Entre a Revolta da Vacina e a campanha contra a H1N1
vai um século de autoritarismo e
obsessão sanitária
Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
Nicolau Sevcenko vive entre lá e cá. O Aliás teve a oportunidade de pegá-lo cá nessa quinta-feira, às vésperas de sua volta a Harvard, onde dá aula de história e cultura da América Latina e do Brasil, em particular. O historiador acabara de lançar pela CosacNaify nova edição de A Revolta da Vacina, clássico desde sua primeira versão, de 1984. A Revolta é fonte de referência cruzada: envolve história social, urbanismo, antropologia, saúde pública. E está mencionado entre os 75 livros produzidos por professores da USP mais citados em trabalhos acadêmicos.
Do Sevcenko curricular também é possível dizer que foi professor da PUC-SP, da Unicamp e da Universidade de Londres, autor ainda de Literatura como Missão, Corrida para o Século XXI e O Renascimento, entre outros. Já do Sevcenko emotivo há um carretel de aulas cativantes, seu cuidado com a população flutuante de 12 gatos e 2 cachorros que abriga na casa do bairro paulistano do Belém e, mais à mão, o próprio Revolta da Vacina, onde conta os bastidores da maior convulsão social do Rio de Janeiro, ocorrida em 1904.
No espeto. Sátira do início da Primeira República criticava o desmando do governo que levou à rebelião contra a Lei da Vacina Obrigatória
Pelas contas oficiais, a onda violenta de insatisfação popular durante a campanha de vacinação contra a varíola resultou em 30 mortos, 110 feridos, 945 presos e 461 deportados. Imaginam-se, na verdade, milhares de óbitos, considerando, como diz o autor, "os que foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos".
No livro, Sevcenko parte da rebeldia contra a imunização obrigatória para revelar tensões históricas profundas numa República que buscava se consolidar. Abaixo e adiante, 30 anos após a erradicação da varíola, com a dengue tipo 4 e o sarampo batendo à porta e a OMS com a credibilidade ameaçada, ele faz paralelos entre aquele tempo e este, mostrando por que motivo o sabor do seu livro continua amargo.
Em A Revolta da Vacina, o senhor menciona que a postura de Oswaldo Cruz quanto à erradicação da varíola em 1904 recebeu o epíteto de "ditadura sanitária". Classificaria da mesma forma iniciativas sanitárias atuais como a campanha de vacinação em massa contra a H1N1, doença que a OMS acaba de reconhecer como não pandêmica?
Numa perspectiva mais genérica, há uma semelhança forte entre ambas que vem de certa obsessão sanitária, o desdobramento de um clima político de desconforto com a mudança social em larga escala. Naquele primeiro momento republicano, a proposta do regime era construir uma sociedade liberal democrática baseada no trabalho livre. A maneira como a liderança encarou essa transição foi optar pela absorção de uma enorme massa de trabalhadores estrangeiros. Evidentemente, a entrada dessa população no cenário político trouxe desconforto para as lideranças conservadoras. Elas se achavam invadidas por pessoas que, àquela altura, ávidas de oportunidades e de participação social e política, se organizavam sobretudo por meio de sindicatos, de grupos de ajuda mútua e de comunidades anarquistas, que confrontavam vivamente as autoridades em reuniões, protestos, comícios, passeatas, greves consecutivas. Existe a tendência de estigmatizar os novos personagens como ameaça à sociedade em vários níveis - o mais neutro é o médico-sanitário. Dizia-se que era uma gente sem hábitos higiênicos, que vivia em promiscuidade, e, portanto, era foco potencial de todo tipo de doença, de endemia, de pestilência, que pediria campanhas maciças de teor sanitário visando, em última instância, a assumir o controle sobre essas comunidades, realocá-las espacialmente e colocá-las sob vigilância.
Quem estaria estigmatizado dessa forma hoje em dia?
Hoje, a desregulamentação criada pela globalização distribuiu as práticas econômicas pelos quatro quadrantes do globo de tal maneira que provocou intenso movimento migratório. E esse movimento foi visto, uma vez mais, como ameaça do ponto de vista das autoridades conservadoras. Uma maneira de você continuar estigmatizando essas populações é atribuir a elas o risco de serem agentes de contágio e, portanto, acentuar medidas sanitárias que ampliem os modos de controle da autoridade sobre esses fluxos humanos. Esse é um dado da questão. Outro é o peso imenso das corporações da indústria farmacoquímica e dos lobbies influenciando as políticas públicas para que produzam gigantescas encomendas dos seus produtos de ponta, particularmente os de custo mais elevado. Eles se transformam em objetos do desejo na medida em que se criam campanhas públicas de pânico que provoquem uma pressão social pela difusão de medidas sanitárias por parte da autoridade. As duas coisas se completam nesse contexto da globalização, repercutindo situação que já vem desde o início do século passado.
