domingo, 31 de março de 2019

CORAÇÃO E RAIVA


Michel Maffesoli*
 
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                  Em nosso progressismo dominante, achamos difícil aceitar que as eras se  sigam e não sejam semelhantes. Mentes agudas notaram corretamente o fim da era das revoluções (Eric Hobsbawm). Se soubermos perceber, com alguma lucidez, a arquitetura das sociedades contemporâneas, podemos dizer que estamos testemunhando a era das revoltas populares. É o que as elites entendem. Muito simplesmente porque o poder do povo, espinha dorsal irreprimível, está zombando do pode político. Seja qual for a sua cor. Essa reação carrega certa brutalidade. Mas não é esse o caso toda vez que uma mutação fundamental ocorre? É cansativo ouvir todas essas belas almas midiáticas levantando-se em coro, o coro das virgens amedrontadas, contra a violência, injustificável, é claro, dessas revoltas.

                  Esqueceram-se do que se sabe por tradição, a sabedoria popular que diz: não se faz omelete sem quebrar ovos. Em termos mais eruditos, esqueceram daquilo que Michel Bukanin repetidamente observou: “O prazer da destruição é ao mesmo tempo um prazer criativo”.  Se o progressismo, peculiar à modernidade, é dramático – tudo tem um solução, uma saída possível – a pós-modernidade vê o retorno do trágico, que remete a uma aporia, ao sem solução. Daí a dose de violência inerente ao “sentimento trágico da existência”. Ora, na contramão de uma realidade raquítica, em oposição a um princípio essencialmente econômico de realidade, cujo “poder aquisitivo” é o alfa-ômega, coração pulsante do sistema, as revoltas populares são estruturalmente uma perpétua “busca pelo Graal”, uma busca espiritual.

                  Pode parecer um tanto paradoxal consultar a inteligência do coração. Horresco referens! Isso chama atenção quando concebemos a inteligência apenas em sua forma racionalista. Na minha crítica ao “mito do progresso” de 1979, falei de uma casta tecnocrática, com suas variantes intelectuais ( agora se diz experts), política, jornalística, etc. Essa casta é, portanto, incapaz de entender que o interesse do povo se exprime melhor nas suas preocupações espirituais do que políticas. Simplesmente porque essa casta, em seu racionalismo mórbido, apesar de ser democrática, é nada menos que demofílica. 

                  As eternas ladainhas sobre valores republicanos e seus fundamentos democráticos mal dissimulam o vanguardismo elitista. Todos esses progressistas, em seus vários partidos, de direita ou de esquerda, querem revolucionar, reformar ou preservar em nome do povo. Mas não aceitam que o povo aja por conta própria. Essa pseudointelecualidade não pode estar mais superada no seu simplório progressismo como mostram a devastação ambiental que produzem. Não conseguem captar o ar do tempo, aquilo que o filósofo Ortega y Gasset, no seu monitoramento premonitório em “A Revolta das Massas”, chamou de “o imperativo atmosférico” do momento. Por não saber se adaptar à mudança do clima espiritual é que essa casta tecnocrática sofrerá o destino dos dinossauros: perecer. 

                  O mundo moderno está apodrecendo e morrendo. Seus representantes caídos não podem ver que toda transfiguração , pois é disso que se trata, tem uma dose de misticismo. O grande republicano Victor Hugo lembrava que não se pode pensar numa gota de vida sem misticismo. O que ele expressou assim: “Saber, pensar, sonhar. Tudo está aí”. Como qualquer sonho, o misticismo de “coletes amarelos” não necessariamente só deles. Mas expressa um instinto ancestral, que se mostra tanto nas discussões das rodinhas de cada esquina, onde se fala sem parar, mas também nos ataques aos símbolos extremos da sociedade de consumo: lojas e bancos da avenida Champs-Elysées, assim como aos centros do poder estatal. Eles quebram o brinquedo que não podem ter, mas, ao mesmo tempo, freiam a corrida infernal de consumo à qual a modernidade reduziu a energia coletiva. George Bataille descrevera bem  que consumir pode terminar em “se consumir”. 

