segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O dever humanitário do asilo e do refúgio

Luiz Paulo Barreto*


Nos últimos dias, vários comentários têm sido feitos sobre o gesto do presidente Lula de oferecer abrigo humanitário à iraniana Sakineh Ashtiani, condenada à morte por apedrejamento em razão de adultério. Esse ato do presidente é comum nas relações internacionais e perfeitamente normal no direito internacional. A Constituição enuncia, logo na abertura, um valoroso princípio, segundo o qual os direitos humanos devem prevalecer nas relações internacionais de nosso país. Tal afirmação consagra entre nós dupla obrigação: a de respeitar e fazer respeitar, em todas as circunstâncias, os instrumentos internacionais de proteção da pessoa humana.

Ao contrário do que se possa imaginar, o cumprimento dessas obrigações não afeta, no âmbito internacional, a ideia de soberania, cujo exercício encontra seus limites nos direitos essenciais que emanam da natureza humana. De nenhuma maneira trata-se de interferência nos negócios internos do Irã. O que fez o governo brasileiro foi, simplesmente, oferecer abrigo, caso o Irã julgue que — por questões humanitárias ou políticas — a pena de morte pode ser substituída pela de banimento, também indesejável, mas preferível à pena capital.

O simples oferecimento de refúgio chama a atenção para o caso e constitui gesto puramente humanitário. Louvável a atitude. A diretora executiva da Foundation for Iranian Studies, em entrevista, disse: “A oferta do presidente Lula sem dúvida tem efeitos muito positivos para Sakineh. Isso terá impacto na decisão deles (governo iraniano). (Independentemente) se Sakineh poderá ou não deixar o Irã, o mais importante é que a oferta brasileira fez o máximo possível para salvar sua vida”.

Da mesma forma, o pesquisador da Anistia Internacional, especializado em Irã, Frewery Dyke, cidadão britânico, afirmou, também em entrevista, que a oferta do Brasil “foi muito útil para ajudar a mostrar ao Irã a preocupação da comunidade internacional e certamente teve impacto em desdobramentos como a possibilidade de revisão do processo de Ashtiani pela Suprema Corte iraniana...”

Pergunta-se se o Brasil possui informações detalhadas do caso a ensejar a oferta de abrigo. Ora, não vislumbro necessidades de informações detalhadas se o caso trata de condenação à morte por apedrejamento. Que outra informação poderá ter relevância suficiente para afastar a generosa e humanitária oferta brasileira? Não se discute a soberania iraniana. Não se discute se os tribunais daquele país erraram ou acertaram em sua decisão. Apenas tenta-se impedir que uma mulher seja morta de maneira brutal por ter praticado adultério.

O direito internacional admite esse tipo de apelo humanitário, principalmente quando um país o coloca para defesa de seus nacionais ou diante de execução de pena capital. O movimento contemporâneo em favor da proteção à pessoa humana fez com que emergisse no cenário internacional uma série de obrigações erga omnes, que encontram no direito internacional humanitário e no direito internacional dos direitos humanos fundamentos para a formação de verdadeiro direito à assistência humanitária e a correspondente obrigação de prestá-la.

Registre-se, a propósito, que no plano regional interamericano, a Convenção sobre Asilo Territorial assegura o direito do Estado, “no exercício de sua soberania, de admitir dentro de seu território as pessoas que julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito, nenhum outro Estado possa fazer qualquer reclamação”. E que, nos precisos termos da Resolução nº 2.314 da Assembleia Geral da ONU, a concessão de asilo é ato pacífico e de caráter humanitário, razão pela qual não pode ser considerado inamistoso.

Por isso mesmo, os que buscam apoio no princípio da não ingerência internacional em assuntos internos para criticar a asserção do direito à assistência humanitária no caso que envolve a oferta de asilo ou refúgio pelo governo brasileiro a Sakineh Ashtiani, esquecem-se de que os Estados, sem exceção, possuem interesse na salvaguarda do ser humano.

O papel exercido pelo presidente da República nesse episódio, longe de afetar as cordiais relações existentes entre os governos de Brasília e Teerã, tem por finalidade a implementação de importantes obrigações convencionais de proteção internacional da pessoa humana, cujo cumprimento não deve encontrar limitações no plano normativo. Trata-se de dever humanitário.
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* Ministro de Estado da Justiça
Fonte: Correio Braziliense online, 16/08/2010

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