JOÃO PEREIRA COUTINHO*
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O feto só é vida quando somos capazes
de imaginar uma vida para e com ele;
vida passa a ser uma opção
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24 DE AGOSTO
AS DISCUSSÕES sobre o aborto despertam o poeta que há em nós. Uma amiga disse-me hoje que era favorável ao aborto livre porque só existe vida, ser humano, "pessoa", quando existe um nome.
Entendo a metáfora: o feto converte-se em vida quando somos capazes de projetar uma identidade nele. Quando o feto deixa de ser feto e passa a ser, sei lá, Maria ou Manuel. Quando é, no fundo, desejado.
Em silêncio, ainda contemplei as vantagens de uma legislação que consagrasse essa espécie de "validade onomástica": os pais evitavam dar nome ao filho até os 12 ou 13 (anos, não meses) e esperavam para ver.
Se ele fosse um adolescente típico, com maus modos e péssima higiene, seria sempre possível despachar a "coisa", a inominada "coisa", para o outro mundo. E por que não?
Se o feto só é vida quando somos capazes de imaginar uma vida para ele e com ele, a própria noção de "vida humana" deixa de repousar nas mãos do mistério (evitemos referências ao patrão lá de cima) e passa a ser opção de cada um.
Como, na verdade, já é: podemos mascarar a discussão sobre o aborto com quilos de retórica social, feminista, criminal ou sanitária.
Mas a "liberalização do aborto" parte de uma atitude filosófica que consiste em "privatizar" a noção de vida humana.
Para uns, é Maria. Para outros, é um amontoado de células (benignas) que se remove como se removem as malignas. Caso encerrado.
27 DE AGOSTO
Um restaurante em Berlim que serve carne humana? Desconfiei. Acertei. Era piada, revelam os jornais. A Alemanha é pródiga em horrores mil, mas não existe restaurante canibal nenhum para cozinhar pratos de inspiração wari. Muito menos disposto a receber braços ou pernas de doadores beneméritos.
Pressinto alguma desilusão entre leitores "gourmet". Mas a inquietação teórica, com ou sem esse restaurante, mantém-se: será legítimo o canibalismo?
Montaigne, no século 16, dizia que sim, desde que a matéria-prima já estivesse morta. E se eu já posso legar o meu corpo para a ciência, por que não para a panela?
Boa pergunta. Pena que, na confusão mental em que vivemos, não haja uma resposta vigorosa para ela.
Como, por exemplo, lembrar os presentes que a forma como devemos honrar os ausentes não passa por assá-los no espeto. Isso seria uma forma de desrespeito, não necessariamente pelos mortos mas pela sensibilidade e humanidade dos vivos.
A exata sensibilidade e humanidade que nos impede de passear com cadáveres no shopping; de transformá-los em cabides ou bibelôs para a casa (depois de empalhados, claro); ou de usá-los para praticar tiro ao alvo, mesmo que todas essas fossem vontades expressas do defunto.
O episódio anedótico do restaurante berlinense serviu, ao menos, para lembrar que uma sociedade incapaz de respeitar os mortos é incapaz de se respeitar a si própria.
29 DE AGOSTO
Coincidências: a BBC informa que o vaso sanitário de John Lennon está à venda por 9.500 libras. O "Sunday Telegraph", no mesmo dia, informa que o vaso sanitário do escritor J.D. Salinger também. Por US$ 1 milhão. Como explicar essa diferença de preços?
Não quero ser acusado de preconceitos culturais, mas sempre disse que existe uma superioridade evidente da grande literatura sobre a música pop.
E, além disso, o vaso de Salinger foi usado durante meio século; o de Lennon, durante três anos. Deve ser incomparavelmente mais transcendente para o órfão respectivo sentar onde o patriarca teve os melhores pensamentos durante meio século, e não durante míseros três anos.
E digo "órfão" com todo o respeito: o historiador Paul Johnson escrevia em tempos que a adoração que dedicamos às "celebridades" é uma corruptela do tipo de adoração que os nossos antepassados dedicavam a santos, beatos e outros tipos de iluminados.
Johnson está certo. Tão certo que os peregrinos de hoje até imitam os peregrinos de ontem na busca desesperada de uma relíquia. Ontem, um pedaço de tecido. Hoje, um vaso sanitário. Amanhã, quem sabe, a língua de Madonna, enfiada num recipiente de formol, como a língua de santo Antônio de Lisboa que vi na Itália, anos atrás.
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* Frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, acabando por se licenciar em História (na variante de História da Arte), pela Universidade do Porto. Prossegiu estudos na Universidade Católica Portuguesa, onde se doutorou em Teoria e Ciência Política Contemporânea e é, actualmente, Professor Convidado. Escritor. Colunista da Folha.jpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha online, 31/08/2010
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