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Leia entrevista da cientista política Monalisa Soares Lopes para o podcast Politiquês na minissérie ‘Uma crise chamada Brasil’, em que fala sobre a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto
Monalisa Soares Lopes, professora de ciência política na Universidade Federal do Ceará, foi entrevistada pelo podcast Politiquês em julho de 2022 para a minissérie “Uma crise chamada Brasil”, que traça um panorama dos anos que marcaram a quebra do pacto social da Nova República.
Ela aparece no quinto episódio, “Rupturas”, sobre o impeachment de Dilma Rousseff e o que veio depois, e no sexto episódio, “Diálogo interrompido”, sobre o impacto das redes sociais no debate público.
O Nexo traz agora a transcrição da conversa que teve com Lopes. Ao longo de dezembro de 2022 e janeiro de 2023, as entrevistas realizadas para a minissérie serão publicadas por escrito, a fim de que possam ser fonte de consulta dos leitores do jornal.
Em 2014, o PSDB colocou em xeque o resultado das eleições pedindo uma auditoria nos votos a partir de boatos na internet. De que forma esta atitude do partido impactou a confiança dos brasileiros no sistema eleitoral? Houve ali a origem de um abalo a pilares democráticos?
MONALISA SOARES LOPES Sobre os discursos de desconfiança no processo eleitoral, de fato, 2014 é um momento importante. Era o candidato de um dos partidos mais importantes do país naquele momento [Aécio Neves, derrotado pela petista Dilma Rousseff], que já havia ocupado a Presidência da República por duas vezes, e que por quatro eleições seguidas apresentava um candidato que ia ao segundo turno disputar o cargo. Aquela ação do Aécio e do PSDB solicitando essa auditoria é muito importante para destacar a importância não só do conteúdo do discurso, mas de quem pronuncia esse discurso. Quem o coloca na cena pública.
Em 2022, nós temos a mais alta autoridade da República [Jair Bolsonaro] reiteradamente apresentando esse tipo de discurso, numa escala muito maior. É algo muito expressivo, porque atacar a integridade eleitoral significa um ataque não só ao próprio processo em si, aos eleitos que decorrem daquele processo, mas ao próprio sistema, à própria lógica de recrutamento político em uma sociedade democrática como a nossa.
Quando eu menciono a importância de quem fala, a gente vê que a discussão proposta pelo presidente tem reverberado socialmente. Pesquisas de opinião pública mostraram um crescimento em relação à desconfiança sobre as urnas eletrônicas. Esse tipo de discurso que coloca sob suspeição o processo eleitoral tem, na verdade, um objetivo geral de minar as bases de legitimidade do próprio sistema político.
O PT e Dilma erraram ao não apoiarem Eduardo Cunha na eleição para a presidência da Câmara em 2015? Na sua avaliação, Cunha e aliados inviabilizaram o início do segundo mandato de Dilma, como dizem os petistas, com a chamada pauta bomba do Congresso?
MONALISA SOARES LOPES As tensões entre o Executivo e o Legislativo já foram sedimentadas e organizadas no primeiro mandato de Dilma. Aquele foi o laboratório em que se gestou essa insatisfação e, a partir disso, a dificuldade que o governo tinha de gerenciar essas relações tão importantes para o presidencialismo de coalizão brasileiro.
O não apoio do PT à candidatura do Cunha logo após a reeleição da Dilma, com lançamento de candidatura própria, adensou essa insatisfação do grupo de deputados que ele liderava.
O papel do Cunha no aprofundamento do desgaste do governo com as pautas-bomba também é importante, principalmente pelo conteúdo que aquelas matérias tinham. O governo enfrentava uma crise econômica, precisava dar resposta a partir de cortes de gastos, e o Cunha e a oposição aprofundaram essa dificuldade que o governo tinha de gerenciar a crise econômica. Mas, por outro lado, o desgaste que leva ao impeachment também traz elementos próprios da ação do governo.
O início do governo Dilma 2 é marcado por uma recondução de rota de ação, diferente do que tinha sido apontado na campanha eleitoral. A campanha de reeleição foi profundamente marcada por um discurso de continuidade e de ampliação de direitos. E logo que ela toma posse, nos primeiros meses do governo, há uma série de cortes, inclusive de medidas provisórias que passaram a normatizar benefícios. Na hora de decidir por essas medidas impopulares, houve uma incapacidade ou uma não mobilização do governo em se comunicar diretamente com a sociedade, logo após uma campanha em que o Brasil parecia ter condições de continuar tal qual era.
