Leonardo Brant
Cultivar a memória é um ato de cidadania. Conhecer o passado, a partir de diversos pontos de vista, é um direito de todos nós. E também um dever. O Estado deve valorizar todas as formas de preservação e memória, tornando-a viva e presente em nosso cotidiano, auxiliando na constituição de um novo mito fundador, pertencente ao conjunto da população brasileira.
Através da memória se constitui a identidade, o homem “sabe” quem é por outras referências a sua volta. Preservar a memória é uma forma de possibilitar que outras pessoas tenham acesso a informações que serão extremamente importantes para a construção de suas identidades. Não quer dizer que irá se constituir uma identidade fixa com referências estabelecidas, mas sim contribuir com o processo de construção de cada sujeito através da identificação com as memórias preservadas contextualizando com o presente na expectativa de um determinado futuro.
O que reside na máxima “importância da preservação e memória dos nossos bens culturais”, qual é esse grau de importância, o que isso realmente quer dizer sobre, a partir e para a sociedade?
Esse significado guarda tais idiossincrasias. Quer dizer daquilo que é fundamental, porque pertence ao nosso mito fundador, ao conjunto de nosso símbolos existentes, e também porque sobretudo isso nos dá identidade, nos situa, nos localiza. Isso em tempos de globalização, quer dizer desafogamento, respiro, pausa. Em toda pausa, está guardada a próxima ação, já dizia um poeta do movimento dançado. Assim, se faz na memória das coisas: algo que já foi, diz sobre o que é, o que está; nos dá, pelo frescor de algum tipo de reconhecimento (já vi isso em algum lugar!) e identificação (sabe que já pensei isso um dia!), a doce noção de quem somos agora. O tempo, para a memória, não é linear, continuado. É, por assim dizer, em saltos de reconhecimento simbólico. Assim, se não estocamos devidamente nem acessamos nossa memória viva, como dizer onde estamos!
Ainda, pergunta-se: como tecer a teia da cultura se não sabemos o que une os pontos? A memória, de outro modo, é capaz de tecer, entrever, relacionar, se posta a ver e não permanecer escondida ou oculta, por mero devaneio do poder ou pela ausência do poder fundador. Possibilitar projetos que se ocupem da memória é tornar visível nossas estratégias de nos relacionar em sociedade, é abrir a caixa de pandora, mas não de maneira caótica, mas de maneira poética, mas não assim inconsequentemente, mas justamente sabendo cada passo, cada movimento, cada consequência. A quem possa assistir, aqui vale uma referência dançada: “Aquilo de que somos feitos” (2001), Lia Rodrigues, e ainda tantos outros coreógrafos.
Falar de memória é performar nossa vida; assim se fazem os atos de fala (Austin) quando performamos a vida. O segundo aspecto que gostaria de ressaltar sobre a memória é justamente referente a performance da vida: a ordem da cidadania. Porque direitos e deveres são vida, e não aspectos dados a ela. É modo operante, é forma de vida (Agamben). Assim, viver não se limita àquilo que é inerente ou “de qualquer maneira, se vive”, mas sim “só se vive se…”, daí respondemos, direitos e deveres forem postos à mesa, e quem os coloca é a memória, porque só ela é capaz de afirmar que dança é sempre dança, aquele prédio é aquele prédio, e não nos permite esquecer. Não nos é dada a chance de esquecer. Performar para não esquecer, cidadania para não esquecer da vida. A oportunidade de lembrar se torna imprescindível. Ao performar a vida, a memória nos torna responsavéis. Assim, o que afirma-se ser uma ato de cidadania é, de fato, um ato da vida. A memória não é um luxo.
Há dois tipos de amnésia: a retrógrada e a anterógrada. A retrógrada é aquela mais conhecida popularmente, caracterizada pela incapacidade de lembrar fatos anteriores ao trauma que a causou, os fatos antigos. A anterógrada é aquela parecida com a apresentada no filme Memento e caracteriza-se pela incapacidade de lembrar de fatos recentes, posteriores ao trauma, enquanto as lembranças anteriores, os fatos antigos permanecem intactos. Desesperadamente intactos.
Acho que primeiro precisamos identificar o trauma. Qual é o problema da memória brasileira? Quando aconteceu o trauma e qual foi a causa?
Depois, precisamos especificar o tipo de amnésia. Quando eu ouço o termo “mito fundador” associo à amnésia retrógrada imediatamente. E associo todos os projetos de restauração e preservação feitos pelo Estado à tentativas de curar esse tipo de esquecimento. Mas e a memória recente? Será que ela anda boa? Não seria a memória recente tão importante quanto a antiga na constituição da identidade? Assim como no filme Memento, driblar a amninésia anterógrada não poderia ser uma alternativa para alcançar o mito fundador e revisá-lo?
Quanto mais estruturados e desenvolvidos os espaços, museus, livros, acervos, mídias e afins que prezam por manter viva a história cultural da sociedade maior é o reconhecimento que essa tem por eles. Alguns chegam a ser conhecidos mundialmente e tem a capacidade de auxiliar em pesquisas nas mais diversas áreas. São ferramentas essenciais para o conhecimento do passado, principalmente quando tem nele seu foco, servindo apenas como instrumento, tendo a neutralidade como base e interferindo o menos possível na construção de idéias do seu público, deixando para que este sim a partir das informações obtidas crie faça sua conclusão desenvolva seu ponto de vista.
Tornar a população mais consciente é benéfico em qualquer aspecto. Mas as vezes esse processo acontece de forma natural. Percebemos esse movimento dentro de manifestações religiosas, que por fazerem parte do cotidiano de algumas pessoas misturam-se com a sua história, com a sua cultura e com a sua vida, que são mantidas e repassadas pois dentro de muitas religiões manter a tradição é quase que um dogma. Ou nas sociedades com tradição oral, que transmitem o conhecimento através de histórias ou músicas que são passadas de uma geração para outra.
Talvez o mito fundador esteja vivo dentro desse conjunto da população brasileira e o necessário seja somente despertá-lo.
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* texto colaborativo, desenvolvido pelos membros da rede O Poder da Cultura. Coautores: Wagner Ferraz (Porto Alegre-RS), Nirvana Marinho e Badah (São Paulo-SP) e Kika Pereira (Brasília-DF).
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