A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
1.
Esta estranha primavera de 2005 vai-se infiltrando muito outonal. Em
qualquer sentido da palavra, das nuvens e do vento. Olhem bem à volta e
reparem nas caras das pessoas.
Já
atentaram bem no número de caras que as pessoas agora têm? O número de
pessoas é grandessíssimo, eu sei, mas o número de caras é obscenamente
maior, porque, nesta estranha Primavera, quase todos andam com várias.
No ano passado, por esta altura, as pessoas andavam com as caras do
costume. Não direi com as caras com que nasceram, porque essas, já se
sabe, duram umas horas ou uns dias. Também não estou a pensar nas caras
com que se fizeram gente e que acabam quando ficam gente feitas. Mas com
essa, que vem depois daquela, e que é a cara com que nos habituamos a
vê-las, mais ruga menos ruga, mais dente menos dente. Cara com que se
começa a parecer a cara dos filhos deles, quando ficam tal pai tal
filho. Cara que, às vezes, até se pega à mulher (ou ao marido) que,
depois de muitos anos de matrimónio, acontece ficar parecida. Cara que,
outras vezes, passa deles para o cão, igual ao dono. É estranho? Não
acho nada.
Uma
cara é uma cara e não há assim tantas que não se compreenda alguma
economia, sobretudo quando há que baixar o consumo. Estranho é o que
está a acontecer agora. Com inquietante dissipação, as pessoas mudam de
cara. Experimentam uma, acham que não lhes fica bem, usam outra, depois
outra e mais outra. Para mim, que levo tempo a habituar-me a uma cara
nova, esta sucessão de caras assusta-me. Qualquer dia, ainda me acontece
o que aconteceu a Malte na Rua Toullier, num 11 de setembro. Vou por
uma rua vazia, e uma mulher deita a cara às mãos, e fica-lhe a cara nas
mãos. Que visão será mais horrível? Uma cara do avesso nas mãos de uma
mulher? Ou uma cabeça toda nua, esfolada viva, sem cara?
E
o Malte, de Rilke para quem não saiba (se não souberem Rilke já não
tenho cara para vos aparecer mais), viu isso tudo, em Paris e em
setembro, há um ror de anos. Ver isso em Lisboa, em março, nos dias que
correm, não há cara que aguente. Mas, com o balanço que isto leva,
qualquer dia acontece. Pode ser já para a semana. Deus nos acuda, ou
aquele rei que era irmão de Valentina Visconti, essa que - diz-se -
morreu de desgosto.
2.
De desgosto morreu também Niels Jacobsen, um médico islandês magrinho e
pálido (eu, pelo menos, imagino-o assim) que, quando era mais magrinho e
menos pálido, namorava, na sua gélida ilha, a quente e cúpida Maria
Borman (também sou eu quem a imagina assim). A certa altura da vida
(porque é que se diz "a certa altura da vida" mesmo para vidas que nunca
tiveram qualquer altura?) resolveu fazer uma longa viagem pela Europa,
visitar países quentes, a Itália, a Grécia, Chipre. Ela escrevia-lhe,
todas as semanas, cartas que sempre começavam por "Meu Amor".
Perguntava-lhe se ele se lembrava das tardes outonais em que iam os dois
sozinhos passear. Ele respondia-lhe todas as semanas a contar-lhe de
povos alegres e de pinhais. Mas, ao fim de seis meses, as cartas
deixaram de chegar e as dele ficaram sem resposta. Escreveu à família, a
pedir, por amor de Deus, que lhe dessem novas, mas a família dava-lhe
de todos, menos dela. Só sabia que Maria não tinha morrido, pois recebia
os jornais de Reykjavik e, das exaustivas necrologias desses tempos,
não constava o nome dela. Pensou nunca mais voltar, tal o medo de a
reencontrar, quente e cúpida, nos braços de outro. Mas, por fim,
regressou, como desde Ulisses ou desde Telémaco, todos regressamos. A
família recebeu-o em festa mas ninguém mencionou o nome de Maria. Ele
também não perguntou, por orgulho ou por desespero. Só que os desesperos
em causas de amor ao amor aportam, infalivelmente. Quando Greta Bruble,
que ainda era contraparente, veio passar férias de Verão a Reykjavik (e
tinha a voz cansada e rolava os "rs" com meiguice e, desta vez, só
metade é imaginação minha), o cabelo dela fez-lhe lembrar o cabelo de
Maria, a cintura dela fez-lhe lembrar a cintura de Maria. Casaram-se na
Primavera, quando as nuvens se confundem com os pântanos gelados e a
calma polar amacia as próprias falésias. Niels deixou de se lembrar das
tardes outonais.
