Alecsandra M. de Oliveira*
As pequenas violências salvam-nos das grandes[1
Das lutas da antiguidade às duas
guerras mundiais, o testemunho histórico jogou luzes sobre grandes
violências com vítimas e algozes quase sempre anônimos. Por muito tempo,
os processos narrativos não individualizaram as dores, os sentimentos e
os afetos. Porém, a partir do final dos anos de 1980, a história
iniciou uma reflexão sobre sua escrita e sobre o que deveria ser
registrado. Acontecimentos como a queda do muro de Berlim, o fim da
bipolaridade entre URSS e EUA (socialismo versus capitalismo), a
implosão da URSS, a globalização, os avanços tecnológicos e os diversos
conflitos étnico-religiosos espalhados pelo mundo provocaram urgente
revisão sobre o anonimato da violência.
Nas últimas décadas do século XX, essa reavaliação compreendeu que a
racionalidade histórica e as grandes narrativas não davam conta de
atender à diversidade de vozes que irrompiam da cena privada para a
pública. Etnias, grupos sexuais, religiosos e diversas outras “minorias”[2]
ganharam protagonismo – não que nunca tivessem existido até aquele
momento, mas seus nomes emergiram dos esmaecidos conceitos modernos que
homogeneizavam a todos sob as categorias de povo, de nação e de
população. Essas “minorias” aderiram aos movimentos sociais insurgentes
que corroboraram ainda mais o declínio final das metanarrativas[3].
Assim, a partir do desmoronamento das metanarrativas, alguns
estudiosos decretaram o “fim da história” ou o “fim da arte”. Hans
Belting, por exemplo, não propôs o fim da arte, nem da história da arte
como uma disciplina, mas apresentou fatores que marcaram o esgotamento
cultural e epistemológico da tentativa eurocêntrica de enquadrá-las: o
autor reconhece que realmente fracassou o esforço estruturante de dar à
arte e à história coerência e validade pretensamente universal.
Concatenado às ideias de Belting, Arthur Danto viu o fim da arte não
como o fim das obras de arte, mas como o término de um tipo de produção
que estava integrada a uma narrativa pautada pelas noções de estilos,
escolas e movimentos. Acima de tudo, nessa narrativa tradicional,
existiria uma trajetória evolutiva na qual cada fazer artístico
superaria o anterior; sendo assim, a compreensão da trajetória linear
seria o instrumental imprescindível para avaliar qualquer obra de arte.
Tudo isto caiu por terra quando os fatos históricos e a própria arte se
rebelaram contra esse sistema evolutivo.
Ainda no âmbito dessa perspectiva aberta pelo fim das metanarrativas,
o Estado foi incapaz de manter o monopólio da violência. O terrorismo,
por exemplo, aflorou como uma das respostas ao questionamento do status quo e
à crise dos partidos políticos centrados em ideologias de esquerda ou
de direita. Na verdade, o terrorismo, bem como todas as reivindicações
das “minorias”, são fragmentos de história que – muitas vezes
contraditórios entre si – foram ignorados pelas grandes narrativas. O
não reconhecimento dessas histórias ecoa nos conflitos que estavam
abafados por grandes forças coercitivas.
Quando essas forças foram diluídas, o exercício do poder passou a
estar em toda parte e a ser questionado mais e mais; onde há poder não
pode existir afeto, somente a coerção e a violência subsistem. Se até os
anos de 1970 o inimigo era supostamente visível, no fim dos anos de
1990 ele era onipresente. O poder e a violência estavam infiltrados no
dia a dia. Saiu-se da esfera política para as chamadas micropolíticas,
ou seja, a preocupação com os fenômenos de controle de poder entre
indivíduos, grupos e organizações tomou espaço no convívio diário.
Hoje, passados cerca de 40 anos da queda do discurso das
metanarrativas e adjacente às revisões historiográficas e
epistemológicas, artistas conectaram-se com o exercício da
micropolítica, isto é, com aquelas reivindicações que tratam sobre as
questões sociais, de gênero, do corpo, da sexualidade e das instituições
que detêm algum tipo de poder (família, escola, igreja e todo e
qualquer domínio dos saberes). Nessas circunstâncias, as “pequenas”
violências que atingem o indivíduo contemporâneo são tão ou mais
importantes do que as grandes pautas que movem o cenário político
internacional: vítimas e algozes quase sempre têm nomes e estão muito
próximos.
[Ana Teixeira] sentou-se em uma cadeira nas ruas de diferentes cidades com uma cadeira vazia ao seu lado e uma placa que dizia “Escuto histórias de amor”.
