sábado, 14 de agosto de 2010

Um crítico à voga atual de falar mal de deus

O pensador britânico Terry Eagleton,
 de quem estão saindo no Brasil dois novos títulos,
 investe contra o ateísmo da moda e diz que o desafio do Ocidente,
 hoje, é um ''inimigo sem rosto'': o Islã

Evite perguntar ao filósofo e crítico literário inglês Terry Eagleton o que ele pensa da revolução tecnológica que atravessamos. Ele pode pensar que tem aí algo pessoal. Nascido em Salford, na região de Manchester, mas descendente de irlandeses, Eagleton não navega na internet, não tem email, não carrega celular e usa o computador só como máquina de escrever. Para se comunicar com alunos e editores, escreve cartas. Se descobrisse as facilidades do "tempo real", seus inimigos acadêmicos estariam fritos: Eagleton adora uma polêmica e é bom na artilharia verbal.

Seu alvo no momento é o biólogo evolucionista Richard Dawkins, autor de Deus - Um Delírio (Companhia das Letras, tradução de Fernanda Ravagnani). Em sua recente passagem pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Eagleton alfinetou-o à vontade diante do público. Mas nesta entrevista, vê-se que não é bem Dawkins o alvo das críticas, mas um ateísmo que virou voga literária, com vários representantes, e que não responde a uma pergunta crucial: afinal, por que Deus entrou na agenda?

Católico desde o berço e marxista desde a escola, Eagleton se debruça sobre esta questão em O Problema dos Desconhecidos - Um Estudo da Ética (Civilização Brasileira), que chega agora às livrarias. "Alguns de meus amigos e leitores ficarão desolados ao me verem desperdiçar meu tempo com a teologia", ironiza o pensador formado nas boas universidades britânicas, a pura tradição "Oxbridge", mas ainda um enfant terrible aos 67 anos. Acha que o grande desafio do Ocidente, hoje, é lidar com um inimigo "sem rosto", profundamente metafísico e exato: o Islã. E que, em vez de desacreditar Deus e fomentar a islamofobia, é tempo de recuperar o melhor das tradições socialistas e judaico-cristãs, gerando pensamento ético. Para quem duvida que um marxista convicto possa se interessar por religião, a contraprova está feita: Eagleton também acaba de lançar no Brasil Jesus Cristo - Os Evangelhos (Zahar), em que discute se seu personagem-central era, ou não, um revolucionário.
O senhor nasceu, cresceu e se formou em ambiente católico. Depois se aproximou do marxismo, que ainda lhe fornece ferramentas de análise. Como combinar Deus e Marx?
Meus críticos dizem que é fácil sair de um extremo para o outro. E digo que o difícil, mesmo, é passar de um para outro, sem cair nas tentações do liberalismo (risos). Quando eu estudava em Cambridge, nos anos 60, me envolvi com a esquerda cristã, e isso tinha a ver com as minhas origens: família irlandesa, de operários, gente que frequentava igreja, então provei um catolicismo radical. O problema é que fomos prematuros. Começamos a fazer barulho quando o Concílio Vaticano 2 estava acontecendo e não tínhamos suporte, nem interlocução. Nós nos antecipamos inclusive à Teologia da Libertação, que vocês conheceram bem na América Latina. Seja como for, essa experiência também acabou influenciando nomes como Alain Badiou, Slavoj Zizek, Jürgen Habermas.

E hoje deixou de existir?
Posso dizer que continuo influenciado por uma teologia que empurra meu trabalho para frente, intelectualmente falando. Porque o discurso teológico é capaz de formular grandes questões. Vem dele meu interesse pelo estudo das tragédias humanas.

Por que as tragédias interessam ao senhor?
Meus estudos me levam a distinguir dois tipos de humanismo: o liberal e o trágico. O humanismo liberal diz que, para que algo ou alguém floresçam, é preciso remover obstáculos. Daí se chega à liberdade, ao progresso, à felicidade. O humanismo trágico é de outra ordem. Operando tanto no plano individual quanto no social, ele promove rupturas e recomposições. Destruir para erguer de novo. Nesse sentido, a crucificação e a ressurreição de Jesus são exemplo de humanismo trágico. Não se trata de mergulhar no desespero pela morte, mas de atravessar esse momento guiado pela fé. Claro, hoje vivemos sob o domínio do humanismo liberal.

São conhecidas suas críticas a Dawkins. Mas eu lhe perguntaria: há uma moda literária de questionar Deus, tal como fazem os escritores Christopher Hitchens, Sam Harris, o próprio Dawkins?
Sim. Mas a pergunta que faço vai além: por que nesse mundo secular, pós-teológico, pós-histórico, pós-metafísico e pós-moderno, passamos a falar tanto em Deus? O que acontece? Por que Deus entrou na agenda?

E o senhor tem a resposta?
Uma resposta possível tem a ver com a emergência do Islã. O Ocidente se vê diante de um "inimigo" que é profundamente metafísico e exato. E isso o deixa desarmado em termos ideológicos, até porque fica complicado para uma civilização materialista, racionalista, relativista e mercadológica, como a nossa, entender como essa "gente sem-rosto" vive e morre pela fé. E fé não é o que move a nossa sociedade. Então, não posso entender esse interesse por Deus como uma questão meramente religiosa, mas dentro de um contexto histórico maior. Se quiser uma resposta rápida, diria que esses autores anti-Deus surgiram em 11 de setembro de 2001. Foi quando Deus entrou na agenda.

