terça-feira, 13 de novembro de 2018

Brasil, Bolsonaro e a teologia da prosperidade

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"A classe média, em que impera um forte ressentimento pelas políticas do PT representa, portanto, o principal interlocutor tanto de Bolsonaro quanto da comunidade evangélica como aquela de Macedo, que oferecem uma visão de mundo individualista, para a qual o bem-estar pessoal vem antes do bem comum", analisa Giacomo Salvarani, professor do Departamento de História da Universidade de Bolonha, em artigo publicado por Settimana News, 12-11-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

Em 28 de outubro passado, Jair Messias Bolsonaro, candidato do Partido Social Liberal (PSL) nas eleições presidenciais do Brasil, venceu o segundo turno contra o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad. Embora no segundo turno Haddad tenha se saído muito bem, ganhando 16 milhões de votos a mais em comparação com o primeiro turno (quase o dobro daqueles recebidos por seu rival), o Partido dos Trabalhadores não conseguiu retornar à direção do País, dois anos e meio depois do impeachment de Dilma Rousseff.

Essa campanha presidencial, como aquela que elegeu Trump para a Casa Branca, viu a participação ativa de numerosas comunidades protestantes, que têm apoiado em grande parte o candidato da "direita", sendo decisivas para sua vitória. Como observado por Ricardo Mariano e Ari Pedro Oro em seu estudo sobre política e religião no Brasil[1] se, por um lado, os evangélicos de missão (luteranos, presbiterianos, metodistas, batistas, adventistas etc.) nunca influenciaram de maneira decisiva a vida política do país, os evangélicos de origem pentecostal, como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que conta com uma taxa de crescimento exponencial de fiéis, demonstraram mais uma vez, com a eleição de Bolsonaro, sua progressiva influência.

Depois do prefeito, a presidência

Após a eleição de dois anos atrás de Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal, como prefeito do Rio de Janeiro, o Partido Republicano (PRB) - ponto de referência parlamentar da Igreja Universal - conseguiu obter quase 5% dos votos no primeiro turno das últimas eleições nacionais, aliando-se então com Bolsonaro no segundo turno e garantindo o percentual eleitorais necessário para vencer.
Bolsonaro foi capaz de catalisar o voto dos evangélicos de origem pentecostal, marcando uma importante ruptura com o passado, uma vez que o Partido Republicano havia apoiado anteriormente os governos liderados pelo PT, de modo que José Alencar, membro do PRB, tinha assumido o cargo de vice-presidente dos governos Lula, representando a ala direita de viés neoliberal.

A distinção entre evangélicos de missão e evangélicos neopentecostais ("evangélicos") é fundamental para não parar na interpretação superficial, bastante difundida na Itália e em outros lugares, que considera pura e simplesmente como ultraconservador o voto evangélico, e que justifica a tese da "virada para direita" do Brasil com os dados demográficos que veem aumentar a população protestante como um todo, até alcançar, em um censo de 2010, 23% da população.[2]

Por isso, é bom fazer um esclarecimento: é o voto de todos os evangélicos e, especialmente, o voto dos fiéis das Assembleia de Deus (entre os quais encontramos a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, da qual faz parte o influente pastor Silas Malafaia)[3], que sozinhas reúnem mais de 6% da população brasileira, da IURD e também da Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, que doaram uma importante base de apoio a Bolsonaro, não o voto evangélico como tal, que, como um todo, devido à crescente porcentual de fiéis neopentecostais nas últimas décadas, ainda assim preferiu Bolsonaro.

Deve ser lembrado, no entanto, que este último - nascido e criado dentro do seio da Igreja Católica brasileira - superou Haddad também no voto católico, graças aquelas minorias fundamentalistas que preferem defender uma espécie de "ecumenismo fundamentalista", que se aproxima ao evangelicalismo e, ao mesmo tempo, afasta-se do ecumenismo do Papa Francisco, cujo pontificado se distingue pela atenção a não dar margens teológicas aos poderes constituídos.[4]

Pelo contrário, os crentes neopentecostais são frequentemente direcionados ao voto por bispos e pastores, que, como declarou à Associated Press o sociólogo e cientista político brasileiro Antônio Lavareda [5], mesmo quando não se envolvem diretamente na política, como no já mencionado caso de Marcelo Crivella, influenciam muito mais seus fiéis do que os padres católicos, convidando-os explicitamente a votar em seus próprios candidatos.

Bolsonaro, para conquistar o consenso dos pastores e fiéis neopentecostais, apostou, entre outras coisas, em temas conservadores em matéria familiar e sexual, contra a homossexualidade e na defesa da chamada família tradicional; temas que se encaixam perfeitamente ao viés moralista do protestantismo evangélico, mas que muitas vezes se chocam com a biografia de quem os utiliza para fins eleitorais, e que, inclusive nesse caso, servem de contraponto para as três "famílias tradicionais" tidas por Bolsonaro: Michelle, de fé evangélica, é a sua atual e terceira esposa.

Deus do dinheiro

Não só o voto evangélico foi de grande ajuda para Bolsonaro para chegar à presidência, mas também a "máquina" de consenso e de dinheiro que as comunidades neopentecostais - organizadas como grandes empresas - conseguiram mover. Tal "máquina" também foi capaz de ir além dos limites da própria comunidade de fé, basta pensar no papel desempenhado pela Rede Record, emissora de TV fundada pelo pastor bilionário da IURD, Edir Macedo, e escolhido por Bolsonaro, entre outras coisas, para sua primeira entrevista após a vitória nas urnas.