As “pequenas” violências surgem aqui entre aspas porque estão longe
de serem diminutas. Elas são ocultas, constantes e envernizadas por uma
camada de impessoalidade; acontecem no cotidiano contemporâneo e muitas
vezes as vítimas não as compreendem como tal. Nesse sentido, o velado é
mais difícil de ser combatido. A resistência, a denúncia, o
discernimento e a atitude se fazem necessárias. As poéticas visuais
podem ser o meio catártico para as transformações efetivas desta
realidade. Assim, as “pequenas” violências muitas vezes motivam e
permeiam os discursos de muitos artistas contemporâneos sensíveis às
injustiças e à condição marginalizada de diversas “minorias”.
Sobre as “pequenas” violências que atingem a condição feminina, Beth
Moysés, por exemplo, desconstrói o vestido de noiva: o relacionamento
homem-mulher e a violência doméstica são trabalhados na sua dimensão
política e libertadora. A artista dialoga com o universo feminino há
mais de 20 anos. Suas performances e vídeos tocam profundamente as dores
e as cicatrizes que ficam pelas agressões sofridas, despertando
aspirações futuras. A performance Memória e Afeto, realizada no
dia 25 de novembro de 2000 – Dia Internacional para a Eliminação da
Violência contra as Mulheres – é um marco na trajetória da artista. Na
ação performática, cerca de 150 mulheres vestidas de noivas andaram em
cortejo pelas ruas da cidade de São Paulo. Depois dessa primeira
experiência, a artista desdobrou o evento em muitos outros e em diversas
cidades latino-americanas e europeias. A denúncia das performances
também é redentora, uma vez que algumas participantes se conscientizam
dos abusos sofridos e buscam libertar-se dos seus agressores.
Já Marcela Tiboni traz a materialidade da violência representada pelas armas. A instalação Arsenal,
2014, é composta de artefatos feitos de madeira e fogos de artifício.
Apesar dos protótipos não terem balas ou gatilhos, eles estão munidos de
pólvora e preservam a potencialidade do disparo. Metralhadoras,
revólveres e outras diferentes armas estão ali acessíveis ao público.
Isto porque a ideia é que o espectador passe seus limites e manuseie as
armas. Nessa relação íntima, as armas remetem às sensações, reações e
memórias, tanto em sua extensão de coação e violência, quanto em seu
desejo de possuir um objeto cuja potência escapa ao controle. A natureza
do sentimento que uma arma engatilhada dá ao seu detentor torna-se o
grande questionamento da artista: quais são suas reações frente ao poder
que uma arma lhe atribui? No fundo, a ação de manipular as armas pode
despertar para a reflexão sobre si e sobre o “outro” – alvo de sua
ameaça.
As artistas abordadas até aqui denunciaram, despertaram para a
reflexão e impulsionaram para o combate das “pequenas” violências,
especialmente àqueles dirigidas às mulheres, à conduta sexual e social.
Paralelamente, Ana Teixeira, na ação Dar-se como coisa que ouve: afetos de sonoridade na obra escuto histórias de amor,
realizada entre os anos de 2005 e 2012, coloca total potência na
atitude. A artista sentou-se em uma cadeira nas ruas de diferentes
cidades com uma cadeira vazia ao seu lado e uma placa que dizia “Escuto
histórias de amor”. Para a artista, o foco não era o registro ou a
coleta de histórias, era escutar o outro; o doar-se por um tempo e ser
ouvinte. No cerne da ação, o respeito às histórias dos outros, de certa
forma, denunciando o quanto o ignorar o outro é comum e torna-se uma
“pequena” violência.
Por fim, vimos que as poéticas atuais permitem a reflexão sobre o
exercício do poder e da violência, além de proporcionarem a leitura de
um cenário pós-metanarrativas centrado na dimensão do íntimo, do
pessoal; onde vítimas e algozes são próximos e transmutam-se; onde as
“pequenas” violências minam as potencialidades dos indivíduos e grupos
sociais. Elas não nos salvam! Elas podem ser inspiração, meio e discurso
do fazer artístico, mas mesmo sendo veladas são combatidas. As artistas
respondem às demandas de seu tempo; exercem a crítica no nível das
micropolíticas. Cabe à arte sempre nutrir a potência de transformação,
assim como sempre existirá o forte propósito de buscar relações entre
poéticas e contexto social, inscrevendo uma nova história.
Referências
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. Tradução Rodinei Nascimento, São Paulo: Cosac & Naify, 2006, 320p.
DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte. A Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
[1]Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, 1969. Na crônica, a escritora enfatiza o diálogo entre duas personagens. Nele, a discussão sobre o hábito de comer galinha ao molho pardo, visto como uma pequena violência que poderia redimir-nos das grandes barbáries.
[2] Adota-se “minorias” como sendo grupos marginalizados devido aos aspectos econômicos, sociais, culturais, físicos ou religiosos.
[3] As metanarrativas são um discurso que, a partir da elaboração de um telos definido sobre o curso da história, engendra relações lógicas entre a pesquisa, a filosofia, a política e a arte, conferindo a essas esferas um sentido unificado (LYOTARD, 1998).
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* Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e membro da ABCA
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/pequenas-violencias-na-arte-contemporanea/
Imagem da Internet
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