Como nos revela a nota editorial da obra Nos Ombros dos Gigantes (Record, tradução de Eliana Aguiar), de autoria do italiano
Umberto Eco
(1932-2016), os doze textos que compõem o livro “foram publicados para o
festival La Milanesiana, no qual eram lidos por Eco em forma de lectio
magistralis [palestra do mestre/professor], entre 2001 e 2015. O
festival La Milanesiana de literatura, música, cinema, ciência, arte,
filosofia e teatro surgiu em 2000, em Milão, por iniciativa da editora,
escritora e cineasta italiana Elisabetta Sgarbi. A partir de 2008, cada
edição da Milanesiana recebeu um tema, ao qual Eco se referia e do qual
às vezes era também o inspirador”.
Quando
aterrissamos no sumário da obra, os títulos dos textos, por si sós,
parecem epígrafes extraídas de afrescos da catedral polifônica e
renascentista de um dos maiores eruditos de nossa época. Assim, O
Invisível parece prenunciar Representações do Sagrado. Dizer o Falso,
Mentir, Falsificar soa como uma etapa de Algumas Revelações sobre o
Segredo, que vai acabar resultando em O Complô. Sobre Algumas Formas de
Imperfeição na Arte pressupõe A Feiura, que, contraposta o texto A
Beleza, nos levando a pensar sobre Absoluto e Relativo e Paradoxos e
Aforismos. Por fim, o lirismo de Umberto Eco nos faz imaginar o autor
italiano bem jovenzinho e hipnotizado pela chama trêmula e fuliginosa de
uma vela, em uma missa com a avó ultracatólica no Vaticano. Eis, quiçá,
a antecâmara de A Chama é Bela.
Em
meio à cordilheira de palestras/ensaios de Nos Ombros dos Gigantes, o
cume mais sobrelevado desponta com o texto homônimo ao livro que o
abarca. Trata-se, justamente, do escrito inicial, como se Eco convidasse
o leitor a subir nos ombros dos gigantes da tradição artística,
filosófica e científica europeia de modo a vislumbrarmos a dialogia e os
duelos que entretecem a história das criações (e) das ideias.
Para
Eco, as afinidades eletivas e as dissonâncias entre gigantes e anões,
pais e filhos, do seio da família às relações de influência e rebeldia
na arte e no pensamento, vêm forjando a tradição desde que o Gênesis
sentenciou “No princípio” e desde que o “Era uma vez” deu à luz a
literatura. Ao analisar o sumo distanciamento da Idade Moderna em
relação à Idade Média, considerada, pelos filhos inovadores, como a
“Idade das Trevas”, Eco afirma que “Humanismo e Renascimento são
movimentos culturais tidos usualmente como revolucionários, mas que
baseiam sua estratégia inovadora em um dos movimentos mais reacionários
que já existiram, se entendermos como reacionarismo filosófico o retorno
à tradição intemporal [referência à tradição greco-romana]. Portanto,
estamos diante de um parricídio que elimina os pais recorrendo aos avós e
tentando reconstruir sobre seus ombros a visão renascentista do homem
como centro do cosmos.”
Eco vai longe nas afinidades e
dissonâncias que aproximam e distanciam pais e filhos, reação e
revolução. Assim, para o italiano, o filho dileto do messianismo cristão
foi o marxismo ateu: “Não podemos esquecer que a história, como
movimento progressivo em direção ao futuro, da criação à redenção e
desta ao retorno do Cristo triunfante, é uma invenção dos pais da Igreja
– de modo que, quer nos agrade, quer não, sem cristianismo (mesmo com o
messianismo hebraico às costas), Marx não poderia falar das magníficas e
progressivas sortes.”
Se os pais pregam o Éden no além-mundo,
os filhos parricidas querem o Éden aqui e agora. Para Eco, à aposta dos
pais na fé corresponde a apostasia incendiária dos filhos.
Quando
adentra a arena artística, as afetações e desafetos, construções e
desconstruções se tornam ainda mais encarniçadas. É assim que, em meio à
iconoclastia das vanguardas artísticas do princípio do século 20, Eco
discorre sobre o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973), “que
desfigura o rosto humano a partir de uma reflexão sobre os moldes
clássicos e renascentistas e retorna, por fim, a uma revisitação de
antigos minotauros. (...) E, para terminar, o grande parricídio cometido
no corpo histórico do romance, o de Joyce, instaura-se assumindo o
modelo da narrativa homérica. O novíssimo Ulisses também navega nos
ombros, ou no mastro principal, do antigo.”
Entre gigantes e
anões, pais e filhos, reacionários e revolucionários, a erudição e as
criações de Umberto Eco, da literatura à filosofia, da semiótica à
linguística, nos fazem entrever que só um profundo conhecedor da
tradição consegue se elevar à condição de verdadeiro iconoclasta.
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*FLÁVIO
RICARDO VASSOLER É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM
LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY (EUA). AUTOR DE ‘O
EVANGELHO SEGUNDO TALIÃO’ (NVERSOS), ‘TIRO DE ISERICÓRDIA’
(NVERSOS), ‘DOSTOIÉVSKI E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO
CONTEÚDO’ (HEDRA) E ‘DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA’ (HEDRA, NO PRELO)
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,umberto-eco-passeia-pelo-melhor-da-cultura-ocidental-em-palestras,70002739597
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