latitude, mas com atenção interessada pelo Ocidente em crise, para eurocracias piores do que as do século passado. Designadamente, como foi recentemente advertido por Monod, já Orbán passou a usar a esclarecedora expressão "democracia iliberal" em reação contra a União Europeia, e querendo, segundo tão avisado analista, criar "uma adesão emocional a um líder que se apresente a si próprio como estando à escuta do "verdadeiro povo", pensado, com critério étnico, no povo nacional a defender contra o estrangeiro, o refugiado e o emigrado, em rutura com o reprovado e chamado establishment intelectual e mediático, condenado aderente à livre circulação das pessoas, ao liberalismo jurídico-político e ao "cosmopolitismo".

As eleições nos vários países da União Europeia, com herança diferente entre as antigas meia Europa ocidental e a meia Europa do leste, podem ser atingidas por populismos fraturantes, que não encontraram, mas é de admitir que procurem, em vista de fortalecerem a insubordinação contra a ordem política que não consideram justa ou consideram mesmo adversária da justiça, dirigentes que poderão tender para a "egocracia", de que, por exemplo, o próprio princípio da "America First" parece acolher fragmentos ao consagrar os proclamados triunfos individuais, dando-se o autor como exemplo e criticando implícita e explicitamente as que apelida de elites dominantes do Estado, de que ocupa o governo, com a mesma Constituição, embora numa Casa Branca que parece ter criado o maior dinamismo de sempre na circulação de auxiliares responsáveis.

A experiência francesa dos coletes amarelos já contagiou outros Estados, também da União, no sentido de temerem a desordem que a última votação presidencial francesa não permitia ser prevista por qualquer análise. A União Europeia, que procurou dar forma a projetos que esperaram séculos, tem de enfrentar o desafio da reformulação em termos de impedir que o futuro de qualquer membro seja um regresso, mais acentuado ou menos acentuado, ao passado: o ameaçador outono ocidental da interdependência de todos os seus membros. Não obstante projetos e doutrinas posteriores ao cataclismo da última guerra mundial terem em vista a unidade europeia, a experiência das meias-Europas que se seguiu à paz requereu tempo demorado para que a visão unitária se reconstituísse com harmonia estratégica.

Os sinais advertem para fragilidades do projeto.
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* Advogado, professor universitário de ciência política e relações internacionais e político português.
Fonte:  https://www.dn.pt/edicao-do-dia/24-mar-2019/interior/a-egocracia-10712072.html?target=conteudo_fechado
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