Macedo, que em seu livro Plano de Poder [6] convidava diretamente os membros de sua igreja a se envolver na política, prega uma "teologia da prosperidade", baseada em uma leitura literal da Bíblia [7], que reconhece no bem-estar e no sucesso econômico individual - além das doações para a igreja (sic!) - um sinal de fé e predileção divina.

É, portanto, uma ideologia "meritocrática", que resulta hostil às políticas sociais dos governos anteriores do PT e - como alega a filósofa brasileira Marilena Chauí - "foi internalizada por grande parte da classe média e da nova classe trabalhadora: eu trabalho e ganho, mas meu mérito não é reconhecido porque meu dinheiro, através dos programas sociais, vai para aqueles que não fazem nada; e isso não está certo, não é democrático"[8]; e é ainda mais injusto quando a pobreza é considerada nada mais do que uma consequência direta da falta de fé, como ensina o "evangelho da prosperidade".[9]

A classe média, em que impera um forte ressentimento pelas políticas do PT representa, portanto, o principal interlocutor tanto de Bolsonaro quanto da comunidade evangélica como aquela de Macedo, que oferecem uma visão de mundo individualista, para a qual o bem-estar pessoal vem antes do bem comum.

Tal visão, com raízes profundas na história do calvinismo, adequa-se perfeitamente hoje à ordem neoliberal, que explora a capacidade da persuasão religiosa - especificamente as mensagens totalmente midiáticas dos pastores neopentecostais - para transformar a sociedade.

Ironicamente, como se para marcar a transição: a nova Catedral Mundial da Fé da IURD surge no Rio de Janeiro em uma rua em homenagem a dom Hélder Câmara[10], cuja "Teologia da libertação", baseada no conceito de justiça social, fornecia respostas diametralmente opostas àquelas da "teologia da prosperidade".

O credo neoliberal

O evangelicalismo é uma força em franco crescimento, capaz de influenciar politicamente os próprios fiéis e influenciar eleitoralmente Estados imensos como o Brasil e como já aconteceu nos Estados Unidos.

Certamente, a eleição de Bolsonaro foi uma resposta a fatores contingentes, como os escândalos de corrupção e a violência disseminada em certas áreas do Brasil, e o próprio Bolsonaro não pode ser consideradas como um "Trump brasileiro", como algumas interpretações esquemáticas levam a acreditar, porém as duas eleições presidenciais tiveram várias características em comum, incluindo a crescente influência de uma força religiosa sem escrúpulos, favorável às políticas de "direita", não só no plano ético, mas também econômico, a ponto de fornecer um verdadeiro suporte teológico para o credo neoliberal.

Se, por um lado, essa força terá, de acordo com as tendências demográficas, cada vez mais peso na vida política do além-Atlântico, por outro lado, é bom não sobrepô-la ao protestantismo neopentecostal e pentecostal "clássico", bem mais heterogêneo, não tão direcionado e organizado do ponto de vista político e nem tão em crescimento quanto o protestantismo neopentecostal.

Notas:

[1] R. Mariano – A.P. Oro, Religion and Politics in Brazil, in S. Engler and B.E. Schmidt (ed.), Handbook of Contemporary Brazilian Religions, L’Aia, Brill, 2016..

[2] Dado obtido em Pew-Templeton. Global Religious Futures Project, hoje estimado em 29% (G. Veiga, Jair Bolsonaro benedetto dalle chiese evangeliche brasiliane em "Internazionale", 11 de outubro de 2018). Se tal tendência não se inverter, nos próximos anos o catolicismo no Brasil poderá se tornar minoritário.

[3] Tal pastor, só para dar uma ideia de sua enorme influência no contexto brasileiro, pode contar com 1,38 milhões de "seguidores" de sua página pessoal na rede social Twitter, e 2,31 milhões de "seguidores" em sua página no Facebook (mais do que o dobro, sempre para dar uma ideia geral, daqueles que seguem a conta do ex-premiê italiano Matteo Renzi). Nas duas páginas, Malafaia espalha mensagens de conteúdo político diariamente.

[4] A. Spadaro, Fondamentalismo evangelicale e integralismo cattolico. Un sorprendente ecumenismo, em "La Civiltà Cattolica", Quaderno 4010, vol. III, 2017.

[5] M. Silva de Sousa, Evangelicals, growing force in Brazil, to impact elections, em "AP news",14 de setembro de 2018.

[6] E. Macedo - C. Oliveira, Plano de Poder - Deus, Os Cristãos e a Política, Nashville, Thomas Nelson, 2008.

[7] V. Garrard-Burnett, Neo-Pentecostalism and Prosperity Theology in Latin America: A Religion for Late Capitalist Society, in «Iberoamericana. Nordic Journal of Latin American and Caribbean Studies», vol. XLII: 1-2, 2012, pp. 21-34; A. Spadaro – M. Figueroa, Teologia della prosperità. Il pericolo di un “vangelo diverso”, in «La civiltà cattolica», Quaderno 4034, vol. III, 2018.

[8] S. Visentin - M. Grazia, Entrevista com M. Chaui. Aspettando Bolsonaro. La dittatura della classe media nel Brasile del dopo Lula, in “Sconnessioni precarie”, 19 de outubro, 2018.

[9] A. Spadaro - M. Figueroa, Teologia della Prosperidade, cit.
[10] V. Garrard-Burnett, Neo-pentecostalism and Prosperity Theology in Latin America, cit.
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FONTE:  http://www.ihu.unisinos.br/584603-brasil-bolsonaro-e-a-teologia-da-prosperidade 13/11/2018

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