Depois
(e entendam por depois o tempo que quiserem) chegaram uns amigos
suecos, médicos como ele, novos como ele, magros como ele, que quiseram
visitar os hospitais-modelo atribuídos à Islândia. Um dia passaram
diante da leprosaria, onde o novo diretor, que tinha sido aluno do pai
de Niels, os recebeu com afeição. Enquanto a mulher do diretor e Greta
preparavam um chá, o diretor levou-os a visitar as espaçosas salas dos
doentes. Havia tanta luz, havia tanta serenidade. Agora sou eu quem vos
jura que não inventei nada. Viram a sala das crianças, a dos homens e,
por fim, a das mulheres, que eram cinco. Levantaram-se todas e
viraram-lhes as costas, para que os jovens médicos lhes não vissem as
caras. Até que, de repente, Niels parou. Pareceu-lhe reconhecer uma
delas, na que estava mais à direita, Maria, a antiga Maria dele. Ainda
tentou fugir, mas não pôde suportar a ideia de viver o resto dos seus
dias com dúvida tão terrível. Chegou mais perto e eram os cabelos
castanhos de Maria, esses cabelos tão crespos que todos os pentes se
partiam contra eles. E era a nuca de Maria, essa nuca nervosa que o
sofrimento ainda não abatera. E eram os ombros de Maria, esses ombros
tão redondos que ela mal conseguia levantar os braços para ir colher
cerejas. E eram as ancas de Maria, essas ancas que ele tantas vezes
abraçara, quando chegava de mansinho e lhe tapava os olhos com as mãos.
Nesse
momento a forma de mulher que se parecia com Maria vacilou e tombou. As
outras continuaram de pé, com os fusos de tecer na mão, "como as Parcas
quando a morte vai sozinha". Niels, no regresso, ainda conduziu a
carruagem, entre as falésias, sem estremecer e sem deixar que os cavalos
saíssem da rota. Mas, logo que chegou a casa, adoeceu. Durante seis
meses não se levantou e não disse uma palavra. E morreu face ao outono.
3.
A história que acabei de contar é o resumo aproximativo de um conto de
Giraudoux chamado "L'Ombre sur les Joues". Giraudoux escreveu-o em 1908,
aos vinte e seis anos, num jornal para onde escreveu muitos contos. Só
foi publicado oito anos depois da morte dele, em 1952, entre os "écrits
de jeunesse", num livro chamado "Les Contes d'un Matin".
"Morreu
face ao Outono", traduzi eu. Em francês, Giraudoux escreveu: "Et il
mourut vers l'automne", muitíssimo mais bonito. Mas ninguém, no século
XX, escreveu melhor francês que Giraudoux (Gide?). "L'Ombre sur les
Joues" contrasta com os outros contos da juventude (da manhã) pelo seu
lado trágico. Os comentadores atribuíram-no à influência de Jean-Peter
Jacobsen (1847-1885) que Giraudoux, como Rilke, descobriu nos inícios do
século passado. A 1 de Agosto de 1902 a rodin: "Lembro-me muito bem
que, há cinco ou seis anos, quando li pela primeira vez um livro
inesquecível de um grande poeta dinamarquês (Jean-Peter Jacobsen) só
pensei em procurar esse homem e fazer tudo para me tornar digno de ser
amigo dele e profeta no coração dele perante todos os que ainda o não
tinham encontrado. Mas, no dia seguinte, disseram-me que ele tinha
morrido, muito novo, muito sozinho, numa aldeiazinha muito triste, morto
pelo clima cruel do seu país sombrio." Foi por causa de Jacobsen que
Rilke visitou, muito mais tarde, a Dinamarca, e consequentemente, foi
por causa dele que escreveu "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge". O
livro que Rilke leu foi "Niels Lyhne" (1880), o livro que me levou a mim
a ler Rilke, há muitos, muitos anos. Foi Rilke, ou foi Rodin, quem foi
profeta de Jacobsen junto de Giraudoux? Disso, já não sei. Sei é que
neste estranho março de 2005, Jacobsen, Giraudoux e Rilke me apareceram
de novo, trazidos por um morto que tinha o mais sereno rosto de morto
que já vi. Alguém me disse: "Eu não sou crente, mas acho que é o rosto
de um santo." Pensei então em Hjerrgild, o amigo de Niels, e na oração
final deste, junto ao corpo agonizante de Niel. "Se eu fosse Deus,
preferia conceder a salvação eterna àqueles que morrem sem se
converter." Depois, olhei à volta e reparei nas caras. E lembrei-me de
outra frase de "Niels Lyhne", que vem quase a seguir àquela: "Seja como
for, é bom ter um Deus a quem dirigir lamentos e orações." Como o outro
Niels (o de Giraudoux) "mourir face à l'automne".
João Bénard da Costa
4 de março 2005, in Público
Imagem da Internet
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/antologia-1392306 - 17/12/2022
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