Marina Nemat*
Arquivo pessoal
No momento em que escutei sobre Sakineh e sua sentença de morte, pude sentir o medo dela e cada célula de meu corpo tremeu. Eu pude literalmente provar de suas lágrimas. Hoje, se alguém quisesse me julgar por minha aparência, provavelmente decidiria que Sakineh e eu não temos muito em comum. Seria um erro. É verdade que vivo no Canadá, visto roupas ocidentais, uso maquiagem e sou uma escritora bem-sucedida. No entanto, assim como Sakineh, nasci e cresci no Irã e, como ela, fui presa e condenada à morte na República Islâmica. Um milagre, ainda que a um preço alto, me salvou e tornou possível que eu levantasse a voz contra o que ocorre com Sakineh e com outras pessoas que sofrem nas prisões iranianas parecidas com túmulos, aguardando uma morte terrível.
Fui presa em 1982, aos 16 anos. Eu era uma garota católica, de família cristã, minoria no Irã. Antes da Revolução Islâmica de 1979, levava uma vida “normal”. Meu pai era professor de dança de salão e minha mãe, cabeleireira. Frequentei uma escola muito boa e queria me tornar médica. Tínhamos um chalé no Mar Cáspio, onde eu passava os verões festejando com amigos, bronzeando em biquínis pequenos e lendo obras de escritores ocidentais e iranianos. A Revolução mudou tudo. A dança, a música, as roupas ocidentais e a literatura foram declaradas satânicas e banidas. Na escola, a maior parte de nossos professores maravilhosos foi substituída por jovens fanáticas, muitas das quais integravam a Guarda Revolucionária. Essas jovens não estavam qualificadas para ensinar. Foram contratadas para implementar a cultura da Revolução Iraniana e realizar uma lavagem cerebral. Ainda que a Revolução tenha prometido às pessoas liberdade e democracia, não foi isso que ocorreu.
Na escola, fiquei farta da propaganda que incutiam em nós. Liderei uma greve de três dias, escrevi artigos contra o regime islâmico e participei de passeatas. Não fazia ideia de que minha indignação pudesse me levar à prisão. Fui capturada na minha casa, em Teerã, em janeiro de 1982, e levada para a notória Prisão Evin, ao norte da cidade. Havia milhares de prisioneiros lá — 90% com menos de 18 anos.
Como a maioria dos presos, fui torturada. Meus dois inquisidores tiraram minha roupa e me amarraram a uma cama de madeira. Um deles, Hamed, chicoteou as solas dos meus pés. A dor era indescritível. A cada açoite, a agonia explodia dentro de mim. Sem andar, fui jogada em uma cela pequena e escura. Uma Corte me condenou ao fuzilamento.
Outro de meus inquisidores, chamado Ali, salvou minha vida e reduziu a pena para prisão perpétua. Mas houve um preço: ele exigiu que eu me convertesse ao islã e me casasse com ele. Se eu recusasse, meus pais e meu namorado seriam presos. Cedi e me tornei sua mulher. Passei noites com Ali na solitária. Cerca de 15 meses após nosso casamento, ele foi assassinado por uma facção rival do governo. Sua família me libertou e fui para casa, depois de dois anos, dois meses e 12 dias em Evin.
Muitos amigos perderam suas vidas naquela prisão horrível. Sonho com eles todas as noites. Eu perdoo os que me torturaram, mas creio ser errado perdoar a República Islâmico do Irã, que cria torturadores e derrama sangue. O senhor Ahmadinejad tem a chance de salvar uma vida. O Deus no qual eu creio não clama por vingança. E quanto a seu Deus, senhor Ahmadinejad?
Se eu puder trocar minha vida pelas de poucos prisioneiros, incluindo Sakineh e sete líderes da comunidade Bahá’í no Irã, eu o farei. Mas espero que o senhor Ahmadinejad deixe essas pessoas irem, sem exigir sangue. O mundo precisa de misericórdia.
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*Marina Nemat, iraniana, é escritora e ex-condenada à morte
Fonte: Correio Braziliense online, 18/08/2010
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