Entrou na agenda com data, hora e local?
Mais ou menos. Tomo o 11 de setembro de 2001 como marco da aparição de um absolutismo metafísico que colocou o Ocidente em xeque. Esses autores de que estamos falando sabem que não podem criticar o mundo islâmico da maneira que o fariam em relação ao radicalismo islâmico, mas Hitchens e sua turma colocam tudo no mesmo saco, atravessam a linha divisória entre uma coisa e outra, e alimentam a islamofobia. Na Inglaterra ao menos, ela se instala num espectro político bem definido: vem da direita para o centro, atingindo a produção literária. Acaba sendo disseminada pelos liberais que se dizem defensores da tolerância religiosa, que ironia... A meu ver estamos diante de um novo suprematismo cultural no Ocidente, afinado com o discurso ideológico da guerra contra o terror. E Dawkins, que é um liberal respeitável, inclusive se manifestou contra a intervenção no Iraque, está no fundo contribuindo com a ideologia da guerra, ao investir de forma tão alucinada contra Deus.

E o debate criacionismo X evolucionismo?
Tem a ver com a confusão desses autores. A ideia de Deus não está atrelada ao surgimento do mundo. Quando o mundo começa efetivamente é pergunta para os cientistas, não para os teólogos. Até São Tomás de Aquino sabia disso. Não podemos aceitar falsos embates entre teologia e ciência. Isso tanto é verdade que a maioria dos cristãos aceita a teoria da evolução sem problemas. Mas daí vem Dawkins e diz que os cristãos não aceitam! Sei que ele é bom cientista, sabe comunicar, tem livros importantes, mas é um racionalista old fashion. Pensa o progresso com cabeça do século 19, como se as guerras mundiais não tivessem acontecido, como se não tivéssemos passado por Auschwitz, comete erros embaraçosos ao escrever sobre raças.

Devemos muito à cultura islâmica, mas lhe demos as costas por séculos, no processo de ocidentalização. O futuro prevê a revanche?
Não sou bom de previsões (risos). Mas sempre a melhor imagem de futuro é a da falência do presente. Futuro é o esgotamento do aqui/agora. E profeta não é quem vislumbra o porvir, mas aquele que diz "olha, se você mudar e acertar o passo, vai chegar lá". Por exemplo, Marx foi profético ao apontar as trincas do seu tempo. Ao falar dos meios de produção, não estava só ligado no mundo do trabalho, mas, ao contrário, no tempo de lazer das pessoas. E não é o que nos desafia hoje? Acabei de colocar ponto final num livro sobre Marx em que questiono algumas de suas visões, numa espécie de criticismo positivo. Não é porque Freud, Darwin ou Marx deixaram obras relevantes que estejam imunes à crítica.

Seu livro mais conhecido, Teoria Literária: Uma Introdução, tem várias traduções, foi bem vendido e virou obra de referência. O sr. pensa em nova edição?
Fiz nova edição anos atrás e não tenho planos para outra. Na verdade, estou trabalhando em um livro que retoma algumas questões do Teoria Literária. É curioso: meu livro foi muito mais conhecido no passado do que hoje. Por quê? Vejamos a situação da intelligentsia. Lá nos anos 60, 70, os intelectuais se debatiam com correntes de pensamento, o estruturalismo, o funcionalismo, o pós-estruturalismo, o marxismo, enfim havia uma atmosfera intelectual ambiciosa. Fomos em direção a um tempo pós-teórico e pós-moderno a partir dos anos 80. E ficamos menos ambiciosos do ponto de vista intelectual. Já percebeu como as pessoas não estão interessadas em formular questões fundamentais?

Seria preguiça intelectual?
Não é bem isso. As pessoas formulam grandes questões quando sentem que há chance de mudança lá na frente. Hoje as visões ficaram estreitas e de curto prazo, justamente quando o mundo mais se globaliza. A intelligentsia se retraiu, consequentemente a teoria literária, também. Perdemos o nervo que nos fazia ousar. Meus alunos hoje só se interessam por cultura popular. Ou pela cultura da política, não pela política. Exemplo: são pós-feministas, não querem saber do potencial transformador que o movimento de liberação da mulher teve nos anos 60. Lá atrás discutir sexualidade era algo político. Hoje é cultural.

Afinal, professor, isso é ruim?
Cultura é um jogo de identificações no qual as pessoas até matam ou morrem pelo que acreditam. No Texas caçam e atacam defensores do aborto: isso é político? Não, mas mobiliza a opinião pública. E por que as pessoas não se interessam pela política? Pelo fato de que a política não se interessa por elas. Só que a cultura pode muito bem flertar com o totalitarismo, especialmente se vier a ocupar um lugar que não é seu.

Livros em estante

O PROBLEMA DOS DESCONHECIDOS
Autor: Terry Eagleton
Tradutora: Vera Ribeiro
Editora: Civilização Brasileira
(462 págs., R$ 54,90)

JESUS CRISTO - OS EVANGELHOS
Autor: Terry Eagleton
Tradução: José
Mauricio Gradel
Editora: Jorge Zahar
(240 págs., R$ 36,90)
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Reportagem de: Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo

Fonte: Estadão online, 14/08/2010

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