José de Souza Martins*
Para
compreender sociologicamente a mentalidade dos que ocupam funções de poder, um
meio é observar como caminham e o modo como lidam com o próprio corpo nas
situações rituais do exercício do mando. Muitas pessoas poderosas revelam o que
são e suas limitações nos eloquentes desencontros entre a função política que
ocupam e o corpo que carregam para dentro do poder. Os desencontros ficam
evidentes no modo de andar impróprio, no tom de voz elevado.
Não
é raro que os fora de lugar ensaiem suas performances antes de saírem à boca da
cena dos episódios de teatralidade a que a circunstância os obriga. Um ensaio
fotográfico da época mostra que Hitler fazia isso para aparentar em público o
oposto do homem abúlico e insípido que Goebbels descreve em seu diário.
Getúlio
Vargas interagia com a multidão, calculando-lhe a reação provável e dando à voz
a teatralidade do poder. Um documentário mostra Luiz Inácio, nos bastidores do
palco da Vila Euclides, em São Bernardo, avaliando a multidão, calculando a
postura para o discurso que faria.
A
linguagem política não se resume à fala nem se expressa, necessariamente, nos
discursos oficiais. É insuficiente que o analista se limite ao que o político
diz. O documento dos fatos políticos está muito presente nos gestos, nas
relutâncias, naquilo que não é dito, mas está sendo evidenciado. Está nos
indícios da mentalidade do político que se expressa em seu corpo mudo.
Pequenos
detalhes podem falar muito mais do que extensos e elaborados discursos. Além do
que, toda a biografia da pessoa, desde o nascimento, deixa suas marcas
profundas não só na personalidade, mas também em seus modos: de caminhar, de
sentar, de mastigar, de falar, na competência ou não para representar
apropriadamente a pessoa que personifica em cada circunstância.
Desde
o dia da posse, a rigidez militar da postura do novo presidente em atos
públicos e oficiais indica a socialização formal própria da vida de quartel, a
sociabilidade limitada às regras da ordem unida, da voz de comando, da
disciplina de comandado. Seu corpo não está à vontade na pessoa presidencial,
seu corpo ainda não assumiu a Presidência.
Embora
seja o comandante em chefe das Forças Armadas e, portanto, hierarquicamente
superior a todos os oficiais generais, em sua postura há indícios de uma
indecisão sem cabimento. Uma indecisão que Lula não tinha, descomprometido que
era com a ideia de disciplina.
Lula,
muito antes de entrar na política, tinha clareza sobre as limitações que a condição
operária impõe aos modos de conduta do trabalhador quando fora de sua
específica situação de classe social. Em depoimento no Congresso de História da
Região do ABC, em São Bernardo do Campo, nos anos 1990, fez esta afirmação
significativa: "O operário não sabe nem comer". E contou o que lhe
acontecera num jantar em palácio, para o qual fora convidado por François
Mitterrand.
Lula
ganhava notoriedade internacional como líder sindical. Num certo momento, o
serviço do jantar parou. Até que um acompanhante do futuro presidente
brasileiro, um que vinha de outra classe social, sussurrou-lhe que colocasse os
talheres no prato, em determinada posição, para indicar que havia terminado,
para que o jantar continuasse.
No
mesmo congresso, velhos operários de diferentes empresas, já aposentados,
apresentaram um testemunho de como os movimentos do corpo, na linha de
produção, ficaram gravados em sua memória gestual. Como na performance de
Chaplin em "Tempos Modernos". Até em atos fora da fábrica, como o das
refeições em casa. Em certa época, o único talher nas refeições operárias era a
colher, segurada como se a pessoa segurasse uma ferramenta.
A
postura do poderoso e o senso comum de sua mente arrastam a liturgia da função
presidencial para desempenhos e visibilidades limitantes e desconstrutivas que
desdizem o que está sendo dito e representado. O que diz muito sobre o lado
alienado do poder.
Se nos gestos do novo presidente há o cenário de um quartel invisível, nos gestos presidenciais de Luiz Inácio havia o cenário invisível da porta da fábrica, como nos gestos presidenciais de FHC havia o cenário da sala de aula, ou nos de João Figueiredo havia o do oficial de cavalaria sempre montado, mesmo quando caminhava. O cenário dos chamados
às funções do poder ou os puxa para cima de sua pessoa ou seu corpo os puxa para baixo de sua função.
Se nos gestos do novo presidente há o cenário de um quartel invisível, nos gestos presidenciais de Luiz Inácio havia o cenário invisível da porta da fábrica, como nos gestos presidenciais de FHC havia o cenário da sala de aula, ou nos de João Figueiredo havia o do oficial de cavalaria sempre montado, mesmo quando caminhava. O cenário dos chamados
às funções do poder ou os puxa para cima de sua pessoa ou seu corpo os puxa para baixo de sua função.
A
rigidez das pernas do presidente atual contém um discurso paralelo sobre o
presidente invisível que há nele, como tem havido em todos os outros. Neste
momento, prestar atenção nos movimentos corporais de quem nos governa é um meio
de compreender em tempo o que será o governo e de que tipo serão suas crises.
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* José
de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da
USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A
Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6149931/jose-de-souza-martins-os-movimentos-corporais-de-nosso-governo
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