Jane Tutikian *
Seria um filho como qualquer outro, se não tivesse dado o nome ao pai. Gostava imenso dessa história e, depois que a contava, os olhos ficavam parados, atrás dos óculos, olhos muito vivos, como a esperar alguma reação. E ela vinha. Então, seguia-se outra história e outra e outra de um contador que sabia muito bem a força da palavra.
Conheci José Saramago em 1997, no auge da sua fase luminosa - a dos romances históricos - havia publicado seis anos antes “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) e iniciava a fase alegórica com “Ensaio sobre a Cegueira” (1995). Era, portanto, um escritor consagrado junto ao público brasileiro. Tania Franco Carvalhal e eu organizamos um seminário na Ufrgs focado na obra de Saramago, Helder Macedo e da cabo-verdiana Orlanda Amarílis. Trouxemos grandes estudiosos das literaturas portuguesa e brasileira para a composição das mesas. E, então, veio a surpresa. Após a realização do painel, cujo tema era o narrador de Saramago - no meu entender o mais genial do século XX - eis que, do auditório, ergue-se uma voz inconfundível para dizer que quem tinha escrito os livros era ele, portanto ele era o narrador. Era assim José Saramago.
Ateu
confesso, conhecia a Bíblia como ninguém e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”,
o livro censurado, era tema central na academia. E não poderia ser outro. O que
dizer da criação de um Deus todo poderoso, que faz parceria com o diabo quando
necessário e, mais ainda, que sacrifica seu filho para manter o poder sobre os
homens? A reação da Igreja foi imediata. E a obra foi excluída, pelo então
Sub-secretário da Cultura de Portugal, do Premio Europeu de Literatura. É o
momento em que o escritor deixa seu país para viver uma espécie de autoexílio
em Lanzarote, nas Canárias.
Não se pense, entretanto, que não havia uma outra história atrás da história.
Contava Saramago que andava distraído e passou por uma banca de jornais, que
tinha uma série de livros expostos. O sol incidiu sobre um deles e lhe pareceu
ler o título "O Evangelho segundo Jesus Cristo". Continuou
caminhando, quando se deu conta realmente do que lera e aquilo não podia ser.
Voltou à banca e, de fato, não era, mas dentro dele surgira o livro.
Era assim José Saramago. Um homem alto, magro, elegante, olhos atentos ao momento histórico, polido e capaz de afrontar o mundo pelas suas convicções. Olhar para o passado e corrigi-lo para o presente, era a sua obstinação de humanista contra os valores da cultura do capital. Objecto quase, o livro de contos publicado em 1977, que trabalha com a alegoria como linguagem do mundo com suas contradições, transforma a narrativa num ato socialmente simbólico. A grande alegoria de Objecto quase é a de um mundo tomado pela mecanização, possuído pela máquina e por homens reificados, subordinados à matéria, destituídos da sua própria essência, mas é mais do que isso, é um alerta de para onde caminhamos, mas também um singelo alento de aonde podemos chegar. Os contos de Objecto quase, prefiguram as elaborações alegóricas mais extensas, seus romances, estão lá o seu embrião.
Curioso é que, em 47, Saramago publicou Terra do Pecado, muito aos moldes de Jorge Amado e nada acontecera. Ele, então, só voltou a publicar romances inaugurando a fase histórica ou luminosa com Levantado do chão (1980), até A jangada de pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) , seguido de O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) redescobrindo e ressignificando o romance histórico português, não mais como reforço da idealização da história nacional portuguesa como foi tradicionalmente concebido, mas inserindo-o na zona da ruptura, da contra-imagem, presentificando o passado aos olhos críticos do presente. A interpenetração dos dois discursos, o histórico e o literário se dá no convívio de seres históricos e ficcionais, mas, também, na construção do próprio texto. Memorial do convento é paradigmático nesse sentido, quando, no século XVIII, Baltasar e a genial Blimunda ( meio mulher, meio bruxa) ajudam na faraônica construção do convento de Mafra. Trata-se de uma produção que se afirma imaginária, ficcional. Outra obra paradigmática é Levantado do chão, quatro gerações mostram a saga da família Mau Tempo, quando a história e a sociedade são textos que o autor lê e em que se inscreve ao reescrevê-los com um significado novo, embora a presença constante do antigo. “A epopéia do Alentejo”, segundo Saraiva e Lopes.
Creio que o livro esteticamente melhor acabado dessa fase é “O ano da morte de Ricardo Reis” (1985). Ricardo, amante, Fernando Pessoa, fantasmagórico, Lídia, musa e amante, Marcenda e Daniel povoam a Lisboa de 1936, o ano do levante militar contra os comunistas e anarquistas na Espanha e, através do processo alegórico, a perda de uma aura, afinal, Portugal perdeu o passo das congeminações históricas, Portugal virou “a mãe que devora os próprios filhos.” É como amplia as dimensões da História, ao acrescer à verdade uma nova verdade, a da ficção, cujo cerne é o ser humano, e o faz num estilo alimentado pela oralidade, singular.
O ano de 1998 foi aquele em que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Com o
prêmio, a necessidade de mostrar de outra forma ao mundo o lugar para o qual
esse mesmo mundo estava indo. É o início da fase filosófica, alegórica, com A
Caverna (2001) O homem duplicado (2002) , Ensaio sobre a lucidez (2004) , As
intermitências da morte (2005) e outros.
“Ensaio sobre a Cegueira” talvez tenha sido o livro de maior impacto dessa fase
e o autor justifica: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero
que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma
longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das
experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante
aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso
que tenhamos coragem para reconhecer isso.”
Saramago tinha uma visão muito aguda do nosso tempo e sabia onde estava a
falha: ‘Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as
circunstâncias humanamente.’, mas não soubemos fazê-lo. Iconoclasta absoluto,
declarou em entrevista : “A eternidade não existe e, portanto, nada é
permanente. Chegará um momento em que tudo acabará(...) tudo o que fizemos
aqui, a Capela Sistina, D. Quixote, Macbeth, Os Lusíadas, Crime e Castigo,
todas as grandes obras da arquitetura, tudo isso será como se não tivesse
existido. E o universo não lembrará de nós”.
Foi em 1999 que reencontrei Saramago, na outorga do título de doutor Honoris
Causa da Ufrgs. O Salão de Atos estava totalmente lotado. Bastou que ele
começasse a fazer seu agradecimento para que o silêncio tomasse conta do salão.
Por alguns instantes, José Saramago olhou para o que havia escrito naquelas
folhas. Então, lentamente, colocou-as no púlpito e caminhou para mais perto da
plateia, um público jovem sedento de ouvi-lo, e começou a falar de improviso. A
emoção foi imensa, não, ele dizia, não é preciso que amemos uns aos outros, é
preciso que respeitemos uns aos outros. Essa frase ficou em cada um de nós que
o assistimos e vai continuar ecoando, tão forte como ontem, em tantos próximos
cem anos que houver.
* Escritora. Professora titular da Ufrgs.
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