Mas há quem se negue a se submeter à campanha alegando temor de ser inoculado com o vírus, por exemplo.
Percebi essas reações de maneira dual porque estava parte do tempo no Brasil e parte do tempo nos EUA. Vi situações semelhantes aqui e lá. Havia certa indignação sobre o porquê de a população não estar respondendo, se o problema foi de comunicação, se foi de distribuição. Na verdade, acho que é muito mais um ressentimento generalizado em relação à prática difusa de medicalização do cotidiano. Quando criança, acho que tomei duas ou três vacinas até me tornar adulto. Hoje qualquer criança, até os 12 anos de idade, recebe pelo menos uma dúzia delas. É evidente que isso causa receios na comunidade porque essas vacinas às vezes provocam reações não necessariamente previsíveis. Há uma sensação de insegurança, as pessoas se sentem manipuladas em contextos nos quais não têm o controle completo do conhecimento e da informação sobre o que está acontecendo. Em 1904, todos sabiam que a varíola era uma tragédia devastadora e, no entanto, embora quisessem se livrar do risco da doença, não tinham a menor ideia do que estava envolvido no processo de vacinação, àquela altura ainda em estágio experimental. Portanto, os dois lados, governo e povo, tinham diferentes disposições: um pretendia a submissão incondicional; outro estaria disposto a ser imunizado desde que a negociação fosse conduzida com maior respeito e igualdade entre as partes.
A Revolta da Vacina marcou as políticas públicas de saúde?
Essas questões ainda não foram suficientemente equacionadas. A relação da medicina com a população, e da ciência e da engenharia também, tem sido marcada por viés francamente autoritário e desigual, em que o povo se mantém mais como coletividade passiva diante de uma autoridade que decide tudo, sem consulta nem comunicação. É isso que se coloca, por exemplo, quanto à construção das hidrelétricas, cujo impacto ambiental não é suficientemente avaliado. Ou quanto à expansão das cidades envolvendo a alocação das pessoas em margens de rios ou de encostas.
Mas existiria a possibilidade de uma revolta popular como a daquela época?
A revolta de algum modo serviu de alerta para a autoridade pública evitar que algo semelhante viesse a acontecer. Que tipo de política se adota hoje para conter, evitar ou pelo menos neutralizar potenciais reações de grande impacto social? A política social remediadora. A maneira como a autoridade controla a população carente ocorre sobretudo nos termos de uma negociação, uma negociação na base de pequenos favores, que não vai resolver a situação, mas neutralizar seu potencial crítico. No caso das populações que habitam encostas ou áreas de mananciais, a política não tem sido de realocá-las para outras regiões com todas as garantias de acesso a emprego e condições dignas de vida, mas fazer pequenas concessões a cada ciclo eleitoral. Num momento você dá parcialmente uma rede de luz, dá parcialmente uma rede de fornecimento de gás, dá parcialmente estrutura de urbanização, de segurança com policiamento... Claro, as pessoas vão se sentir beneficiadas por uma ligeira melhora na sua qualidade de vida e ser eternamente gratas, enquanto os políticos ficarão na posição heroica de construir para si uma massa cativa de eleitores. Em paralelo, se cria uma estrutura burocrática vocacionada para atividades assistenciais, seja em nível local, estadual ou federal ou mesmo de ONGs, que vai se tornando cada vez maior, de forma que todos os envolvidos acabam se beneficiando. No entanto, o problema central, que é acabar com a carência e com a desigualdade, nunca é resolvido. Porque, se assim for, o conjunto do sistema colapsa. A desigualdade e a pobreza são estruturas de sustentação desse sistema político lastreado no voto obrigatório.
De que maneira o voto obrigatório embasa esse sistema?