Quando vêm as pautas-bomba, elas pioram a situação do governo na gestão da crise econômica e se somam a esse conjunto de elementos de insatisfação popular. Insatisfação que se expressa nas ruas a partir das mobilizações das direitas e das oposições, mas que também ganha corpo na opinião pública em geral, o que pode ser observado nas pesquisas de aprovação do governo ao longo do ano de 2015.
Quando o Eduardo Cunha acolhe o pedido de impeachment no fim de 2015, tem todo aquele debate sobre a vingança pelo PT não atuar para impedir a tramitação da denúncia contra ele no Conselho de Ética [por negar a existência de contas bancárias na Suíça]. Tem esse elemento, mas tem também todo um processo de desgaste que foi sendo montado ao longo do ano.
Naquele momento, o Cunha já tinha diversos pedidos de impeachment na mesa, a oposição institucional já estava completamente mobilizada em torno desse debate da deposição, já tinha muitas manifestações de rua, as pesquisas de opinião de aprovação do governo e as que mensuravam a possibilidade de impeachment também mostravam um certo apoio ao processo e houve, ainda, um movimento mais significativo do [então vice-presidente Michel] Temer com aquela carta [endereçada à Dilma, reclamando da falta de protagonismo no governo] e a própria discussão do MDB sobre a Ponte para o Futuro [programa econômico alternativo ao do PT]. Então, tem uma ação do indivíduo Eduardo Cunha, mas já tem toda uma conjuntura delineada e bastante favorável ao processo de início do impeachment.
No início de 2016, houve aquela mobilização em torno da possibilidade de que o presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] contribuísse para a articulação, para tentar estancar o processo de impeachment, esperava-se que o recesso parlamentar ajudasse nesse conjunto de configurações e de diálogos. Mas a ação da Lava Jato, que veio num contínuo desde a eleição de 2014, foi de fato decisiva também para montar uma conjuntura que tornaria o processo do impeachment um desenrolar muitíssimo difícil de ser evitado [o ex-juiz federal Sergio Moro, responsável pela operação, vazou diálogos entre Lula e Dilma sobre a ida do ex-presidente ao Ministério da Casa Civil, e o Supremo barrou a sua indicação].
Dilma sofreu impeachment por manobras fiscais. Os apoiadores falam em golpe porque segundo eles não havia crime de responsabilidade ali. Mas a definição de crime de responsabilidade é bem ampla. Há analistas que veem o impeachment apenas como um processo político – o governo trava e o presidente cai. Há analistas que veem como um processo político-jurídico – é preciso ter alguma base para derrubar um presidente, senão se age fora da Constituição. Como você classifica o que ocorreu ali? Golpe? Ruptura institucional? Impeachment mesmo?
MONALISA SOARES LOPES A deposição da ex-presidenta Dilma se tornou um evento disputável do ponto de vista da narrativa, de impeachment versus golpe. Que elementos contribuem para que essas narrativas se organizem e se fortaleçam na dinâmica e na disputa política? Entendo que tem pelo menos três dimensões nessa discussão.
A primeira foi o próprio recorte do fenômeno que configuraria o crime. A gente viu amplas discussões em torno das manobras fiscais como crime de responsabilidade, primeiro na Câmara dos Deputados, depois no Senado. Quem era contrário evidenciava que nque essas manobras eram uma ação corrente da gestão pública federal, que já havia inclusive sido acionada por outros presidentes. Quem era favorável dizia o oposto, buscando demonstrar todos os níveis de legalidade que estavam envolvidos no processo de impeachment.
Em outro nível, outro acontecimento que adensa essa disputa é o próprio processo de penalização da ex-presidente. Ou seja, após aprovado o impeachment no Senado, a presidenta perde o mandato, mas não perde os direitos políticos, algo que para muitas pessoas era inviável de ser separado. Foi mais um evento, mais um acontecimento que mobiliza essa disputa e torna a definição ambígua.