                  Neste movimento, contrariando os experts que monopolizam a esfera pública, expressa-se aquilo que, na tradição tomista, Joseph de Maîstre, chamava de “direito divino do povo”. Soberania da potência natural que regularmente se faz presente para ativar a memória dos poderes estabelecidos, que são apenas representantes e devem prestar contas ao povo, legítimo soberano do qual tudo emana. Como o velho ditado lembra ( que é inútil traduzir): Omnis autoritas a populo

                  É essa autoridade que volta a ganhar força e vigor. Ela lembra que, como uma verdadeira realeza, a opinião é a rainha do mundo. Os “coletes amarelos” retomam a palavra novamente contra aqueles que, com a arrogância, a autossuficiência e a ostentação que conhecemos, monopolizaram-na até mais não poder. Os comentaristas falam compungidamente para não dizer nada. Mas já não conseguem enganar. 

                  Obcecados pelo econômico, esquecem que é uma crise moral que está em jogo. Não basta mais fornecer um amontoado de respostas tecnocráticas capazes de satisfazer alguns afetados e privilegiados e de tranquilizar uma terceira ou quarta idade sem horizonte. É impressionante a esse respeito ver que a participação no grande “Debate Nacional” foi colorida por “cinquenta tons de cinza”!
                  Em suma, espera-se menos uma resposta formatada do que a capacidade de saber fazer perguntas. Não convence mais um mundo sem dúvidas e cheio de respostas. Simplesmente porque é do inapreensível, do que está em formação, do que está questionado, que se pode aprender o possível de ser compreendido. Ou seja, a partir da vida real. Bachelard lembra em sua meditação sobre o desvaneio: “A nova era desperta a velha. O antigo retorna para viver no novo”. Isto é atual e pode ilustrar esta secessio plebis que são as esquinas contemporâneas. O povo romano, insatisfeito com o destino reservado a ele pelo Senado, que em nada correspondia às origens da República, a res pública que anima o inconsciente coletivo, retira-se para o Aventino.

                  É interessante lembrar que Erasmo em seu “Elogio da Loucura”, recordando essa “época antiga”, observa que não se tentou retomá-la com um discurso de moderação, discurso racional e cheio de boas intenções. Mas, ao contrário, por meio de uma narrativa. Agripa tenta convencer o povo improvisando uma fábula da relação complementar dos “membros e do estômago”. Isso foi eficaz. Diante das insurreições populares, devemos lembrar da importância do corpo coletivo como um todo. O corpo e a menta juntos numa mistura fértil. Esta é a função do mito, lembrar que o corpo social não se alimenta simplesmente do pão, mas precisa de um sonho para garantir-lhe a presença. Para existir.
                  Oxímoro: um corporeísmo místico. É esse oxímoro que a elite não conhece ou não quer entender. O expert não é mais um filósofo seguindo o árduo caminho do pensamento, mas, para usar o termo de Platão, um “filodoxo”. Ele corre, aqui e ali, para não perder nenhuma migalha da “sociedade do espetáculo”. É um elemento do show integrado. E não é mais, portanto, levado em consideração. Não se esqueça disso. É quando não sabemos dizer, com razão, o que é, quando o moralismo, aquilo que deveria ser, toma o controle, que o povo rompe. É também o momento em que os discursos demagógicos nascem, todos moldados com ódio, ressentimento e xenofobia. O desafio não é insignificante. Devemos encontrar as palavras menos falsas para enunciar o “prazer criativo” que, mais ou menos desajeitadamente, está em curso em nossa nascente pós-modernidade. Os lugares-comuns e as várias boas reflexões já não bastam, é preciso ter a audácia e a coragem de um pensamento de alto-mar. Mais uma vez, totalidade do ser, a coragem pode ser, ao mesmo tempo, “coração e raiva”.
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*Professor emérito da Sorbonne, membro do Instituto Universitário da França.
Fonte: Correio do Povo impresso. Caderno de Sábado, 30
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