A atuação da atividade pública é pendular. Às vezes ela segue no sentido puramente repressivo, como no caso da Revolta da Vacina, ou vai para o lado assistencialista, como nas populações alocadas em áreas de risco. O que determina que siga numa direção ou noutra? A natureza do público alvo. Se ele não tiver direito ao voto, como na Primeira República, então você pode exterminá-lo. Durante a revolta, quem não podia demonstrar emprego e endereço fixo, numa cidade em que ninguém praticamente tinha isso, era arrastado para a Ilha das Cobras, despido, espancado, chicoteado e jogado em navio que o levasse para as profundezas da Amazônia, sem nenhuma assistência, sem nenhum cuidado com seu destino, para que simplesmente desaparecesse. Hoje o quadro é diferente: as pessoas que incham as cidades com rapidez exponencial constituem massa de eleitores. E, portanto, o tipo de tratamento que convém ao sistema político é o de concluir uma situação clientelística pela qual essas populações se tornem massa cativa de votos de grupos específicos do partido X ou do partido Y, pouco importa qual.
Em 2009, cientistas da USP fizeram análises genéticas de amostras de dois pacientes de Manaus e concluíram que se tratava do tipo 4 da dengue, esse que foi identificado em três pessoas de Boa Vista nessa semana. O ministério não reconhece o trabalho, mas os pesquisadores disseram que, na época, havia epidemia no Rio e politicamente a pesquisa abalava ainda mais a situação. Trata-se do movimento pendular novamente?
Sim. Quando a política sanitária permite exercer a autoridade, a difusão de notícias sobre riscos e atividades de intervenção visando a sanear são bem-vindas e produzem as melhores manchetes. No entanto, se aparecem notícias sobre situações de descontrole ou de uma potencial epidemia que possa estar se alastrando e se traduzir em pânico generalizado, isso tem de ser evitado a qualquer custo. O que prevalece aí não é a preocupação técnica de resolver problemas, mas o grau de repercussão positiva ou negativa de uma ação ou outra. Isso ficou patente na ditadura militar, quando houve em São Paulo uma epidemia de meningite. A ditadura usou todo o seu repertório de instrumentos repressivos e censórios para evitar que houvesse qualquer manifestação na imprensa ou na opinião pública sobre a epidemia que, de fato, devastava a cidade. Isso é um exemplo extremado num momento também extremado, mas há algo semelhante no que você acaba de anotar: quando a informação não favorece o sistema, ele nega, renega, sonega, conforme os seus recursos de momento.
Qual o papel da corrupção da política remediadora?
Ela é constitutiva, institucionalizada. Você dá a aparência da distribuição, e não a distribuição. Você dá a aparência da educação, e não a educação. Você dá a aparência da promoção social, e não a promoção social. Isso, por si só, é um processo de corrupção. Como se constroem esses consensos num país politicamente dividido? Através de um convívio mediado pela manipulação de privilégios. Num nível mais alto, a corrupção é mais sofisticada. Num mais baixo, reduzida a pequenas intervenções.
Que mecanismos de transparência a população poderia ter?
A única maneira de escapar desse jogo manipulatório seria as comunidades se organizarem com independência em relação aos grupos políticos, inclusive em relação às autoridades médicas e sanitárias vigentes. Que elas pudessem se articular com técnicos e cientistas sem ligações com partidos. Que pudessem criar um canal independente de autoconhecimento para que entendessem o que lhes é vantajoso no médio e longo prazo, em vez de simplesmente serem arrastadas por essas políticas.
O senhor reconhece um tom melancólico no seu livro. Seria diferente se o escrevesse agora?
Quando escrevi o posfácio desta última edição refletindo sobre aquele momento, eu me vi na mesma intensidade de decepção e de amargura diante do que sinto ser uma oportunidade perdida, um projeto democrático abortado. Pertenço à geração da ditadura. Entrei na escola primária já com o início da repressão, portanto toda a minha formação foi sob a ditadura militar. Ela construiu o que o professor Antonio Candido chamou de geração sem palavras: tudo era tolhido, tudo era proibido, tudo era recusado. A gente criou uma espécie de expectativa maximizada de que o fim da ditadura por si só seria capaz de dar ensejo a um país com potenciais fantásticos e de construção de uma democracia exemplar porque sabíamos exatamente o que a ausência de democracia era. O livro foi escrito no início do processo de transição. Era um grito de alerta, um grito de horror da minha geração, que via a possibilidade de definitivamente construir a democracia dos nossos sonhos, mas percebia essa democracia sendo corroída pelos mesmos sistemas que a haviam conspurcado desde suas origens. O que posso dizer é que o livro é uma manifestação autêntica do meu sentimento. Se esse sentimento encontra ressonância em outros setores da sociedade, uau, será pra mim um imenso alívio e um imenso conforto moral.
______________________________Fonte: Estadão online, 21/08/2010
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