segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Fé e política: de novo?

Jung Mo Sung *

Eu sou de uma geração de cristãos que foi marcada intensamente pelo debate sobre "a fé e a política". Na década de 1980, ser um cristão que assumia a tarefa de anunciar a boa-nova de Jesus ao mundo e de "construir" o Reino de Deus era sinônimo de discutir e fazer política. Como diziam os teólogos e assessores das pastorais de então, a política é o campo da luta pelo bem comum e justiça social e as comunidades cristãs devem participar dela.

Falo disso não por um saudosismo, que sempre tende a pintar o passado melhor do que foi e assim vê o presente pior do que é. Mas porque penso que devemos -ou podemos- aproveitar as semanas que precedem a eleição e refletirmos sobre a fé cristã, o compromisso com justiça social e a política.

Eu penso que um dos diversos equívocos que cometemos no passado, no meio de boa vontade e de muita doação e luta, foi o de confundir os distintos campos que compõe a relação entre a fé, o compromisso social e a política. Muitos de nós pensávamos que não há diferenças qualitativas entres eles. Ser cristão, membro de uma comunidade de fé, significava assumir o compromisso de "construir" o Reino de Deus. E a "construção" do RD passava necessariamente pelas lutas sociais em favor dos pobres; e todas as lutas eram vistas como política, sem uma distinção clara entre lutas sociais e a ação política, ou entre o campo da sociedade civil e a esfera da sociedade política. Assim, a fé e a política eram vistas como inseparáveis e, em alguns lugares, como indistinguíveis. Por isso, muitas vezes se pensava que falar de política era já anunciar o evangelho.

Eu continuo com a convicção de que ser cristão, ser seguidor de Jesus de Nazaré, é anunciar a boa-nova (evangelho) aos pobres, a boa-nova da libertação de todas as formas de opressão que pesam sobre excluídos/as de todo o mundo. E não se pode fazer isso sem tomar parte nas lutas e/ou ações sociais, ao lado das vítimas de sistemas econômicos, políticos, sociais e culturais opressivos e excludentes.

Contudo, devemos tomar cuidado para não cair no erro de não perceber as diferenças que existem nas dinâmicas e nas identidades entre as comunidades de fé, lutas sociais e o campo da política e Estado.

Essa confusão está bastante presente na sociedade e também no interior das comunidades cristãs "engajadas" nas lutas sociais. Em grande parte, por causa da concepção de política como "bem comum" tão difundida nos inúmeros cursos e materiais espalhados Brasil afora. Como as comunidades devem lutar pelo bem comum, essa luta se dá majoritariamente no campo social e se entende a política como a busca do bem comum, parece que há um caminho que liga esses três campos sem grandes problemas.

Esse tipo de confusão pode trazer sérios problemas práticos. Um deles se dá a partir da noção do "bem comum". Como a discussão sobre o "bem" se dá no campo da ética, as igrejas cristãs costumam associar o debate e a luta pelo "bem comum" com a moral. No caso específico da teologia católica clássica, no campo da moral social. Nos seminários e nas faculdades de teologia, a questão dos problemas sociais, da política e a busca do bem comum é discutida nas aulas da moral social ou nas de doutrina social da Igreja. Isso pode gerar dois tipos de problemas. Primeiro é a desvalorização da questão social, pois não faria parte da "teologia sistemática" que discute as questões fundamentais da fé. O compromisso e as lutas em favor das vítimas e dos pobres seriam no máximo uma aplicação da fé, mas não uma parte essencial da identidade de ser cristão e da reflexão teológica.

O segundo é a tendência de "moralização" da discussão e ação política. Na medida em que não se percebe as especificidades do campo político (no sentido estrito relacionado ao Estado), não se discute as questões ligadas às instituições e à estrutura do Estado. Uma boa parte do debate se dá em torno da "honestidade", da "santidade", dos candidatos e das acusações de corrupção. (Isto sem falar em quão católico ou cristão é o candidato e o quanto vai defender os interesses ou as doutrinas morais da Igreja. O que é um grande equívoco e uma tentativa de voltar ao tempo da cristandade.) É claro que essas questões de honestidade e competência são também importantes, mas o que quero chamar atenção é que não se constrói uma sociedade mais justa e uma nova ordem político-econômico-social reduzindo o debate às questões morais ou a apelos morais. Se os apelos morais e a boa vontade fossem suficientes para criar um mundo mais justo, um mundo já teria sido "convertido" há séculos atrás. É preciso recriar o Estado e o sistema econômico.

Um efeito colateral destes problemas pode ser visto na ausência de uma séria reflexão teológica sobre o Estado na teologia latinoamericana. (A TL produziu uma consistente crítica teológica ao mercado/economia; e a filosofia da libertação, especialmente Enrique Dussel, tem produzido uma filosofia política da libertação).

Eu penso que devemos aproveitar esta época de eleição para rediscutirmos a questão da relação entre a fé e a política. Precisamos aprender com os erros do passado e com as novas reflexões teóricas e práticas que estão surgindo no presente. (a continuar)
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* Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor, com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário com os pobres", Paulus.
Fonte:Adital online, 20/08/2010

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