Por fim, ao longo dos anos, foram aparecendo diversas declarações, de agentes do Judiciário e de agentes do campo político [desresponsabilizando Dilma], e mesmo decisões judiciais, de tribunais extinguindo processos contra Dilma em relação a danos financeiros e pedaladas fiscais. Esse processo de retirar os aspectos jurídicos ou de não mencionar fundamentalmente o crime de responsabilidade, que seria o elemento jurídico do julgamento, também adensam essa possibilidade da disputa narrativa. E aí a gente tem visto como o PT tem mobilizado ao longo desses últimos anos essa narrativa, em nome dessas incongruências que marcaram o processo de deposição da ex-presidenta Dilma.
As eleições de 2018 foram marcadas também por uma ruptura da lógica segundo a qual, para vencer uma disputa presidencial, é preciso ter apoio partidário, estrutura nos estados e tempo de propaganda de rádio e TV. Na sua avaliação, por que essa lógica não prevaleceu naquele ano?
MONALISA SOARES LOPES A eleição de 2018 é amplamente reconhecida como disruptiva, com muitos elementos que vêm do desgaste que a Lava Jato operou no sistema político.
A sedimentação do antipetismo na opinião pública já tinha abalado fortemente a performance do PT nas eleições de 2016. O partido viveu um cenário de terra arrasada, perdeu muitas prefeituras, muitos cargos de vereança, num processo de fortalecimento de um discurso antipetista que veio junto com o processo do impeachment. Associou-se o PT à má gestão, à crise econômica e à corrupção. Há um abalo de fato na imagem do partido.
Quando a gente chega em 2018, a Lava Jato, que com suas ações tinha operado essa associação negativa com o PT, estende essa percepção para os outros partidos. Em 2017, houve o comprometimento também do PSDB via figura do ex-senador Aécio Neves, que havia sido o candidato competitivo do partido em 2014 e era então uma liderança forte da oposição, e do MDB do presidente Temer, que estava no poder. A Lava Jato faz esse castelo de cartas cair, porque ela atinge fortemente os três grandes partidos do sistema partidário. Então 2018 chega com a forte sensação de insatisfação política, de crítica à política, especialmente dessa política dita tradicional, dos partidos que consolidaram o processo democrático ao longo das últimas décadas.
Isso implicou fortemente esse discurso de renovação, de novos grupos na política. É nesse contexto também que ascende a figura do atual presidente [Bolsonaro]. Consolida-se, porque ele já vinha num processo de exposição pública, a partir da construção da sua candidatura como uma figura outsider, antissistêmica, incorporando profundamente o antipetismo, que seria uma tônica daquele processo eleitoral de 2018.
Dentro desse quadro disruptivo é importante a gente rememorar como essa candidatura, que foi a candidatura vitoriosa, se articulou com os discursos dominantes, com a percepção que estava sedimentada socialmente. Conjugado a isso vem aquela decisão do Supremo no julgamento que foi feito sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula [que manteve a sua prisão após a condenação em segunda instância]. A retirada do candidato que estava líder nas pesquisas também impacta e fecha esse quadro de disrupção da eleição de 2018.
Outra discussão muito forte foi sobre o papel das redes sociais em 2017, se elas teriam suplantado a comunicação tradicional das TVs. Elas tomaram uma proporção muitíssimo significativa, principalmente pela atuação do candidato vitorioso, que tinha pouco tempo de TV no primeiro turno e conseguiu mobilizar enormemente esse campo das redes.
Mas isso não significa que a TV perdeu por completo a sua relevância. A cobertura midiática sobre a candidatura [de Bolsonaro] especialmente após o atentado que ele sofreu foi algo muito relevante para torná-lo ainda mais conhecido. E no próprio segundo turno o presidente e a sua campanha mobilizaram o horário eleitoral para conjugar e reforçar uma narrativa que já se apresentava nas redes sociais. O antipetismo, o antiesquerdismo e o discurso moral foram para a tela da TV e para o rádio. Foi também através do horário eleitoral que o candidato do PT Fernando Haddad conseguiu ter visibilidade nacional, inclusive disparando nas pesquisas por causa da sua associação com o ex-presidente Lula.
Sim, as redes sociais cresceram, ampliaram a sua relevância. Em 2020 e 2022 vimos que é inimaginável uma candidatura sem mobilizá-las. Mas isso não significa que a TV não cumpra determinadas funções. Elas também somam nesse processo geral de construção da comunicação política dos candidatos.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/12/28/%E2%80%98Disrup%C3%A7%C3%A3o-das-elei%C3%A7%C3%B5es-de-2018-veio-da-Opera%C3%A7%C3%A3o-Lava-Jato%E2%80%99
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